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Portugal não é um país de cultura

Maria Teresa Madeira Ricou – mais conhecida como Teté, a primeira mulher-palhaço na Europa – nasceu na Granja (Vila Nova de Gaia). A sua infância e parte da adolescência foi passada em África, acompanhando o pai, médico da lepra, nas suas incursões pelo interior do continente. Este contacto com as populações mais desfavorecidas e a itinerância por terras africanas marcaram, em grande medida, a sua inclinação para o trabalho com os mais carenciados e a sua paixão pelo circo. Quando tinha 16 anos, decidiu partir e viajou por diversos países europeus, em particular Inglaterra e França, onde desempenhou as mais diversas profissões. Entre 1971-1973 frequentou algumas escolas de arte europeias, nomeadamente a Escola de Circo da Hungria e a Escola de Mímica Jean Jacques Lecocq, na Faculdade de Vincennes (França). Após a Revolução de Abril de 1974, regressa a Portugal e trabalha com o Palhaço Luciano, chefe dos faz-tudo do Coliseu dos Recreios, assim como com Mariano Franco, mestre de sapateado. É na sua própria casa, na zona de Santa Catarina, em Lisboa, que surgirá o embrião daquilo que veio a ser o Chapitô – através da constituição, em 1981, da Colectividade Cultural e Recreativa de Santa Catarina, espaço de intervenção social e animação cultural e formação. Dez anos mais tarde, cria, no Bairro Alto, a Escola de Circo Mariano Franco, em homenagem ao seu mestre e companheiro, que é hoje a Escola de Artes e Ofícios do Espectáculo, um dos principais pilares formativos da instituição.

 

Como surge o Chapitô e como caracterizaria este projecto?

O Chapitô começou com vontade própria. Porque acho um projecto desta natureza importante para a sociedade, para a evolução da humanidade, do mundo, da Escola enquanto serviço público e alternativo, numa lógica de projecto integrado. Porque não concebo a Escola se ela não tiver um projecto social de retaguarda, interventivo e que se constitua como um espaço de cultura, de boas práticas. Tal como não concebo um projecto educativo que não tenha um enquadramento social e um sentido de justiça social presente.

 

A génese do projecto está sobretudo ligada à intervenção social?

Sim, totalmente. Mas não só, está também fundado sobre a cultura, a educação e, inclusivamente, a economia social.

 

Mas em que medida é o Chapitô...

Não é o Chapitô, sou eu própria! Fui eu quem teve a ideia, que a criei e desenvolvi, construindo uma equipa – porque não havia em Portugal gente com formação na área circense – que pudesse trabalhar com esta arte ao serviço da inclusão social. Entretanto, ao longo dos anos, já muita gente saiu preparada para o mercado de trabalho. A inclusão social é uma opção minha de vida, pondo o meu saber de origem burguesa – eu sou uma auto-didacta – ao serviço do povo. Eu assumo-me como uma revolucionária, e achei que o meu papel como cidadã era este.

 

Mas por que razão se predispôs a avançar com um projecto desta natureza? O que a fez avançar?

Porque sou uma rapariga muito bem comportada (sorriso)… Porque penso. E quem pensa, pensa no resto. Talvez se possa encontrar aqui uma motivação de origem mista, que é, por um lado, o meu pai ter sido médico da lepra e, por outro, ter-me ensinado a viver no meio dos mais desfavorecidos, andando de terra em terra. Talvez eu tenha ido parar ao circo por causa disso. E ao mesmo tempo que fui aprendendo de forma autodidacta, fui trabalhando em itinerância na área da alfabetização, através do método Paulo Freire. Talvez pelo meu pai, talvez pelos desfavorecidos, talvez pela educação que tive em casa e pelo facto de nunca ter prosseguido a escola. Eu fui sempre uma rebelde e não concluí mais do que o 5o ano. A partir dessa altura nunca mais aceitei nada que fosse escola oficial. Apesar disso, consegui entrar na Universidade Livre de Vincennes e consegui ali concluir os estudos. Fui, aliás, óptima aluna na área de cinema e das artes de palco.

 

Falando nas artes do palco, não é muito habitual ver as artes associadas à intervenção social e à aprendizagem.

Nada daquilo que eu faço é habitual. Eu sou uma atípica, uma desenquadrada social. A arte, porque é aquilo que eu gosto de fazer, é aquilo que o meu corpo pede, aquilo que a minha alma diz. De resto, um palhaço não é muito habitual; construir um projecto destes não é habitual; pôr o próprio investimento ao serviço da sociedade não é habitual; integrar a justiça, a cultura e o social não é habitual... Tudo isto é de uma atipicidade brutal... Mas está tudo feito e montado. E é um projecto de liberdade, embora com muito rigor e com muita exigência. Porque viver liberdade e em liberdade é a coisa mais difícil que há.

 

Insisto na pergunta: por que razão acha que a arte não é habitualmente encarada como uma boa forma de intervir socialmente e de construir aprendizagens?

Não sei de que forma responder a essa pergunta. O que sei é que o faço. E bem feito. A sociedade está hoje em mutação no mundo inteiro. Com as novas tecnologias, tudo está em mudança, toda a sociedade está em mudança. E tudo sofre um desgaste muito rápido. As pessoas já não têm tempo para estar umas com as outras, para falar, para ver, para ouvir. Poucas pessoas param para pensar, reflectir... É, aliás, uma chatice para a maioria das pessoas. Mas hoje em dia é fundamental reflectir. É preciso parar, pensar, respirar e actuar. Mas ao mesmo tempo ter iniciativa. Não podemos ficar quarenta anos à espera que a coisa aconteça… Mas é preciso não sermos trambiqueiros – é uma palavra meia brasileira –, temos de subir degrau a degrau. Embora, hoje em dia, isso seja muito difícil, porque não se olha para os mais desfavorecidos, passa-se por cima, tropeça-se... Já nem a caridade – que é uma palavra que eu detesto – é praticada. Mas existia muito. Hoje em dia, há cada vez menos padres, menos pessoas que se dediquem uns aos outros. Tudo isso está a desaparecer... E por isso as pessoas têm os valores sociais completamente alterados. O que é preciso é chegar lá, passe-se por cima de quem se passar… É por isso que considero importante colocar em cima da mesa todas as peças: desde a justiça à educação, passando pela cultura, pela habitação, saúde, economia social…

 

A intervenção socioeducativa é um dos principais eixos de actuação do Chapitô, nomeadamente através da Escola de Artes e Ofícios do Espectáculo. Pode explicar esse percurso?

O Chapitô não é uma escola, é um projecto do qual a escola faz parte. A escola é um projecto integrado, que começou a funcionar com o Fundo Social Europeu, numa altura em que muitos artistas recorreram a mim para lhes ensinar a arte do circo. Comecei aos pouquinhos, intervindo nos bairros e trabalhando nos circos, naturalmente. A minha experiência profissional advém daí. Sempre que passava por Lisboa precisava de encontrar espaços onde pudesse ensaiar. Um dia encontrei um sítio, um centro de dia para idosos, no Bairro Alto, uma casa muito pequenina. Ao mesmo tempo, fazia também animação nos jardins de Lisboa: acrobacia, monocirco, malabares, equilíbrios, etc. – as muitas especialidades de que se faz um palhaço. À noite estava nas grandes salas, de dia trabalhava nos bairros e nas ruas, com a população mais carenciada. Quando isso começou a tornar- se mais visível, porque, entretanto, fui começando a ganhar algum nome como Teté, mulher-palhaço, o Ministério da Justiça convidou-me para fazer intervenção nos centros educativos – antigos reformatórios –, onde os jovens estão privados de meio social. Esse trabalho teve algum sucesso, nomeadamente porque quando chegava aos centros educativos encontrava os mesmos jovens com quem tinha estado de manhã nas ruas e nos bairros da cidade.

 

Em que termos foi feita essa proposta?

Essa proposta foi feita após uma apresentação do meu trabalho na Fundação Calouste Gulbenkian, a convite de Madalena Perdigão, que era uma mulher muito sensível e inteligente e percebeu a importância da arte na inclusão social. Entre o público, estavam representantes do Ministério da Justiça, que me lançaram o desafio. Embora eles quisessem que eu trabalhasse como funcionária pública, recusei, argumentando que fazia o mesmo serviço público que o Estado deveria fazer, e que, por essa razão, não precisava desse vínculo. O meu compromisso já era de si social. Nessa circunstância, candidatei-me a um projecto inovador do Fundo Social Europeu, destinado a financiar um curso de formação de três anos na área das artes do espectáculo circense.

 

Que depois conduzirá à criação da escola profissional...

Sim, numa altura em que se avançava com a abertura das primeiras escolas profissionais.

 

Embora esta escola seja de cariz profissional, terá com certeza um espírito de actuação um pouco diferente das congéneres?

Cada escola tem a sua autonomia pedagógica. Nós teremos, eventualmente, uma forma própria de ensinar. Quanto ao resto, é igualzinha às outras: atribui um diploma, tem o reconhecimento do Ministério da Educação, permite o prosseguimento de estudos no Ensino Superior, etc. Temos muitos alunos que, saídos daqui, se candidatam a instituições de Ensino Superior dedicadas ao ensino das artes do circo, na Inglaterra, na Bélgica, em França, entre outros. Como escola de circo, continua a ser a única no país, ensinando artes e ofícios do espectáculo circense.

 

A saída profissional dos alunos está garantida?

Completamente. Todos eles estão colocados no mercado de trabalho.

 

Como é viver das artes do circo em Portugal?

Vive-se muito bem. Aliás, em Portugal vive-se muito bem. Era um país abençoado, se fosse bem gerido. Mas isso passa por todos nós, não acuso ninguém em particular. Mas no Chapitô não há quem mande em ninguém. Se este projecto falhar, a responsabilidade é exclusivamente minha, de mais ninguém. Porque terá sempre de haver um responsável último. Democraticamente falando, há pessoas que têm a capacidade de liderar e de criar, e isso deve ser reconhecido. Em Portugal, passou a haver saídas profissionais nesta área porque eu fiz um trajecto profissional que contribuiu para abrir esse mercado. A dada altura, decidi sair de cena e ela ficou para os outros, por assim dizer. Porque, de contrário, não haveria esse mercado. Pode parecer presunçoso dizer isto, mas é verdade que, até eu chegar a Portugal e implementar as animações, as escolas, a ligação com as escolas, a animação social, não havia esse mercado. No entanto, havia artistas para isso. E aí tudo depende da nossa entrega.

 

Tem saudades do palco?

Sim, imensas saudades. Porque isso é o que eu sei fazer melhor. O que eu não sei é gerir, que é um desespero... Mas também não há muita gente que se disponha ou que tenha vontade de aprender a fazer isto, tal como eu aprendi a lidar com as instituições ligadas à justiça e à educação. Estas coisas aprendem-se fazendo, aprendendo com as boas práticas. Depois passamos à teoria, pensando e reflectindo aquilo que fazemos. Isso é muito importante.

 

Voltando a uma questão anterior, mas numa perspectiva um pouco diferente: por que motivo as escolas públicas não apostam mais na arte como recurso de aprendizagem?

Não posso falar pelas outras pessoas, mas acho que essa postura está profundamente relacionada com todos nós, que fazemos o país. Quem manda somos nós próprios, mas no fundo vivemos muito dos pequenos poderes. Portugal não é um país de cultura. E a arte é cultura. Tem artistas de grande renome, mas somos todos muito mal amados, muito maltratados por quem nos governa. Estamos numa luta de galos e de galinhas – falando de igualdade de género – para saber quem toma conta do poder. Mas ninguém está interessado em saber quem toma conta, de facto, da qualidade de vida dos cidadãos. Tem de se inventar um novo sistema de organização social, verdadeiramente democrático, que dê a volta a esta convulsão que o mundo atravessa. Tudo isto está na ordem do dia, mas não está a ser pensado seriamente. Para responder à sua pergunta, isso não pode acontecer se o país não criar condições para que tal aconteça.

 

A arte e a cultura ainda são mal compreendidas pela sociedade portuguesa?

Qualquer pai se assusta quando o filho ou a filha lhe diz que quer ir para o circo. Quando era preciso que o pai e a mãe, a família, viessem ver o que era, como funcionava, etc. À partida, arte não… Portugal ainda funciona um pouco assim. Com a Revolução de 1974, isso evoluiu um pouco, mas ainda precisa de evoluir outro bom bocado. E são poucos a lutar por isso. E esses poucos começam a ficar um bocado cansados. E a nova geração, devo dizê-lo, é demasiado descartável para solidificar uma cultura como têm os países do Norte da Europa, países muito modernos e contemporâneos, mas que têm isso no sangue. Nós, aqui, não temos esse espírito. E não o tendo, vivemos de chicos-espertos como eu. Porque o enquadramento social não permite que isso aconteça. E só com uma grande determinação, com exigência e com rigor – que hoje em dia quase que é mal entendido – é possível fazer as coisas acontecerem.

 

Em que é que o Chapitô se distingue relativamente a outros projectos educativos?

Existe uma grande cumplicidade entre todos: funcionários, alunos e professores. Essa talvez seja a principal diferença e aquilo que melhor caracteriza o ensino-aprendizagem no Chapitô. É um serviço público que se presta, no qual está envolvido o Estado, os empresários e a sociedade civil, que somos nós. Estes três elementos têm de funcionar de forma absolutamente integrada, o que não é fácil. É preciso que estas conexões e este modelo de diálogo inter-institucional funcionem. De certa forma, eu considero isto um modelo de uma mini-sociedade, de uma sociedade futura, onde será fundamental não perder a comunicação e o diálogo entre as pessoas.

 

Pode considerar-se um projecto de educação não formal?

Não será bem não formal. Tem até muita formalidade. Mas é muito alternativo na forma como se comunica. As pessoas pensam habitualmente que vir para o Chapitô é vir para uma escola de freaks. E que a Teté é a rainha da fricalhada. Sou, absolutamente. Mas, acima de tudo, sou muito exigente com o meu trabalho. Porque sei muito bem o que é arriscar a vida lá em cima, no trapézio. Brincamos todos muito, com total liberdade de expressão, mas procuramos constantemente encontrar alternativas para conseguir responder àquilo que efectivamente é preciso ser ensinado.

 

Referia-me a uma educação não formal por oposição à que associamos à educação regular. Habitualmente não se dá muito valor a essa perspectiva.

Porque as pessoas não se arriscam a isso. Há pouco tempo, alguém com responsabilidades governativas veio cá visitar-nos e elogiou o projecto. Mas disse-me que eu só podia pôr em prática este modelo na medida em que somos uma organização não governamental. Eu respondi que se este modelo interessar à sociedade ele pode ser aproveitado noutros contextos educativos. No entanto, a resposta foi: mas isto é uma coisa muito atípica, seria difícil pôr isto em prática noutro lugar… Esta postura, na minha opinião, deve-se ao facto de o Estado não arriscar, porque tem medo de investir neste tipo de projectos. E não investindo não se faz. O Estado é cobarde. O Estado não é inovador. O Estado está instalado. E não pode, tem de se desinstalar, tem de procurar fazer parcerias com as organizações não governamentais. Tem de haver compromissos entre as duas partes, porque o Estado tem uma responsabilidade que tem de assumir – para isso é que pagamos impostos. O serviço público tem de ser reconhecido e tem de ser da melhor qualidade. Tal como se estivéssemos a referirmo-nos a uma entidade particular. É o caso do ensino público, que nos últimos anos adquiriu uma imagem de ineficiência, no qual se tem de apostar para que ele seja de qualidade. E qualidade implica, nomeadamente, que cada aluno seja valorizado individualmente. Aqui, no Chapitô, convivem miúdos oriundos de famílias que ocupam alguns dos mais altos cargos da nação e miúdos provenientes dos centros educativos. E eu, como directora da escola, conheço-os a todos individualmente. E olhe que são mais de 120... Uma das miúdas que frequenta aqui a escola ficou espantadíssima por eu, um destes dias tê-la chamado pelo nome – porque até aí ela tinha sido apenas considerada um número. E isso é um mau serviço público. Depois, sejamos francos: fica mais caro ao Estado perder um miúdo do que investir nele. Num centro educativo, um miúdo representa um investimento de cerca de 500 euros por mês. Imagine quanto isto não representará no futuro se este miúdo se tornar num delinquente. É por esse motivo que é tão fundamental prevenir a pré-delinquência.

 

Nunca teve vontade de expandir este projecto a outras zonas do país?

É difícil arranjar parceiros institucionais que queiram conduzir um projecto desta natureza a longo prazo. Para chegar até aqui levei mais de 20 anos…

 

Mas sei que tem um projecto para criar uma instituição de Ensino Superior...

Sim, uma escola superior de artes circenses. Nesta altura ainda não posso adiantar muito sobre o projecto. Sei, pelo menos, que já temos o espaço, que é no porto de Lisboa, frente ao rio, num local maravilhoso – vai chamar-se Chapitô Rio. A par do espaço de formação, estou também a trabalhar no sentido de ali instalar o Museu do Humor e do Riso. A escola irá acolher cerca de quinhentos alunos. Nesse aspecto, estou tranquila, porque temos muitas pessoas de toda a Europa a procurar-nos para formação. No Chapitô, recebemos imensos alunos europeus, alguns deles emigrantes portugueses que regressam já com outra cultura. O Chapitô Rio pretende funcionar sob o mesmo modelo de economia social que funciona na sede, isto é, as actividades nocturnas servirem para financiar, em parte, as despesas de formação.

Ricardo Jorge Costa (entrevista)

Teresa Couto (fotografia)


  
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