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“Ir para a rua é fazer acontecer”

“Uma rua que nunca tenhas visitado é um livro que nunca leste! Nunca vais saber o que estás a perder!” [Mehmet Murat Ildan, tradução livre]

Foi na rua que tiveram lugar alguns dos maiores acontecimentos históricos, como o 1o de Maio de 1886, o Maio de 68, o 25 de Abril, a Primavera Árabe, revoluções, manifestações, ações coletivas, individuais, anónimas... É na rua que quase tudo acontece. E “ir para rua é fazer acontecer”. A PÁGINA também saiu à rua, e falou com o sociólogo João Teixeira Lopes, para tentar perceber os múltiplos significados da rua, e ainda com o artista Hazul, com a arquiteta Ana Crista, com o dirigente sindical Henrique Borges e com o fotojornalista Manuel Roberto, que nos deram as suas visões de rua.

 

A rua é quase sempre notícia, porque é nela que passamos parte do nosso dia, porque é nela que a população se reúne para protestar ou para celebrar, porque é nela que muitos artistas se expressam, porque é ela que conta, à sua maneira e das mais variadas formas, muitas histórias: do povo, da localidade, do país. “A rua tem chamado a nossa atenção, em particular, devido a alguns acontecimentos políticos recentes. A rua aparece como o epicentro, uma espécie de lugar onde todas as energias se concentram. E por isso é altamente propícia à efervescência coletiva, à ritualização das práticas sociais e surge como uma espécie de excitante simbólico. A rua aciona uma série de significados que aparecem intimamente relacionados como de possibilidade, abertura, contacto, contágio, contaminação. E nesse aspeto, é uma poderosíssima metáfora”, explica João Teixeira Lopes.

Mas se, por um lado, pensamos na rua como um espaço livre, onde podem estar todos, sem exceção, a rua também conduz a algumas ilusões, alerta o sociólogo. “Há hoje uma série de estudos no âmbito da Sociologia Urbana que mostram como a rua tem vindo a ser privatizada crescentemente. Há ruas que são tudo menos públicas, que são apropriadas de forma exclusiva por certos grupos sociais ou castas. Há estudos que mostram também que a rua é hoje um lugar de vigilância. As nossas ruas estão a ser filmadas, as nossas deambulações estão a ser registadas. E há até a questão de ‘estados de exceção’. Nos Estados Unidos chamam-se a isso bubble laws, isto é, se se considerar que aquela rua pode ser o local de um qualquer episódio classificado como terrorista ou ilegal, as leis podem ser suspensas. E isso significa que os nossos direitos podem ser suspensos. A rua enquanto sinónimo de liberdade, de espaço público coletivo, atravessado por todos, tem hoje cada vez mais exceções. O poder tem, evidentemente, medo da rua, do potencial subversivo excitante que a rua constitui.”

Obviamente, o espaço público “não é anárquico”, precisa de ter regras de civilidade, de estar em conjunto, que fazem parte de uma “linguagem partilhada”, para que “as nossas ações sejam previsíveis e nós não tenhamos necessariamente de lidar com o imprevisto, sempre que saímos à rua”. Embora, “se nós temos uma segurança permanente nas nossas ações, nunca nos questionamos, e se temos uma segurança total, nunca fazemos nada de diferente”.

Mapas mentais. Que significado damos à rua? O que determinada rua pode significar para uns, e o simbolismo que lhe é atribuído, pode ser para outros completamente indiferente. E se uma rua é especial para uns, para outros é uma rua qualquer. Além disso, a forma e a estética de determinada rua interferem na escolha do local para um certo acontecimento, independentemente do seu cariz.

João Teixeira Lopes fala mesmo de mapas mentais, cognitivos, que nem sempre correspondem aos mapas administrativos ou topográficos. “Nós tendemos a dar a certas ruas muito mais importância do que elas têm na verdade, em termos de escala, por exemplo. Ou a representar certos espaços como muito mais abertos ou mais fechados do que são na realidade. E isso está muito ligado ao que Kevin Lynch chamava, nos anos ’60, a legibilidade da cidade – ruas legíveis, que são ruas que favorecem a imaginabilidade, dizia ele. Isto é, múltiplas formas de comunicar aos outros o que sentimos em relação a um determinado espaço”.

E Teixeira Lopes desafia-nos para o exercício de nos relacionarmos com certos espaços, criando um 'link' entre uma rua e um episódio da nossa vida pessoal, uma música, um texto, uma pessoa ou uma pintura. “Fazer uma série de ligações que nos permitiriam ter uma espécie de mapa em múltiplas dimensões, que dão conta também de como é complexa a nossa experiência de vida.

Isso reflete-se imenso no espaço.” E acrescenta: “O urbanismo abre e fecha possibilidades de vida na cidade. A forma como as ruas são desenhadas, a forma como são mobiladas, abre ou fecha possibilidades à nossa ação.” O sociólogo remete para o urbanismo de Georges-Eugène Haussmann, figura importante no planeamento da capital francesa, criando 'boulevards' imponentes e geométricas, que entre outras coisas pretendiam “impedir que as classes perigosas, as classes populares, se apropriassem dos mil atalhos que as pequenas ruas de traçado medieval significavam para se escapulirem à repressão policial. Por isso, aquelas ‘ruas-corredor’ são muito fáceis para que a ordem se imponha, para que o centro mande nas diferentes periferias”.

O certo é que a rua permite sempre “usos não planeados”. A Casa da Música, no Porto, é um exemplo. As ‘ondas’ exteriores que Rem Koolhaas construiu não foram pensadas para os skaters, mas são um local de eleição para esses praticantes, o que também é aceite pela instituição. “Por um lado, dá uma visão cosmopolita da cidade, de abertura institucional, mas é uma forma do próprio poder institucional recuperar a desordem que ali se criava com os skaters e com os desportos radicais. Ou seja, enquadrá-los, chamá-los para uma imagem positiva da instituição, para a imagem que a instituição quer transmitir sobre a música – não como algo fechado, formal, algo necessariamente clássico. Os miúdos a fazerem skate são também propícios a que se crie essa imagem estimulante da música, em vasos comunicantes.

Mas esse uso não estava previsto. Por isso, acho que a qualidade de um espaço público ou de uma rua também se pode medir pela potencialidade. A rua que propiciar maiores e mais plurais usos, ainda que contraditórios, será porventura uma rua que do ponto de vista do urbanismo, tal como eu o entendo, está melhor desenhada.”

 

 

A “gentrificação” das cidades. Os diferentes usos dos espaços, os hábitos dos cidadãos, podem levar a sentirmo-nos mais ou menos seguros na rua. João Teixeira Lopes defende que uma cidade “será tão ou mais segura quanto mais propiciar a interação” e que o medo e a insegurança resultam “dos enclaves, às vezes fortificados, até com muros e com grades, que se vão criando nas cidades”, pois são entendidos como espaços onde pode haver algum perigo. Mas a mistura de usos e de perfil de utentes é, na opinião do sociólogo, amiga da segurança.

“Se vou para a rua e encontro pessoas parecidas comigo, social, étnica e culturalmente, supostamente sinto-me seguro. Provavelmente, isso significa que é uma sociedade profundamente desigual e numa sociedade assim o risco de insegurança é muito maior. Se, porventura, nessa rua houver interação entre diferenças – de género, de etnia, de classe social – isso significará uma sociedade potencialmente muito mais integrada. Mas nós tendemos a pensar o contrário, a querer a mesmidade e a ter um medo patológico da diferença. E por isso é que os espaços públicos são higienizados, por isso é que se fala hoje tanto em “gentrificação”, que vem do inglês gentry e tem a ver com o ‘enobrecimento’ de certas zonas da cidade que estavam degradadas e onde a insegurança supostamente grassava. Então, com uma reutilização do ponto de vista cultural, cria-se um novo ambiente, que faz aumentar o preço dos terrenos, que por sua vez traz novas pessoas, numa espécie de círculo que transforma completamente o espaço e o torna altamente homogéneo do ponto de vista social.” Por vezes, essa homogeneidade torna o espaço “impermeável” a outros usos e classes sociais. “A ‘gentrificação’ das cidades é, creio eu, um dos indicadores mais poderosos das desigualdades sociais e do medo do outro.”

Consciência do outro. A rua é comunicação, entre nós e os outros, entre nós e a cidade. E há várias formas de nos comunicarmos, seja através do corpo, da arte e outras expressões. Os graffiti são formas de expressão características das cidades. E apesar de as assinaturas em paredes não serem propriamente uma obra de arte e de serem, “do ponto de vista urbanístico, um ruído”, elas “exprimem algo e isso deve ser compreendido e entendido, não meramente punido e não meramente ostracizado”.

Outro tipo de graffiti já não desagrada a Teixeira Lopes, que considera que os cidadãos são muito tolerantes com os ruídos urbanos oficiais: a publicidade, os anúncios, os sinais de trânsito, a sinalética, “com a poluição visual a que as cidades hoje estão sujeitas”. “Somos muito pouco tolerantes com a expressão urbana, a expressão pictórico-urbana das vivências”, sublinha. “E isso prende-se, creio eu, com a questão da mesmidade e da homogeneização. A diversidade de inscrições, para além de ter de ser compreendida, porque exprime vivências, é também uma potencialidade para a cidade. Posto isto, não estou a dizer que todos os graffiti devam ser permitidos; o que digo é que também fazem parte de uma vivência urbana, em particular aqueles com maior carga pictórica.”

Para o sociólogo, “a vida na cidade e a vida nas ruas não nos leva necessariamente à consciência do outro, à consciência do comum”. É por isso, por vezes, e para muitos, um mero lugar de passagem e não um lugar de socialização. Por outro lado, por vezes, “encaramos o viver na cidade como um permanente evitar de obstáculos”, em vez de nos deixarmos mergulhar neles. E estudos sobre as práticas de lazer dos portugueses e dos europeus revelam que os tempos domésticos são os mais preenchidos. Isto tem a ver com várias questões. Além das dificuldades económicas, há muitas vezes falta de incentivos do próprio espaço público. “Quando não há oferta cultural, estruturada e aliciante, há menos razões para sair. Ou quando nós próprios não temos hábitos culturais, não temos códigos que nos permitam fruir de manifestações culturais que se passam em espaço público.”

E há, ainda, o sentimento de insegurança. “Quando o espaço público é associado à selva, ao crime, ao medo, à insegurança, evidentemente ficamos em casa. E isso muitas vezes é explorado de forma política, porque há uma série de trabalhos que mostram como a insegurança subjetiva não bate certo com a insegurança objetiva. Dito de outro modo, os dados que temos sobre a perturbação da ordem pública, das ofensas às pessoas, dos crimes, etc., não correspondem ao grau tão elevado de insegurança que sentimos subjetivamente. O que quer dizer que há uma exploração mediática, política, comum até, sobre essa questão.”

Potencial liberdade. A rua é também um indicador para quem quiser perceber as desigualdades sociais. E em tempos de crise, multiplicam-se as filas para os apoios institucionais, aumenta o número de pessoas carenciadas, a pedir, a dormir e a vasculhar o lixo. Nas ruas há um pouco de tudo, porque a diferença abrange tudo. E histórias, muitas. Não só das pessoas que nelas circulam, mas também dos acontecimentos lá passados, dos edifícios que identificam épocas e se misturam. Passado, presente e futuro.

E se muitas conquistas foram feitas na rua, isso significa também uma vitória contra o medo. Acima de tudo, porque “quando se vai para a rua fazer uma revolução, não se tem a certeza de que esteja ganha de antemão”. “Ir para a rua é fazer acontecer. A história não está decidida, não está necessariamente do nosso lado. Os amanhãs que cantam podem não cantar, mas eu estou lá na rua para o que der e vier, mesmo que possa ser derrotado. E por isso é que também há uma grande aprendizagem nas derrotas.”

Não devemos, por isso, acrescenta João Teixeira Lopes, “cair na crença fácil de que está ganho”, pois se assim for ninguém sai à rua. “E é um ato contra o medo. Quando ouso sair à rua para mudar a vida, simplificando, significa que antes disso já fui senhor de uma grande vitória e que é a vitória contra o medo. Estes movimentos de efervescência, de visibilidade, são uma forma também de vencer o medo. O medo só se vence na publicitação das existências comuns, quando sabemos que há outros como nós, quando somos capazes de fazer pontes e de nos mostrarmos.”

No fundo, rua é sinónimo de potencial liberdade. “A liberdade encontra um amplo campo de possibilidades na rua. Diria assim.”, conclui o sociólogo da Universidade do Porto.

 

ORA DIGA LÁ… JOÃO TEIXEIRA LOPES

Comunicação. “A rua é comunicação. O corpo é comunicação. O corpo na rua é comunicação, e muito interessante, porque estimula uma ligação entre o artificial, o construído, o edificado, e os aspetos orgânicos, biológicos, e a mediação social, cultural. A complexidade da rua está intimamente ligada às mil e uma possibilidades que ela abre à comunicação. Sendo ela própria um objeto, a rua é também um veículo dessa comunicação. E o nosso comportamento corporal nas ruas, muitas vezes, é sinal de que não queremos a dita complexidade. Por vezes, encaramos o viver na cidade como um permanente evitar de obstáculos: um grupo a pedir assinaturas, a pedir esmolas, a cantar, a vender bugigangas. Porque tudo é considerado obstáculo. É claro que precisamos de privacidade na cidade, mas importante é fazer o trânsito entre o privado e o público, entre os mundos diferentes que coexistem na cidade. Esse trânsito é que é o interessante, não o enclausuramento, não o viver constantemente para evitar os obstáculos. Evitá-los sim, às vezes, mas outras vezes mergulhar neles, deixarmo-nos penetrar pela rua.”

Identidade. “A rua, a cidade, o urbanismo, exprimem especificidades culturais. E sob esse ponto de vista, a dicotomia público/privado está muitas vezes ligada a diferenças culturais. Até a forma como gerimos as nossas distâncias pessoais está ligada a mediações culturais. Para alguns, estar a um metro de distância é muito; para outros, é muito pouco. E isso, evidentemente, tem relações com identidades culturais. Com o urbanismo genérico, que não tem propriamente o sentido de lugar, vai-se perdendo muito essa identificação, porque a certa altura acordo numa rua e posso estar em qualquer parte do mundo. E se isso acontece, também significa que não estou em lado nenhum, aquela rua não me diz nada, pode ser uma rua de um novo bairro em Londres ou de um novo bairro em Deli. O urbanismo é igual. Esse urbanismo genérico, a meu ver, é uma receita de negócio arquitetónico, mas não me parece ser necessariamente um sinal de sucesso identitário.”

Deambulação. “Darmo-nos ao luxo de nos perdermos nas ruas significa que, entre outras coisas, conseguimos inverter aquilo que é a tirania dos horários, do sentido único, de um destino preconcebido. A deambulação, ou a bifurcação, é aceitar que mais uma vez há múltiplas possibilidades para a nossa própria existência. Quando existir não significa abrir possibilidades e significa uma via de sentido único é provavelmente o fim. A deambulação é uma aprendizagem da própria existência, creio eu. Há múltiplos caminhos, embora todos eles sejam terminados e são obviamente influenciados pelos recursos sociais e económicos, mas há sempre múltiplos caminhos. E a arte de aprender que há múltiplos caminhos é algo que a cidade também nos pode incutir.”

O outro. “A rua é aprendizagem, também, mas uma aprendizagem lúdica. A rua como lugar de jogo, de aleatório. Uma questão muito interessante: é possível fazer rua online? É possível que a vivência da rua se possa reproduzir no ciberespaço ou há algo que se perde necessariamente? Eu acho que há algo que se perde. Não há nada mais complexo do que interação em situação de copresença. Nenhuma tecnologia é tão complexa como a comunicação face a face. E por isso, podemos estar a criar, sem querer ser catastrofista, uma certa iliteracia do sensível, isto é, da sensualidade que é preciso ter nessa comunicação face a face – sensualidade quer dizer a ativação de todos os sentidos, de todos os indícios que nos permitem dizer alguma coisa sobre o outro e sobre o estar com o outro numa determinada situação, como por exemplo numa rua.”

Casa. “A rua é casa para muitos, para aqueles que estão em situação de maior exclusão. Casa significa prolongamento da personalidade, intimidade... Eu gostava que as casas existissem de porta aberta e gostava que entre o espaço privado e o espaço público houvesse trânsitos permanentes, ou seja, que para todos, de alguma forma, a rua também fosse a casa, ou que fosse uma outra maneira de dizer casa. Isto não é para se confundir a rua com a casa, porque se as confundirmos elas deixam de fazer sentido. Temos de ter bastante clara a diferença entre espaço privado e espaço público, mas temos de nos sentir à vontade também na rua, à vontade com a diferença, com os imprevistos.”

Passado e futuro. “A rua guarda as marcas do tempo, a história. Por isso é que nós temos várias camadas nas ruas. E o urbanismo genérico quer fazer esquecer essas memórias, como se só existisse o aqui e o agora, o instantâneo que se construiu. Sou contra a ideia de que a rua só vale pelo seu passado. Acho que ela vale pela possibilidade dos vários tempos se cruzarem no presente. O que é o presente, se não passado, presente e futuro? Está tudo aqui. Não pensemos no passado, nomeadamente a partir das cidades e das suas manifestações urbanísticas, como alguma coisa que já acabou e não pensemos no futuro como alguma coisa que vai começar. Pensemos no passado como estando ainda aqui e agora e pensemos no futuro como estando já a começar. E pensemos nas nossas ruas e na nossa experiência social dessa maneira. No presente coexistem os tempos todos.”

 

ANA CRISTA

A rua é o elemento organizador do espaço urbano

 

A conversa com Ana Crista começou na Rua do Almada, a primeira grande rua do Porto a ser aberta fora das Muralhas Fernandinas. Foi pensada por João Almada e Melo, principal responsável pela organização do espaço na Baixa do Porto, e teve “um papel fundamental na cidade”. Foi neste troço antigo, com história, que a arquiteta quis dar a sua definição de rua, “o elemento básico organizador do espaço urbano, o espaço público por excelência, e formador da estrutura urbana”.

Ana Crista, de 44 anos, é arquiteta de edifícios. Olhando para eles, observando as suas fachadas, percebem-se as épocas que muitas vezes se misturam harmoniosamente. “Têm histórias diferentes, têm épocas diferentes. O fundamental é que se vão conjugando bem umas com as outras. Há situações em que se vê arquitetura moderna com arquitetura renascentista ou mesmo barroca, e que até acabam por conjugar-se de formas muito interessantes, mesmo com proporções e volumes distintos.”

Há ruas muito diferentes e a Arquitetura e o Urbanismo podem ajudar a distingui-las. “Muitas vezes o que as distingue é a pavimentação (materiais de revestimento, texturas, cores, etc.), se são espaços de estar ou de andar, se têm árvores ou não, se os passeios são mais largos ou mais estreitos... Depois também as fachadas, se são em plano contínuo, se têm mais ritmo porque há reentrâncias e saliências ou se são fachadas muito semelhantes e com traçados muito regulares”, explica. E ainda há a ter em conta os tipos de materiais utilizados, que lhes dão unidade e coerência. “O granito, o azulejo e o ferro sempre foram materiais muito usados, mas, por exemplo nas fachadas características do Estado Novo, veem-se muito mais os mármores e as fachadas são muito mais amplas.” As cores passaram a sobressair mais com os loteamentos mais largos e com os panos de fachada de maiores dimensões.

“Nas fachadas mais típicas do Porto, os loteamentos são muito estreitos e as fachadas têm as janelas com intervalos mínimos, pouco se vê o azulejo, por isso é que dizem muitas vezes que o Porto não tem cor. Acho que isso está errado, o Porto tem muita cor. Só que como predomina o granito e este vai ficando envelhecido e mais escurecido, e depois as molduras com a patine e as guardas de ferro que são quase sempre pintadas de escuro, tudo isso acaba por esconder os azulejos, que são sempre coloridos. As cores muito usadas no Porto são o rosa velho, o ocre e o azul”, acrescenta. Umas mais estreitas, outras mais largas, com janelas distanciadas ou mais próximas, com mais sombras ou mais luz. Assim se vão criando “ambientes e vivências diferentes”.

As ruas, as suas formas e os seus edifícios ajudam também a retratar a sua população. Mas não só. Os hábitos das populações também interferem na dinâmica da cidade. “Num destes dias ouvi alguém dizer que até era um crime se, por exemplo, naquelas ruas da Ribeira ou de Miragaia, se começassem a esconder as roupas que estão a secar nas varandas e nas janelas. Aquilo dá um colorido e uma identidade própria àquele sítio. E aqui no Porto acontece muito isto, roupa a secar nas varandas”, refere Ana Crista.

Dos tempos mais antigos sobram-nos ruas estreitas que caracterizam os centros históricos. E à medida que nos vamos afastando também no tempo, as ruas já são pensadas de outra forma. “Quando uma pessoa vê o casco urbano dos primórdios da cidade vê ruas mais sinuosas, tortuosas e mais íngremes, porque acompanham sempre a forma do terreno. Quando há um plano e se abrem eixos novos já se tenta fazer tudo mais plano, embora acompanhem sempre as quotas do terreno e os declives. Mas tudo se torna ordenado e mais geométrico.”

E até isto influencia o modo como se anda na cidade. E se, por um lado, as zonas mais antigas suscitam mais curiosidade pela sua história, por outro, essas ruas são mais sombrias porque as casas estão mais próximas. Nas avenidas, há mais luz, os espaços são mais amplos e as fachadas mais visíveis. “Numa rua mais larga acabamos por ter uma perspetiva muito diferente das fachadas do que em ruas muito estreitas.” E quanto mais apertada for a rua mais lenta é a circulação automóvel, por exemplo. “E mesmo as pessoas acabam também por andar de forma diferente do que numa avenida. Ou numa marginal, quando vão a passear e têm uma paisagem mais aprazível.”

 

HAZUL

Fazer algo harmonioso ou bonito é por si só um ato contestatário

 

Começou a pintar nas ruas com 16 anos e agora, aos 33, Hazul é um artista de referência nesta arte. Este caminho começou a ser traçado a partir da sua vivência na rua, do seu encontro com os amigos, do seu interesse pelo movimento do hip hop. E do graffiti das letras, das assinaturas, aproveitou a experiência para tentar outros desenhos e outra forma de comunicação. Pretende que o seu trabalho seja “uma mais-valia para a cidade”, dando uma nova cara a locais degradados.

“Quem faz graffiti olha para a cidade como se fosse uma extensão da sua casa ou do seu quarto. Quando somos adolescentes gostamos muito de decorar o quarto com posters e imagens de que gostamos, e às vezes a cidade também pode ser vista dessa forma, não a tomando como sendo só nossa. Sei que às vezes pode ser um bocadinho abusivo, mas essa liberdade/abuso/mais-valia é uma característica da street art”, explica o artista portuense.

Hazul não escreve, apenas desenha e pinta, e não tenta explicar o significado do seu trabalho. Interessa-se mais pela comunicação, em ouvir a opinião dos outros sobre isso. “Se quisesse uma mensagem muito explícita escrevia ou fazia um desenho muito explícito, e eu gosto de deixar em aberto as interpretações. O meu objetivo é sempre pintar e ser uma mais-valia para o local onde fiz essa pintura”, garante. Mas um pouco por toda a cidade espalham-se assinaturas, frases, desenhos. “A rua é um local onde toda a gente intervém e aí ficamos sujeitos à moral e à consciência de cada um. E por isso é que vemos coisas que são completamente dispensáveis e coisas que são interessantes a nível de comunicação e de expressão artística”, refere, afirmando-se de “consciência limpa” por achar que, de cada vez que pinta na rua, não está “a ofender, a agredir ou a destruir”.

Do graffiti das letras, como ato de afirmação entre grupos, também se encontram muitas frases de protesto. Hazul expressa-se de outra forma. Até porque defende que nos tempos que correm, com a crise que deixa as pessoas deprimidas, “fazer algo que tenha como objetivo ser harmonioso ou bonito é já por si só um ato contestatário”. Por isso, não faz o seu trabalho “a pensar na medida do Governo desta semana”. “Num mundo ‘desequilibrado’, que é a minha perspetiva atual das coisas, fazer qualquer ato de equilíbrio é sempre um ato contestatário. Não tenho como centro da minha expressão artística a sociedade e as suas deficiências, mas sim a beleza ou a harmonia.” Pinta em locais abandona- dos, não para contestar, mas pela pintura em si. No entanto, “acaba por ter também esse cariz de sinalizar a degradação do local público”. E o feedback tem sido positivo.

Hazul passeia-se pelas ruas e, embora também consiga estar apenas a sentir a pulsação da cidade, está ao mesmo tempo a ver locais novos para pintar. Quando a missão é só essa, vai muito mais atento aos pormenores. Pintar é coisa em que não pensa, no entanto, quando está num jardim, por exemplo. “Isto de fazer graffiti, de pintar na rua, está muito ligado à ideia de cidade e dos muros constantes. O que não se verifica no campo ou num jardim, onde é tudo muito mais aberto, não há tanto cimento e às vezes nem há tanto a necessidade de embelezar, porque as coisas já estão bem por si só. Penso que numa cidade, com tanta parede e tanto muro, a pintura na rua tem muito mais sentido”, sublinha.

Na opinião de Hazul, a rua pode ser sinónimo de liberdade de comunicação, pois é “um local propício ao encontro, à troca de ideias e de comunicação entre as pessoas”. A rua é assim mais um espaço de encontro. De liberdade também, embora veja a liberdade de uma forma mais abrangente. “Naturalmente seremos pessoas livres, mas depois são colocados muitos obstáculos. E a rua também tem isso. Tem a vantagem da facilidade de encontro, mas depois tem a dificuldade de partilha de espaço. Tanto é um local de encontro, como é um local que isola e que divide.”

 

HENRIQUE BORGES

As lutas dos trabalhadores devem ter sempre expressão pública

 

Sair à rua para lutar pelos direitos de uns e de outros, para protestar, para celebrar. Muitos são os motivos que levam os sindicatos a fazer grande parte das suas ações em locais públicos. Para que todos vejam, saibam e participem. Henrique Borges, 58 anos, é dirigente sindical e, quer no âmbito da Federação Nacional dos Professores (Fenprof), quer de uma frente sindical mais geral, como da União dos Sindicatos do Porto ou da CGTP-IN, defende que “as lutas dos trabalhadores, sejam as que tenham a ver com a fábrica, com o escritório ou com a oficina, devem ter sempre uma expressão pública, isto é, não devem ficar fechadas, não se devem circunscrever à fábrica, ao escritório ou à escola”. Sobretudo neste momento que o país está a atravessar, frisa. A intervenção na rua pode ter um efeito contagiante, e “aquelas pessoas que têm algum receio de se manifestarem, vendo outras a fazê-lo, às tantas ganham coragem ou perdem a vergonha e manifestam-se também”.

Para uma ação sindical organizada, o local é um dos elementos a ter em conta. “Aqui no Porto, a Praça da Liberdade tem um significado especial, porque já antes do 25 de Abril se passava a ideia de ‘Todos à Praça’. E aqui, quando se diz ‘Todos à Praça’, já sabemos que é a Praça da Liberdade.” São escolhidos locais históricos e com uma forte carga simbólica.

Mas os protestos podem dar-se em qualquer lugar, como no local onde um ministro se encontre, por exemplo. Henrique Borges revela que lhe dá um “gozo especial” quando os governantes não saem pela porta da frente. “Dou muita importância à intervenção de rua, de contestação aos membros do Governo, quando eles se deslocam a determinado sítio, porque isso mostra-lhes que não são donos do país, que não podem fazer aquilo que querem de uma forma impune. Ter gente a contestá-los e eles verem-se obrigados a entrar ou sair pelas traseiras, pela garagem, pelo sótão ou pela cave dá-me um prazer enorme, porque isso mostra o receio deles.”

A contestação pode acontecer também no sítio onde é preciso lançar um alerta, no centro do problema. Como junto a postes de alta tensão, onde protestaram há uns tempos autarcas portugueses e galegos. “Foi no local onde as coisas iam acontecer que entenderam manifestar-se.” E depois há também a ter em conta questões simbólicas. “A última manifestação aqui no Porto foi a das pontes. Tenho impressão que uma boa parte do sucesso em termos da participação significativa de pessoas teve a ver também com o simbolismo que a ponte trazia consigo: de passagem, de sair de um sítio e ir para outro, para outra realidade.”

As pessoas estão a sair mais para a rua. O dirigente sindical lembrou que as comemorações do 25 de Abril contaram com mais pessoas este ano do que em anos anteriores. E em ambiente de festa, o povo vai deixando, das mais variadas formas, as suas reivindicações. E se é de Liberdade que se trata, “o 25 de Abril só faz sentido na rua”, da mesma forma que uma festa popular como o São João tem de ser celebrada na rua. “Não faz sentido as pessoas estarem em casa.”

Henrique Borges considera que “em muitas situações dá-se um carácter festivo à reivindicação política ou às questões políticas” e que “o 25 de Abril já foi mais festa do que agora”. A Praça já chegou a parecer uma feira no dia da Revolução dos Cravos, algo que até desagradava ao dirigente sindical, mas que agora mostra que hoje em dia não há tantos motivos para festejar, mas sim para reivindicar. “Mas há essa associação entre a festa e a reivindicação”, afirma, lembrando que no São João, antes do 25 de Abril, a população aproveitava para protestar, “lançava alguns panfletos ao ar”. E na rua, sempre.

 

MANUEL ROBERTO

O melhor da vida mundana, do quotidiano, é sempre na rua

 

Há cerca de 25 anos que o seu trabalho é feito na rua, porque é lá que tudo acontece. Ou não acontece. Primeiro nas ruas de Maputo, Moçambique, depois nas ruas do Porto. Manuel Roberto, 48 anos, fotojornalista do jornal Público, defende que mais vale estar na rua, apanhar um bom instante e fazer uma boa imagem, do que não estar. Até para que não se falhe nada do que possa acontecer. “A rua é por excelência o local de trabalho de um fotojornalista, porque este numa redação não faz rigorosamente nada. É possível fazer uma reportagem entre portas, sim, mas o melhor da vida mundana, do quotidiano, é sempre na rua. Um fotojornalista tem de sair, tem de estar em contacto com as pessoas, tem de acompanhar a evolução de uma sociedade. E isso é tudo na rua.”

Guardar momentos únicos, contar histórias ou retratar apenas o dia a dia. Captar o que os olhos veem. Fica tudo gravado numa imagem, embora uma fotografia seja sempre, na sua opinião, “uma representação da realidade”. É sempre o ponto de vista de quem está a fotografar. No seu caso, e tendo em conta o sentido de informação por ser fotojornalista, tenta sempre mostrar a realidade, mas frisa que é sempre a sua abordagem, o seu ponto de vista. E quando se encontra na rua, por ser otimista, procura sempre o seu melhor, mesmo quando a realidade é desagradável. Acima de tudo, tenta dar “dignidade”. À realidade e à fotografia. A fotografia que regista também “a evolução cultural, social, económica, da sociedade e isso faz parte do que é o documentalismo fotográfico”. E adiantou: “O que nós documentamos no dia a dia daqui a uns anos tem um valor histórico.”

As ruas transmitem sentimentos distintos que se prendem com a ligação que temos com elas, os bons ou maus momentos que nelas vivemos, as lembranças que guardamos. Manuel Roberto exemplifica esta teia com a Avenida dos Aliados. “Gosto daquela avenida. Acho que houve uma excelente intervenção arquitetónica de Siza Vieira, quando mudou completamente a praça. Mas não tem nada a ver com as grandes memórias que eu tenho dela. Hoje em dia passo pela Avenida dos Aliados e é uma nostalgia terrível. Lembro-me de ver a quantidade de gente deitada naquele relvado; eu próprio namorei naquele relvado. Trazia muito mais pessoas à praça. Com todo o respeito, está ali uma obra extraordinária, mas acho que retirou um pouco essa apetência das pessoas para irem para lá. É uma praça muito importante para a cidade, mas agora parece um pouco despida.” Os jardins talvez fossem mais atrativos para os portuenses. “Se calhar eram mais felizes naquela altura, não sei.”

Nas ruas do Porto, talvez devido às dificuldades que o país atravessa, o fotojornalista sente as pessoas mais deprimidas. Mais tristes do que nas ruas moçambicanas, com que pedimos que fizesse uma comparação. “Apesar das várias circunstâncias da vida, encontra-se nas ruas de Maputo muito mais alegria. Ainda não consegui explicar porquê, mas o que sinto, e se calhar tem a ver com a conjuntura também, é uma grande depressão nas ruas do Porto. Apesar de algumas dificuldades por que algumas pessoas passam em Moçambique, há muito mais vida na rua, as pessoas saem mais. Por exemplo, a partir das seis da manhã há um frenesim terrível nas ruas, as pessoas conversam, vivem muito mais na rua. Até no tipo de construção que se está a fazer agora, o quarto serve apenas para dormir”, referiu.

E a rua é também, por isso, comunicação. “Na rua estamos em contacto com outras pessoas, comunicamos, falamos, conhecemos gente, fazemos amizades. É na rua que tudo acontece, daí que também é comunicação por excelência. Uma troca de olhares, uma troca de gestos... Quando estamos na rua às vezes nem sequer precisamos de falar, as nossas atitudes falam por nós”, afirmou o fotojornalista.

Ao longo dos anos assistiu a vários, muitos, acontecimentos. De todos eles destaca a queda da Ponte Hintze Ribeiro. Manuel Roberto estava de folga, mas disponibilizou-se para ir a Castelo de Paiva fazer a cobertura. “O que vi lá foi horrível, o sofrimento e a angústia daquelas pessoas”, disse, frisando ter vivido esse momento intensamente. “Somos humanos e também sofremos com isso.”

Maria João Leite (textos)

Ana Alvim (fotografias)


  
Ficha do Artigo

 
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