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A experiência pedagógica das Escolas do Magistério

Uma esplanada foi o cenário para um encontro de amigos, ex-alunos da Escola do Magistério Primário do Porto ao tempo da que ficou conhecida como “geração da experiência pedagógica”. Em que consistiu o caráter revolucionário desse projeto formativo? O que recordam dessa geração? A “experiência pedagógica” deixou marca nos professores que são hoje?

 

Há 40 anos, o setor da educação, como o país em geral, fervilhava num mar de possibilidades que o Movimento das Forças Armadas desencadeou pondo fim a 48 anos de obscurantismo, ditadura e violência. A Escola era vista como motor da transformação democrática que os militares revoltosos propunham de forma mais ou menos consistente e que a adesão popular rapidamente transformou em exigência revolucionária.

Nessa perspetiva, as baterias foram apontadas em primeiro lugar à educação básica e, consequentemente, à formação de professores. As escolas do Magistério Primário passaram, então, por um processo revolucionário específico, que a memória futura viria a registar como “experiência pedagógica” – um período breve (apenas um ano letivo), mas que deixaria marcas referenciais de uma geração, como ficou patente durante uma tertúlia que a PÁGINA promoveu em abril último.

Uma esplanada em Serralves numa manhã solarenga foi o cenário para uma conversa que juntou, à volta de uma mesa no tempo breve de um café, Amélia Lopes, Ariana Cosme, Isabel Baptista, Manuel Rangel e Rafael Tormenta – todos alunos da Escola do Magistério Primário do Porto (EMPP) nos períodos revolucionário e contrarrevolucionário, ou seja, no exato período da experiência pedagógica (1974-75), da sua suspensão (75/76) e de resistência (76/77 e seguintes).

Revolução. Para nos situarmos face ao que estava em causa, acompanhemos Rogério Fernandes, que foi Diretor-Geral do Ensino Básico entre 1974-1976: “A escola, sob o ‘Estado Novo’, assentava na concepção de um ensino destinado a formar homens dóceis, com um grau de cultura rudimentar. Compreende-se, portanto, que a degradação do ensino primário tenha sido um dos seus fitos essenciais, complementado por duas vias diversificadas do ensino secundário e de severos bloqueios no acesso ao ensino superior. Compreende-se, portanto, que, sob o ponto de vista da formação dos professores, tenha desmantelado as escolas normais superiores e as primárias, baixando o mais possível o nível da formação.” – “o encerramento das Escolas do Magistério durante anos, a demissão dos seus professores, os acanhados horizontes dos seus currículos”, são efeitos dessa ação destrutiva [em Pedagogia Portuguesa Contemporânea, 1979].

Após o 25 de Abril, a Escola “é reclamada para o desenvolvimento económico e para a construção de uma nova sociedade, segundo um novo humanismo e as necessidades do povo” e “o professor passa a ser definido como alguém que deve contribuir para a formação de um Homem Novo, interveniente na sociedade democrática rumo ao socialismo” – ainda Rogério Fernandes (Educação - Uma Frente de Luta, 1977), conforme referido em Uma Revolução na Formação de Professores [ver caixa].

É, portanto, neste contexto de necessária democratização do ensino que as escolas do Magistério Primário avançam, em 1974-75, com profundas alterações curriculares, bem como ao nível do corpo docente e da sua organização, socorrendo-se de um decreto-lei de 1967 (10 de março) que previa a realização de “experiências pedagógicas”.

 

 

Contexto. Na oportunidade do 40o aniversário do 25 de Abril, o encontro promovido pela PÁGINA pretendia perceber em que consistiu o caráter revolucionário desse projeto formativo das escolas do Magistério Primário (no caso, do Porto), o que recordam os professores dessa geração e, sobretudo, em que medida a herança da “experiência pedagógica” conforma ainda, ou não, os professores que são hoje.

Tratou-se, pois, de reunir informalmente um conjunto de velhos amigos que continuam ligados entre eles, que são referências no panorama educacional português e internacional e que, não por acaso, mantêm uma íntima relação com a PÁGINA – entre os quais se contam também, por exemplo, Fátima Antunes e Rui Trindade, membros do Conselho Editorial que não puderam estar presentes.

O resultado foi uma conversa naturalmente densa, do ponto de vista pessoal, marcada por fatores de afetividade e subjetividade, com várias interpelações cruzadas (daí não ser integralmente reproduzível) e que “convocou” outros amigos e, sobretudo, grandes mestres: Gomes Bento, José Felizes, Teresa Maia Mendes, Pedro Mesquita, Fernanda Figueira, entre outros.

A par das referências individuais de cada um dos presentes, foi possível perceber que em todos havia, em pleno rescaldo da revolução, como há ainda, uma forte adesão aos ideais de liberdade, democracia e emancipação. Tal como partilhavam uma consciência crítica do momento histórico e uma crença sincera no futuro (algo ingénua, admitem): “enquanto futuros professores, todos nos víamos como agentes de mudança, com toda a responsabilidade inerente a essa consciência.”

Notas comuns. A efetiva valorização da Pedagogia como saber de referência dos professores, o ambiente afetivo e de proximidade relacional entre alunos, e entre estes e os professores, bem como a multiplicidade de experiências e vivências (escolares e extraescolares) de que foram protagonistas, são referências nucleares.

Relativamente ao protagonismo dos alunos recordam, por exemplo, que, dado o atraso na abertura do ano letivo 1974/75 (em pleno período revolucionário), foram eles próprios que tomaram a iniciativa de organizar atividades formativas. Um espírito de participação e envolvimento que se prolongou nos dois anos seguintes e se reforçou intensamente nos momentos de resistência e de luta contra a suspensão da experiência no consulado do ministro Sottomayor Cardia, que haveria de lhe pôr fim em 1976, após um longo período de indecisão e tensão.

A cultura de exigência – “éramos muito solicitados pelos nossos mestres, trabalhávamos imenso, fora de horas e fora da escola, mas com gosto” – e o alargamento do conhecimento sobre as crianças aos seus contextos sociais, nomeadamente através das “atividades de contacto” são outras notas de realce. Estas atividades, que serão a componente mais original do plano de estudos das escolas do magistério, ocorriam no 1o ano do curso e tinham como objetivo permitir aos futuros professores observar, conhecer e intervir em diferentes contextos territoriais/sociais em que poderiam vir a trabalhar.

Balanço positivo. Que nem tudo foi positivo, também parece ser consensual. Porque não houve, nem poderia haver, uma vivência homogénea e, sobretudo, porque houve descontinuidade entre gerações: “fui aluna entre 1978 e 1981, num tempo de ressaca em que se faziam sentir os ecos da experiência pedagógica”, refere Ariana Cosme. Mas, “não tendo vivido o que esta gente viveu, não deixei de beneficiar da ação pedagógica de um pequeno grupo de professores”.

Algum sentimento de frustração também está latente no grupo, perante a constatação de um certo distanciamento em relação aos ideais e aos valores norteadores da experiência, designadamente a relação com a ideia de futuro, que hoje surge sombrio.

Consideram que se perdeu boa parte da exigência reflexiva – apesar de se continuar a afirmar que ela é um traço da profissionalidade docente – e o sentido de responsabilidade cívica e da relação escola-comunidade. Escola que já não funciona como laboratório de democracia e de liberdade. E pensam que ao 1o Ciclo falta união, coesão, identidade, projeto profissional… Apesar de tudo, concordam, o balanço é francamente positivo. A semente “germinou” e, por um motivo ou por outro, todos se afirmam tributários dessa experiência geracional vivida na Escola do Magistério Primário do Porto.

A Página da Educação

Ana Alvim (fotografia)

 

MAIS INFORMAÇÃO. Em 2006, a Profedições editou “Uma Revolução na Formação Inicial de Professores”, de Amélia Lopes, Cristina Sousa, Fátima Pereira, Rafael Tormenta e Rosália Rocha. Os autores salientam as dimensões que caraterizaram a formação inicial no período revolucionário do 25 de Abril, tendo em vista possibilitar a eventual integração de algumas das suas componentes nos atuais processos de formação – onde, consideram, se nota uma evolução positiva na componente científica, mas também perdas na vertente pedagógica.

 

ORA DIGAM LÁ…

 

AMÉLIA LOPES (professora/investigadora, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto)

A diluição da fronteira entre diferentes momentos/espaços de experiência e formação

A ligação orgânica e dinâmica entre as diferentes dimensões do currículo: formal, não formal e informal da Escola. A diluição da fronteira entre diferentes momentos/espaços de experiência e formação. A promoção, junto dos estudante, do gosto e de competências de pesquisa. Algo muito diferente do que se vive hoje no Ensino Superior, em termos de ambientes de aprendizagem e de incentivo ao estudo e à investigação. Proximidade relacional e laços de cumplicidade entre alunos e professores, mas sem perda de respeito – pelo contrário, havia autoridade pedagógica democrática.

 

ARIANA COSME (professora/investigadora, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto; membro do Conselho Editorial da PÁGINA)

A participação na construção de uma escola congruente com os valores de uma sociedade democrática

A postura política de alguns professores, comprometida com a necessidade de uma Escola Pública inclusiva e culturalmente significativa. A participação na construção de uma escola congruente com os valores de uma sociedade democrática. Vivências gratificantes por via da cumplicidade pessoal e de trabalho com alguns colegas. Algumas experiências inesquecíveis na organização de seminários e conferências pedagógicas e no envolvimento em movimentos e associações de professores. Algumas experiências medíocres e bastante negativas, mas houve outros momentos marcantes que modelaram o modo como concebo e exerço a profissão.

 

ISABEL BAPTISTA (professora/investigadora, Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, Porto; diretora da PÁGINA)

A docência como compromisso profissional, social e político

A forma como se valorizavam as pessoas e a Pedagogia, segundo uma visão ética e estética da vida. Apesar de um certo “caos organizacional e curricular”, era possível falar num ethos EMMP. A diversidade de perfis dos professores, muitos acabados de chegar do exílio. A oportunidade de convívio e aprendizagem com intelectuais únicos, personalidades pedagógicas marcantes. A docência como compromisso profissional, social e político. O lema da associação de estudantes – tornar as crianças de hoje homens livres de amanhã, conscientes de que as crianças trazem no rosto a sociedade em que vivem. A “formação sindical”, porque os mestres (Bento, Felizes, Teresa Maia Mendes) entendiam consciencializar os jovens candidatos à docência para as exigências de uma dupla inscrição: pedagógica e profissional.

 

 

MANUEL RANGEL (professor do 1o Ciclo, diretor do Colégio Tangerina, Porto)

O sentido de projeto, de responsabilidade pessoal pela mudança e de pertença à escola

O fomento da curiosidade pelo mundo, a importância da “lição das coisas”, da experimentação (a escola tinha a sua própria horta) e da implicação com o meio. A motivação dos jovens no sentido de uma participação empenhada e comprometida em todas as atividades. O sentido de projeto, de responsabilidade pessoal pela mudança e de pertença à escola. O projeto formativo assente em hábitos e valores de cooperação e partilha, num ambiente em que a imaginação e o poder criativo contribuíam para uma realização comum. A importância da cultura como parte da formação – a escola como espaço cultural. Tudo convergindo para a relevância e especificidade do Ensino Básico.

 

RAFAEL TORMENTA (professor de Português, Agrupamento de Escolas Gaia Nascente; membro do Conselho Editorial da PÁGINA)

A importância do Café Corsário como prolongamento do espaço formativo escolar

A solidariedade entre os estudantes. A participação deles na vida da escola e da comunidade, numa lógica de envolvimento cívico entendido como parte integrante da sua formação (desde as atividades de contacto à organização de colóquios, fóruns de discussão, exposições, intercâmbios entre escolas), muitas vezes como resposta imediata aos acontecimentos que, no contexto revolucionário e pós-revolucionário, ocorriam em permanência. A importância do Café Corsário como prolongamento do espaço formativo escolar.


  
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