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Mãos abertas em rede

São muitos os motivos que podem levar alguém a tropeçar na vida e a deixar de acreditar numa saída. São várias as pessoas que “caem” nas ruas e fazem delas a sua casa, que fazem das soleiras as suas camas e das estrelas o seu tecto. Estender-lhes a mão, para que voltem a erguer-se, com dignidade, é a missão da Rede Interinstitucional de Apoio aos Sem-Abrigo, na cidade do Porto.

 

Nasceu no seio de uma família desestruturada; teve uma infância problemática, com uma educação na base da violência; abandonou os estudos muito cedo e, na adolescência, emaranhou-se no mundo das drogas e do crime, rejeitando quem lhe queria bem. Viveu num ir e vir de prisões e perdeu a vista num assalto. Ficou condenado a viver nas ruas do Porto e durante anos não saboreou uma refeição quente. Aos 41 anos, e fazendo a retrospectiva de um passado sofrido, Jorge Soares sente-se um novo homem: “Sinto-me grandioso por chegar onde cheguei. Agora não troco o valioso pelo falso”.

Se um dia não lhe tivessem tocado na mão e perguntado como estava, não teria ido parar ao hospital e dado início à recuperação. Por isso, lembra com carinho quem transformou “carvão em diamante” – Paula França e Olga Rocha, da Rede Interinstitucional de Apoio aos Sem-Abrigo. Depois de recaídas e mais voltas, o primeiro dia do resto da sua vida: “Fui para uma clínica e aí aperfeiçoei as técnicas do saber viver”, diz, com o orgulho de quem trocou a adrenalina do crime pela “pica” da responsabilidade.

Foi numa terapia de grupo que conheceu Loide Reis, hoje com 33 anos, que também tinha vivido na rua durante um ano, em Inglaterra. Viveu e cresceu num colégio, de onde saiu com 19 anos, já consumidora de estupefacientes. Corria o ano 2000 quando teve o primeiro filho; deixou-o com a mãe e partiu, para trabalhar. Só o fez durante um mês. Roubava trabalhadores ilegais, assaltava casas e dormia em linhas de comboio. Não se lembra de ter tomado banho e trocado de roupa. “Éramos tão inconscientes… Não havia sentimentos, não havia nada, mas lembro-me de que queria muito ver o meu filho”, recorda.

Conseguiu um bilhete de regresso e a mãe recebeu-a de braços abertos. Mas continuou a consumir e voltou a engravidar. “Fiz muitos tratamentos, desintoxicações. Há seis anos fiquei farta e dei conta de que não conseguia andar para a frente”. Foi para a clínica onde estava Jorge e apaixonaram-se. De lá saíram dispostos a dar um novo rumo às suas vidas. Seis anos passaram e hoje, com o apoio da Segurança Social, são uma família feliz. “Damos muito valor à nossa casa. Trouxe-nos os filhos, calor, esperança”, frisa Loide.

Jorge é hoje o pai de afecto das duas crianças. “Este lado de chefe de família é mais compensador”, refere. Valoriza o que conquistou (“a minha casa é tudo”), mas não esquece o que passou. Faz voluntariado. “Hoje posso fazer a diferença. O pobre dos mais pobres é o que não sabe a riqueza que tem dentro dele”.

Estas são histórias como tantas outras que se espalham por todo o país, nem todas com um final feliz. Mas há sempre mãos dispostas a ajudar quem caiu a levantar-se. Essa tem sido a missão de Paula França, coordenadora da Rede Interinstitucional de Apoio aos Sem-Abrigo do Porto, e de Olga Rocha, gestora de casos, ambas técnicas do Instituto de Segurança Social.

 

 

Relações de confiança

Prostituição, toxicodependência, marginalidade, família desestruturada, quebra emocional profunda, problemas de saúde mental… Podem ser variados e cruzados os motivos que levam à condição de sem-abrigo ou que as pessoas levam a manter-se nas ruas. Este é um fenómeno que agrega diversos problemas sociais. “A ideia de que o sem-abrigo é aquela pessoa que era empresária e perdeu tudo e que teve um desgosto na vida é uma ideia mesmo romântica”, afirmou Paula França à PÁGINA.

Actualmente existem cerca de 200 pessoas a viver nas ruas do Porto. Um número bem diferente do registado em Março de 2009, aquando do lançamento da Estratégia Nacional Para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo – cerca de 2.500, sendo que 2.100 estavam contabilizadas e as restantes 400 eram uma estimativa para os casos difíceis de perceber, como os toxicodependentes que caíam à entrada de bairros sociais. Hoje, a maioria dessas histórias deixaram de vaguear pelas ruas e contam-se em camas de pensões, albergues, comunidades de inserção, em casas da família ou alugadas. A maior parte das pessoas sem abrigo, apesar de aceitar o acompanhamento e os princípios do programa de inserção, não é autónoma e não está socialmente integrada; não é independente do ponto de vista económico e vai precisar sempre de alguma retaguarda.

As que ficam nas ruas, não querem sair ou ainda não se deixaram convencer, mas o importante é que há sempre alguém para as amparar. E o segredo está na atitude com que se encara este problema. O olhar para o lado ou o acompanhamento pontual não o resolvem. É preciso ouvir a pessoa, acompanhá-la e convencê-la de que é possível recomeçar. É necessário manter um contacto pessoal e sistemático, para que se criem laços de confiança entre a pessoa que está em condição de sem-abrigo e o seu gestor. E é importante haver continuidade e persistência na relação conquistada.

As equipas estão na rua, monitorizam, acompanham e esperam que os seus conselhos tragam frutos. Para que tudo resulte, é necessário seguir os princípios definidos pela Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas Sem-Abrigo, medida governamental (2009) em que se destacam a consagração dos direitos de cidadania, a promoção da igualdade de género e de oportunidades, a implementação de medidas de prevenção, intervenção e acompanhamento e, ao longo de todo o processo, a garantia de uma intervenção de qualidade centrada na pessoa.

 

Trabalhar em rede, maximizar recursos

Muito deste trabalho já tinha começado a ser pensado por um grupo de cidadãos preocupados com o fenómeno, cada vez mais visível. Por isso, Paula França, Olga Rocha e tantos outros ligados a instituições da cidade decidiram juntar-se em reuniões, no café ou em casa uns dos outros, fora das horas de serviço.

“Na nossa condição de cidadãos, achámos que tínhamos de fazer alguma coisa”, sublinha Paula França, adiantando: “Estivemos quase cinco anos a fazer observação, a tentar aprender, perceber, conhecer as pessoas na rua, a tentar entendê-las, a ouvi-las muito e a ouvir quem já trabalhava com os sem-abrigo. Vimos que havia uma solução e que ela passava muito por uma organização que maximizasse os recursos e que tivesse um sentido diferente de intervenção. Um dos nossos grandes projectos era tentar encontrar uma casa onde pudéssemos experimentar técnicas diferenciadas de acompanhamento – porque tinham de ser específicas, muito na base da empatia e do acompanhamento assíduo, sistemático e sem desistência”.

O grupo organizou-se e, dentro das instituições em que trabalhavam, os seus membros articulavam os recursos. “Verificámos que quando mudámos de atitude começámos a ter resultados”. Até que surgiu a Estratégia Nacional e a tarefa tornou-se mais fácil: “Fomos sustentados pela produção de conhecimento e pela aposta governamental em trabalhar assim. Por outro lado, tivemos a vantagem de o próprio Centro Distrital do Porto da Segurança Social aderir rapidamente e nos deixar avançar com este trabalho interinstitucional”.

Trabalhando em rede, construíram um Guia onde constam os recursos de cada instituição e o seu interlocutor, personalizaram a relação entre elas, criaram um sistema de monitorização de rua para que todas as pessoas sem-abrigo fossem identificadas, implementaram um sistema de triagem e estabeleceram uma intervenção concertada, onde todos se regem pelos mesmos princípios.

“Tínhamos que pensar a intervenção em função da inserção. Uma pessoa em situação de sem-abrigo, com muitos anos de rua, dificilmente vê a luz ao fundo do túnel, está habituada a constantes apelos para a saída que depois não se materializam; portanto, teríamos de decidir que aqui não era uma questão de oportunidades. Vincularmo-nos à pessoa é outro segredo, isto é, quando a pessoa que já tentou sair da rua resolve sair de novo, tem de saber com quem deve falar e não pode estar a iniciar o processo como se fosse a primeira vez”.

E se era necessário pôr as instituições a trabalhar de forma articulada, o projecto só tinha a ganhar com a integração das organizações voluntárias que dão comida e agasalho às pessoas sem-abrigo nos princípios já definidos. “O nosso objectivo é que as organizações voluntárias se organizem mais eficazmente. Só no final do ano passado é que começamos a conhecer essas organizações, a chamar as pessoas pelos nomes. Também temos de estudar o objectivo que as move. Falta chegar a essa convergência. Contudo, já é possível maximizar coisas, nomeadamente a sinalização das pessoas que estão na rua. As organizações voluntárias já a fazem, e todas da mesma maneira. Todas aceitam que o objectivo é fazer sair da rua”, salienta a coordenadora da rede, que engloba 50 instituições e organizações, contando com instituições académicas e organizações voluntárias.

 

 

Apostar na prevenção, melhorar a intervenção

Não é difícil cair na condição de sem-abrigo. Opções menos boas que se tomam, uma separação, a morte de um ente querido, desorientação psicológica, a violência e a rotura dos laços que nos envolvem... Já nas ruas, a vergonha e o instinto de sobrevivência.

“O problema é fazer a recuperação. Cair é rápido, recuperar é muito caro e muito moroso”. Por isso, é importante apostar na prevenção. E prestar muita atenção à crise – ou às condições climatéricas, por exemplo. “Nos dias de muito frio, de muita chuva ou de muito calor, as equipas de rua estão mais atentas e alertam as pessoas para a possibilidade de irem para um quarto. Se durante a passagem da equipa de rua não quiserem, e entretanto se arrependerem, têm sempre a linha de emergência, que também é parceira nesta rede”, frisa Paula França, sublinhando que “os esquemas estão montados”, pelo que as equipas estão atentas para que o número não aumente muito.

No Porto existem vários alojamentos temporários, como o Albergue do Porto ou as comunidades de inserção. Ainda assim, a rede tem outras ideias, como alugar casas para que três ou quatro pessoas vivam em conjunto ou criar um hotel social para as que nunca vão poder ser incluídas. São projectos que podem contribuir para uma melhor intervenção, mas o principal está feito, de acordo com a coordenadora da rede. “Costumo dizer que está tudo feito, só falta querer construir; falta dinheiro e, para haver dinheiro, falta vontade. Tem de haver uma vontade compatível com aquilo que tecnicamente consideramos importante. Acho que o mais difícil já se conseguiu, que era colocar os técnicos à volta de uma mesa a falar a uma só voz relativamente a este fenómeno”.

Ao todo, a rede conta com 64 gestores, cada um acompanhando cerca de 25/30 pessoas. “Precisamos de qualificar mais os gestores; precisamos de criar linhas facilitadoras para eles se articularem com as diferentes políticas sociais do país. Temos um problema grande, que é a sectorização das políticas sociais. Toda a gente tem vontade, inclusive o Governo fala da maximização dos recursos, de articulação, mas fazer é muito complicado”. A coordenadora reconhece que a partilha do acompanhamento com os voluntários, bem como a interacção e o suporte que dão uns aos outros, têm tornado a tarefa mais fácil, mas “pôr a máquina a funcionar de forma ágil, rápida e eficaz ainda é um processo demorado”.

Além disso, é preciso criar alternativas no mercado de trabalho. “Entrar no mercado de trabalho é difícil para toda a gente, mas as pessoas que viveram em situação de sem-abrigo de forma prolongada têm o dobro das dificuldades, porque acrescem as dificuldades da própria pessoa em encaixar os comportamentos socialmente aceites”.

 

Formar cidadãos preocupados

A família tem um papel importante na condição do ser humano. Mas se não for suficientemente forte, pode levar a que este fenómeno ocorra. Olga Rocha, gestora de casos, explica: “Existem duas situações. Por um lado, a rede de suporte familiar nunca existiu, ou sempre foi frágil. São pessoas oriundas de famílias já muito desestruturadas e onde a pobreza é uma questão cultural. E quando, por qualquer motivo, um membro da família entra no mundo da criminalidade, a família afasta essa fonte de problemas. Por outro lado, há pessoas que tiveram uma rede de sociabilidade, de suporte, com amigos e uma família minimamente estável, mas com percursos de vida que acabaram por arruinar completamente todas as relações. Não sendo impossível reatar esses laços, é um processo muito longo e demorado”.

Acontece, também, que nesses meios a escola não é valorizada, pelo que o insucesso escolar está muito associado a este problema, acrescenta Paula França. E se o combate ao flagelo pode ter vários níveis, a Escola pode ser um dos meios de intervenção, quer através da formação dos agentes, quer através da sensibilização – mesmo que das escolas não saiam profissionais para esta área, vão sair cidadãos que podem ficar sensíveis ao fenómeno. “Além disso, há que ter em conta a influência que têm no esquema da economia e da produção do país. Hoje, as faculdades representam um espaço de invenção de alternativas, e, portanto, podem ajudar e dar ideias. Nós concebemos o papel das faculdades como uma ponta dianteira da descoberta a que os profissionais se devem agarrar para poderem ter criatividade constante”.

A Rede Interinstitucional não tem uma acção directa nas escolas, mas alguns dos seus parceiros têm, como o Instituto da Droga e da Toxicodependência, que faz prevenção, ou o Colégio de Nossa Senhora do Rosário, “que integra na actividade escolar alguma obrigatoriedade de cidadania” – os alunos mais velhos saem à noite, com os pais, para darem algum apoio às pessoas sem- brigo; os restantes são envolvidos na preparação dos kits, na organização das roupas ou na limpeza da carrinha. E estão organizados, sublinha Paula França: “Há um coordenador, um motorista, um redactor. Fazem diários de bordo e os próprios miúdos fazem as descrições da noite e do que aconteceu. Tem sido uma mais-valia muito grande. Dá resultado na formação do indivíduo”.

Maria João Leite (reportagem)

Teresa Couto (fotografias)

 

LOJA VIRTUAL

No âmbito da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas Sem-Abrigo, está pensada a criação de uma ferramenta informática que dê garantias em termos de comunicação, quer na organização dos recursos necessários para as pessoas sem-abrigo e na geo-referenciação dessas pessoas, quer na comunicação interna e no funcionamento de uma loja virtual que agregue todos os produtos necessários para os apoios a dar. O projecto encontra-se em stand-by devido à integração da rede interinstitucional na Rede Social do Porto, que também pretende criar uma ferramenta semelhante. “Essa loja poderá resolver uma série de coisas. Por exemplo, uma equipa de voluntários sai à rua e descobre alguém que precisa urgentemente de agasalho; então, pode ir à loja virtual e comprar sem gastar dinheiro. Funciona tudo à base de donativos”, explica Paula França. As instituições inscrevem os seus ‘produtos’ nessa loja e toda a rede sabe onde encontrar o que necessita. Além disso, nessa loja seria possível doar tempo: por exemplo, um dentista pode dar uma consulta por mês, ou um pintor doar duas horas do seu tempo para pintar uma casa.

 

HUMANIZAR A CIDADE

Qualquer cidadão pode contribuir para uma sociedade melhor. Quem sair de casa e, por exemplo, encontrar uma pessoa sem-abrigo a dormir na soleira da porta, pode agir em prol dessa pessoa. Em vez de chamar de imediato a polícia, recomenda Paula França, “tentem falar com ela, não a desprezem. Está ali um ser humano igual a nós. Perguntem porque está ali a dormir”. A ideia é que haja uma maior entrega, um contacto pessoal, porque assim a ajuda é mais válida. Tal como nos casos em que se dá um cigarro ou uma moeda, mesmo que seja para comer. “Dar dinheiro não faz sentido. Nos casos em que pedem dinheiro para comer, então vamos para o café... Quando estamos com os nossos amigos, porque não oferecer um café ou um lanche? A atitude deve ser mais de cidadania, de relação de igual para igual. Chegar ao café e dizer para darem de lanchar ao senhor que está a pedir, afecta a dignidade dessa pessoa. Se estiverem com pressa, mais vale não fazerem nada”. “No fundo, é tornar a cidade mais humana. E o Porto não é assim tão grande...”, conclui a coordenadora da Rede Interinstitucional de Apoio aos Sem-Abrigo.


  
Ficha do Artigo

 
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