Era ainda moço, mas não esqueço o rosto de Violante. O rosto e o seu trágico silêncio. Aceitou o destino – como costumavam comentar as vizinhas – e esperava o fim, sentada na varanda em frente à minha casa. O marido conhecia o veredicto médico: maternidade significava a morte da mãe e talvez do recém-nascido. Mas tinha imposto a sentença: o varão da família teria de nascer.
Recordo-me dos seus últimos dias: olhar perdido, morta antes de o ser, a frescura dos seus vinte e poucos anos apagada pela barbárie de um machismo impune, no Portugal de Salazar. Aprendi com Violante a combater todo e qualquer preconceito. E a rasgar silêncios coniventes. Com o Marco aprendi que os silêncios podem encobrir segredos e explicações. Quando lhe perguntei por que razão chegava pontualmente atrasado à escola, explicou.
- Professor, tu sabes que a minha mãe é puta, não sabes? - Sei. Mas o que é que isso tem a ver com o chegares à escola só às dez horas? - Professor, tu sabes que eu tenho pai, não sabes? Mas ele diz que não é meu pai. A minha mãe disse-me que o meu pai é aquele cliente que vai lá a casa, nos sábados, à noite. E eu soube que esse senhor, que diz que não é meu pai, mas que é meu pai, tinha uma filha. Era minha meia irmãzinha, compreendes professor? Era filha do meu pai, que diz que não é meu pai, e da mulher dele, que não é a minha mãe. Compreendes, professor? - Compreendo. Mas o que é que isso tem a ver com... - É que eu pedi ao meu pai para brincar com a minha irmãzinha e ele disse-me que, se eu me aproximasse dela, me dava um tiro nos cornos. E eu nunca pude brincar com ela. - Não pudeste, mas poderás, daqui a algum tempo, quando... - Não posso, professor! A minha irmãzinha morreu atropelada. É por isso que eu chego todos os dias às dez. - Explica lá! - Desde que a minha irmãzinha morreu, eu não ando bem comigo. Sinto uma coisa cá dentro... Quando acordo, vou até ao jardim do centro, roubo umas flores e vou até ao cemitério. Salto o muro sem o guarda me ver. Limpo a campa da minha irmãzinha, ponho flores fresquinhas para ela, sento-me ao lado dela e falo sobre a minha vida, as minhas tristezas... E – olha, professor! – quando venho embora, para a escola, eu digo-lhe sempre: Minha irmã, prometo que, quando for grande, vou comprar uma pistola e vou matar o nosso pai! Com o Marco aprendi o porquê de silêncios que encobrem segredos. Com a Soraia, aprendi que os silêncios podem conter mistérios. A Soraia era uma menina “difícil” – como disseram os seus professores e colegas – pois se quedava num mutismo inviolável. Se lhe dirigiam alguma pergunta, olhava para o chão. Ao cabo de alguns dias de prudentes aproximações, logrei uns instantes de atenção. Tantas perguntas lhe dirigi, que dela obtive uma breve fala: - Vejo coisas. Mas os outros meninos fazem troça de mim. Até a minha mãe me diz para ter juízo... - Eu acredito que tu vês coisas. - Você acredita? A sério? - Sim. Que coisas vês? - Um menino de camisa de mangas aos folhos, que sai de uma pedra, na eira do cafezal, todos os dias, por volta das três da tarde. Volta a entrar na pedra, quando o sol vai embora. Eu falo com ele. Não falo palavras, mas sei brincar com ele. As pessoas grandes dizem-me que ele não existe, que é imaginação... Você não tem medo do que eu estou dizendo? - Não. Porquê? Deveria ter?... Sorriu. Fomos brincar na eira do cafezal. Porque nem só do cognitivo vive o homem e porque o Caeiro, há já um século, escreveu o essencial: pensar é estar doente dos sentidos.
José Pacheco
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