Página  >  Opinião  >  Um conto suave

Um conto suave

Manuel Rambóia não sabia o que fazer da vida. O padre Antonio Ordoñez, antes de o ser, fora um reputado crítico de arte espanhol. (Pelo menos tinha nome disso). O próprio Rambóia, quando se deslocava de Castro Marim a Espanha, ia dizendo em todos os lugares que era crítico de arte. Acrescentava inúmeras considerações sobre como entender os livros de Eça, Serpa Pinto, Alexandre Herculano, Unamuno, Ortega ou Stephan Jay Gould. Apreciava especialmente “O Polegar do Panda”, dizia. Aliás achava que o Panda tinha mesmo ar de quem tinha polegar, tal como o título do livro sugere…

Quando lhe perguntavam em que escorava as suas lúcidas considerações respondia sempre: “Antonio Ordoñez, lo dijo”! Com tal citação, a assistência quedava-se muda, petrificada, com o nome deste crítico que devia ser daqueles seres que nada escrevem, mas são imprescindíveis para que todos os outros entendam o que alguns escreveram e escrevem. Na realidade, se um poeta (d)escreve um movimento pendular “com tendência para a direita”, dizia Rambóia na esteira de outros críticos, isso significava que o autor pretendia elogiar a postura de direita, politicamente falando... E outros exemplos acrescentava, quando entrevistado num canal regional de televisão, por uma locutora pardacenta, com voz de relógio de cuco, que lhe fazia lembrar a imagem da “mosca morta”. “Se – dizia empinando-se – Sarabando diz que devemos votar em branco, isso é uma evidente demonstração de racismo!”

A entrevistadora embeveceu-se de tal modo com esta clarividente frase que, diz-se ainda hoje, lá para os lados de Ayamonte (pronunciado por eles “haja monte” – em português – (castelhano com sotaque argentino) – vá lá saber-se porquê, nós que não somos críticos literários), diz-se, portanto em Ayamonte, que ela e ele foram para uma interminável noite de rambóia, daquelas coisas que por vezes acontecem, fazendo coincidir o nome de alguém com um acontecimento. Esta circularidade nos acontecimentos, hipótese hoje corrente no chamado Modelo Standard do Universo, pois podemos viver num Universo número n, depois de infinitos “Big Bangs” (explosões seguidas de expansões) e “Big Crunchs”, grandes esmagamentos, incomodava Rambóia enquanto esmagava com os seus poderosos dentes um enorme hambúrguer, um verdadeiro “Big Crunch”!, pensava para si, deleitando-se com aquela carne horrenda.

Afinal, pensou ele, se há tanta gente a ganhar a vida à custa da Filosofia, cuja morte se anuncia sempre e não morre, proporcionando entretanto a vida a inúteis supostos professores de tal inexistente assunto, se tanta gente explica aos outros o que queriam dizer os Ramsés quando um dia decretaram que os crocodilos eram divinos e o boi-ápis também, e eles (os Ramsés) idem, todo o Egipto trabalharia nesta vida em função da outra, à chicotada, mas apenas para os Ramsés, construindo imensas pirâmides, que caso não houvesse a tal “outra vida” serviriam como atracções turísticas milénios depois de feitas, se tanta gente explica como Deus é, e à falta de argumentos quando eles escasseiam diz que os Seus Desígnios são insondáveis, afinal deveriam ser insondáveis para todos nós, ou não?

Teve Rambóia uma iluminação, parecia mesmo uma luz eléctrica, “um Iluminismo”, contaria depois ao Caleca, seu companheiro de comezainas… Rambóia foi-se embora para o sopé de uma colina, deixou de querer ser padre, intitulou-se “O Santo do Sopé” e começou a explicar, do cimo de um pipo, pois que assim estava mais próximo do Sol, que se havia de adorar S. Crisolo, S. Gorislano e S. Talabitom. Na realidade, confirmando uma sua já velha intuição, teve seguidores em número crescente. Pois se há quem tenha adorado crocodilos, bichos simpáticos, aquelas boquinhas tão belas, as línguas maravilhosas, dentes alinhados, bois, vacas e gatos, Ramsés de todas as eras, Baco, que criou o vinho, como explicou um percursor de Rambóia, por que não adorar outros e alimentar o nosso artista?

Carlos Mota
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo