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Milhões de crianças pobres em países desenvolvidos

Em 35 países economicamente desenvolvidos há 30 milhões de crianças a viver na pobreza. E apenas na União Europeia, Noruega e Islândia, cerca de 13 milhões não têm acesso a elementos básicos necessários para o seu desenvolvimento. São as principais conclusões do Report Card 10. Medir a Pobreza Infantil, apresentado em maio pelo Gabinete de Investigação da Unicef.

 

O relatório expõe a extensão da pobreza infantil e das privações sentidas pelas crianças em países economicamente mais desenvolvidos, numa altura em que o mundo atravessa um momento de austeridade. A análise é feita sob dois ângulos e, na primeira avaliação é utilizado o Índice de Privação Infantil, baseado em dados das estatísticas da União Europeia sobre rendimento e condições de vida em 29 países europeus.

Neste quadro, o relatório define como carenciada uma criança que não tem acesso a duas ou mais das 14 variáveis de base, que incluem itens como três refeições por dia, livros em casa adequados à idade e ao nível de conhecimento (sem contar com os livros escolares), equipamentos de lazer para o espaço exterior (bicicleta, skate, etc.), atividades de lazer regulares (natação, música, participação em organizações, entre outros), dinheiro para participar em viagens escolares e eventos, um local tranquilo para estudar, ligação à internet ou algumas roupas novas.

A Roménia é o país com a maior taxa de privação (72,6%). Seguem-se Bulgária, Hungria, Letónia e Portugal (27,4%). Mesmo alguns países com economias mais desenvolvidas, como a França e a Itália, apresentam taxas de privação superiores a 10%. Na posição inversa, os países com taxas de privação mais baixas são a Islândia, a Suécia e a Noruega (0,9, 1,3 e 1,9 por cento, respetivamente).

 

Crise penaliza as crianças

No segundo parâmetro, o Report Card 10. Medir a Pobreza Infantil aborda a pobreza relativa em 35 países economicamente desenvolvidos e aponta a percentagem de crianças que vivem abaixo do “limiar da pobreza”, ou seja, que vivem numa casa onde o rendimento disponível – quando ajustado ao tamanho da família e sua composição – é inferior a 50 por cento do rendimento médio nacional.

A Islândia lidera a tabela com a mais baixa taxa de pobreza infantil relativa (4,7%), seguida da Finlândia (5,3%), Chipre, Holanda e Noruega (todas com 6,1%). Nos últimos lugares estão a Roménia, Estado Unidos e Letónia (25,5, 23,1 e 18,8 por cento, respetivamente). Portugal encontra-se na 26a posição, com 14,7 por cento.

Segundo Gordon Alexander, “os dados disponíveis provam que um número demasiado elevado de crianças continua a não ter acesso a variáveis de base em países que têm meios para as proporcionar”. O estudo demonstra ainda como a pobreza infantil é suscetível às políticas que postas em práticas pelos respetivos governantes. “Segundo dados recolhidos maioritariamente antes da crise atual, alguns países registaram bons resultados graças a sistemas de proteção social que estavam a funcionar. O risco é que no contexto atual sejam tomadas decisões erradas, cujas consequências só serão visíveis muito mais tarde”, refere o diretor do Gabinete de Investigação da UNICEF.

 

Tornar as cidades mais amigas das crianças

É preciso colocar as crianças em primeiro lugar no chamado mundo urbano. Esta é uma das mensagens deixadas pela UNICEF no relatório Situação Mundial da Infância 2012: Crianças no Mundo Urbano, denunciando que centenas de milhões de crianças que vivem em cidades estão excluídas do acesso a serviços essenciais, como água, luz, cuidados de saúde ou educação.

O relatório fala em “amplas disparidades” e frisa que as chamadas “vantagens urbanas” nem sempre são reais. Por isso, a agência das Nações Unidas apela à concretização de medidas urgentes, de forma a tornar as cidades mais “amigas das crianças” e deixa alguns exemplos a seguir em diversas cidades do mundo.

Sobre este relatório, também apresentado em maio, a PÁGINA pediu alguns comentários à diretora executiva do Comité Português para a UNICEF – Madalena Marçal Grilo responde nas páginas seguintes.

Maria João Leite

 

 

QUATRO PERGUNTAS A MADALENA MARÇAL GRILO

Diretora Executiva do Comité Português para a UNICEF

 

Como analisa este o relatório da UNICEF sobre a situação mundial da infância?

Ao dedicar o seu relatório anual sobre a situação mundial da infância à crescente urbanização da população mundial, a Unicef pretende chamar a atenção para as consequências que esta realidade está a ter para centenas de milhões de crianças que, em cidades de pequena ou grande dimensão, vivem em condições precárias, excluídas do acesso a bens e serviços básicos e expostas a toda uma série de perigos, que vão desde a violência e exploração a doenças e até à morte. Atualmente, mais de 50% da população mundial vive em zonas urbanas, e as crianças nascidas nas cidades já representam 60% do aumento da população urbana. O aumento da urbanização é inevitável e, dentro de poucos anos, a maioria das crianças irá crescer não nos meios rurais, mas em cidades. A situação destas crianças, e as suas necessidades, frequentemente representadas por dados que escondem profundas disparidades entre ricos e pobres, não pode ser ignorada. Excluir as crianças das cidades que vivem em bairros degradados ou clandestinos rouba-lhes a possibilidade de desenvolverem todo o seu potencial e priva a sociedade dos benefícios económicos e sociais de uma população instruída e saudável.

O relatório refere o aumento das disparidades entre crianças. Quais são os principais problemas?

As cidades proporcionam a muitas crianças as vantagens de equipamentos urbanos como escolas, serviços de saúde e espaços recreativos. No entanto, por todo o mundo, as mesmas cidades são também o pano de fundo de algumas das maiores disparidades em termos de saúde, educação e oportunidades. As crianças dos bairros degradados podem viver próximo dos serviços de que necessitam para sobreviver e se desenvolverem e, no entanto, serem excluídas dos mesmos. É frequente verificarem-se elevadas taxas de mortalidade em locais onde se concentra a pobreza extrema e a ausência de serviços adequados, como acontece em bairros degradados. O sobrepovoamento e a falta de condições de salubridade são terreno fértil para o alastramento de doenças, sobretudo porque os níveis de imunização são muito baixos. Em muitos casos, as taxas de subnutrição infantil ou de mortalidade de menores de cinco anos nos meios urbanos pobres estão a par das que se verificam nas zonas rurais mais desfavorecidas. Ao nível global, em termos de subnutrição infantil, as disparidades entre zonas rurais e urbanas diminuíram porque a situação piorou nas zonas urbanas. Por outro lado, a obesidade que afeta crianças nos países ricos está a crescer nos países de baixo e médio rendimento. As infraestruturas e os serviços não estão a acompanhar o crescimento urbano em muitas regiões e as necessidades básicas das crianças não estão a ser satisfeitas. É frequente as famílias que vivem na pobreza terem um acesso precário ou pagarem mais por serviços de baixa qualidade. A água, por exemplo, pode custar 50 vezes mais em bairros pobres, onde os moradores têm de a comprar a privados, do que em bairros mais ricos, onde as residências estão diretamente ligadas à rede de abastecimento de água. O número de pessoas que não dispõem de instalações sanitárias aumentou perto de 30 milhões entre 1990 e 2008. As privações que as crianças enfrentam nas comunidades urbanas pobres são muitas vezes ocultadas por médias estatísticas que agregam todos os habitantes urbanos – tanto ricos como pobres. Quando médias deste tipo são utilizadas para influenciar as políticas urbanas e a alocação de recursos, as necessidades dos mais pobres podem ser subestimadas.

Que soluções podem ser postas em prática?

A UNICEF insiste na importância de uma abordagem centrada na equidade, o que implica dar prioridade às crianças mais desfavorecidas onde quer que vivam. E apela aos governos para que coloquem as crianças no centro do planeamento urbano e para que melhorem e tornem os serviços extensivos a todos. Para começar, são precisos dados mais específicos e rigorosos para ajudar a identificar as disparidades existentes entre as crianças que vivem nos meios urbanos e o modo de superá-las. A escassez de dados prova a negligência a que estas questões têm sido votadas. Embora os governos possam fazer mais, a todos os níveis, o envolvimento das comunidades é também decisivo para obter bons resultados. O relatório apela a um maior reconhecimento da participação das comunidades no combate à pobreza urbana e apresenta exemplos de parcerias eficazes com populações urbanas carenciadas, incluindo com crianças e adolescentes. Estas parcerias produzem resultados tangíveis, como demonstram alguns exemplos apresentados no relatório, tais como a melhoria das infraestruturas públicas no Rio de Janeiro e em São Paulo; o aumento das taxas de alfabetização em Cotacachi, no Equador; e o reforço da preparação para catástrofes em Manila, nas Filipinas. Em Nairobi, no Quénia, vários adolescentes fizeram um levantamento da comunidade do bairro degradado onde vivem com o objetivo de informarem os técnicos de planeamento urbano. O programa pioneiro Oportunidades, lançado pelo governo do México para atender às necessidades das populações rurais, e posteriormente alargado aos meios urbanos, é um dos bons exemplos de políticas para a redução da pobreza e desigualdade apontados pela UNICEF. O programa prevê a utilização de transferências em dinheiro para as famílias mais pobres, na condição de que os seus filhos frequentem a escola e sejam regularmente vistos por um médico. Com mais de quatro milhões de adesões, a experiência, entretanto replicada por outros governos, foi considerada um sucesso que se traduziu pelo aumento significativo do número de crianças que progrediu nos seus estudos secundários (20% para as raparigas e 10% para os rapazes) e pela diminuição de doenças nas crianças mais pequenas. Em última análise, a UNICEF sublinha que os problemas das crianças não serão resolvidos com abordagens tradicionais. É necessária uma nova abordagem com base na igualdade e enfoque nos mais marginalizados e vulneráveis. Para tal, há que compreender melhor a escala e a natureza da pobreza e de exclusão urbanas que afetam as crianças; identificar e remover obstáculos à inclusão; dar prioridade às crianças em matéria de planeamento, infraestruturas e serviços que respondam às suas necessidades; promover a participação das populações urbanas mais pobres e trabalhar em conjunto ao nível comunitário, municipal, nacional e internacional.

É possível traçar um cenário atual do nosso país nesta matéria?

Ainda que muitos dos problemas identificados no relatório não se coloquem no nosso país, não podemos dizer que a pobreza urbana tenha desaparecido. Os bairros de barracas praticamente desapareceram em Portugal, mas entre as muitas pessoas que foram realojadas e as que habitam hoje em alguns bairros sociais, persistem muitos problemas que não estão resolvidos. A falta de condições de habitabilidade, o número elevado de pessoas por habitação, a exploração de crianças, os abusos sexuais, muitas vezes propiciados pelas condições de habitação, são motivo de preocupação e não podem ser ignorados. Num período de crise como o que se vive atualmente, em que o desemprego e os cortes sociais estão a refletir-se na vida de muitas crianças, é fundamental que as medidas e as políticas ao nível nacional e local tenham em conta as necessidades das crianças mais vulneráveis.


  
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