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Casa-Museu Abel Salazar: Uma vida dedicada à ciência e às artes

“Nunca fui político, embora desde rapaz tivesse tido sempre simpatias pelo anarquismo científico. Há dezoito anos, trabalhando na solidão de um laboratório, cheguei sozinho a ideias que vejo hoje em propaganda, em discussão lá fora; pouco a pouco, pela força própria das coisas, comecei a expor um sistema de ideias que me é pessoal; é hoje um dever de toda a gente não guardar consigo o que pensa ser útil aos outros.
Nada me interessa a politiquice do país; interessa-me apenas a Humanidade; a ‘Ciência não tem Pátria’, diz Ramon y Cajal, mas o homem de Ciência ‘si que la tiene...’, daí um choque que só o futuro poderá resolver.
Não tenho pois ambições políticas, nem jamais as terei, como jamais as tive, mas tenho deveres sociais a cumprir, que cumprirei conforme os ditâmes da óptica científica.”

Abel Salazar

 

 

À entrada, uma fotografia de grandes dimensões de Abel de Lima Salazar, nascido em Guimarães a 19 de julho de 1889. As mãos nos bolsos e na boca um cigarro – Abel Salazar haveria de morrer em 1946, aos 57 anos, devido a um cancro pulmonar. Demasiado cedo para quem, ainda assim, deixou tanto. A vida e a obra deste artista, investigador, cientista, escritor – anarquista científico, como disse que poderia ser classificado – pode ser visitada na Casa-Museu Abel Salazar (CMAS), situada na rua com o seu nome, em São Mamede de Infesta (Matosinhos).
Pinturas, gravuras, cobres martelados, esculturas, desenhos... São muitas as obras de Abel Salazar que podem ser vistas na casa onde viveu e que os amigos, após a sua morte, trataram de abrir ao público um domingo por mês. Na altura tentaram criar uma fundação, mas sem sucesso, pelo que
iniciaram contactos com a Fundação Calouste Gulbenkian, que foi proprietária da casa por dez anos. Após o 25 de Abril, a CMAS foi entregue à Universidade do Porto – o reitor era Ruy Luís Gomes, um dos amigos que participou na demanda por uma fundação.
E é sob a alçada da Universidade do Porto que hoje funciona, evocando um homem cuja vida e obra é lembrada em vários espaços da cidade do Porto: uma escultura no Jardim do Carregal (da autoria de Hélder Carvalho e oferecida pela Fundação Eng.o António de Almeida), um painel de grandes dimensões na Casa de Saúde da Boavista, um mural no antigo Café Rialto (hoje um banco), na Praça D. João I. E, sobretudo, o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar – “única faculdade da Universidade do Porto que tem o nome de um professor”, como lembra Luísa Garcia Fernandes, diretora da CMAS.


Incómodo dentro e fora

Foi um homem que marcou a Ciência e as Artes a vários níveis. Foi cientista, professor universitário, artista, ensaísta. Escreveu para os grandes jornais da época, sobre o mundo, a Europa, a religião. Na CMAS está sobretudo a obra artística, cerca de um terço do seu trabalho, cujo período de
maior produção ocorreu entre 1935 e 1941.
“Quando saiu da Universidade do Porto não lhe permitiram viajar, nem visitar a biblioteca. Ficou confinado à casa”, contou a diretora da CMAS à PÁGINA.
Por não aceitar as limitações impostas pelo sistema, Abel Salazar foi para Paris, em 1934, trabalhar no laboratório do Professor Champy, anatomista. Pelo seu envolvimento em ações de cidadania, lado a lado com grandes nomes da Cultura francesa, tornou-se “mais incómodo em Paris do que em Portugal”, pelo que lhe foi retirada a bolsa e regressou a casa.
No ano seguinte foi afastado da universidade, na sequência de um decreto-lei que determinava que “os funcionários públicos, civis ou militares, que tenham revelado ou revelem espírito de oposição aos princípios fundamentais da Constituição Política, ou não dêem garantia de cooperar na
realização dos fins superiores do Estado, serão aposentados ou reformados, se a isso tiverem direito, ou demitidos em caso contrário” (como se pode ler em cmas.up.pt). Foi-lhe vedada a entrada na universidade e na biblioteca, tendo ficado também impedido de viajar. Até ao regresso às lides académicas, dedicou-se, entre outras coisas, às artes.

 

O universo feminino
Abel Salazar foi um “desenhador compulsivo” e existem na CMAS mais de mil desenhos. Esta paixão surgiu cedo, na escola, altura em que fazia caricaturas dos mestres. No rés do chão, onde tem início a visita, é possível ver alguns dos seus desenhos, onde as mulheres, especialmente as francesas, têm um lugar de destaque.
“Viajava muito, pois representava os colegas lá fora – falava Francês, a linguagem científica da altura. E ficou fascinado pela mulher francesa”, refere Luísa Fernandes, acrescentando que Abel Salazar desenhava e pintava muito mulheres trabalhadoras no exercício de profissões que já não existem: carvoeiras, tanoeiras, leiteiras, carrejonas e lavadeiras. O movimento dos corpos, cenas de ruas e de mercados são também alguns dos retratos que fazia. E muitas dessas pinturas estão expostas no primeiro andar da CMAS.
Abel Salazar gostava de trabalhar diferentes materiais e dedicou-se também à escultura, com bustos maioritariamente de cientistas com quem privava, colegas da época. Entre os homens representados, há duas mulheres: a irmã e a sobrinha da assistente Adelaide Estrada, de seu nome Odete, com quem trocou dezenas de “cartas charadas”. Na mesma sala é possível ver uma obra única na arte portuguesa – os cobres martelados com que
também enfeitava alguns móveis da casa.
Uma fotografia de grandes dimensões do seu funeral ocupa parte da parede dessa sala, na qual se podem ver milhares de pessoas no percurso até ao cemitério do Prado do Repouso, onde foi sepultado.
“Abel Salazar morreu em Lisboa. Sofria de cancro do pulmão e foi passar os últimos dias a casa da irmã. Para evitar ajuntamentos, a PIDE pegou no seu corpo e levou-o para o Prado do Repouso. Os amigos juntaram-se na Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto e fizeram o trajeto até ao cemitério. O elogio fúnebre foi feito pelos amigos”, explica a diretora da CMAS.

 

Homens em retrato
É no primeiro andar da casa que se encontram as pinturas: quadros com muitas cores quando se tratava de representar os mercados do Anjo e da Ribeira e a mulher trabalhadora; pinturas mais escuras para retratar a mulher burguesa. É possível ver ainda a mulher francesa no cabaret, na rua ou como caixeira nas Galerias Laffayette.
Numa das salas estão expostos os retratos de António Luís Gomes, pai de Ruy Luís Gomes, de Eduardo Santos Silva, avô de Artur Santos Silva, e de Henrique Pousão. “Pintava e desenhava grandes amigos. Temos também em desenho Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz ou Alexandre Herculano. Ele só representava homens em retrato”, frisa Luísa Fernandes.
Abel Salazar foi casado com Zélia de Barros, “uma costureira, muito bonita”. Dela há duas imagens: uma de quando era mais nova, que se encontra no Hospital de Santo António, e outra na CMAS, com mais idade. Essa pintura está pendurada na parede, junto à janela, perto dos móveis “enfeitados” pelo cientista com jarros e cinzeiros de cobre que fazia. A mobília, da época, guarda também os livros: «A Crise da Europa», «Uma Primavera em Itália», «Ensaio de Psicologia Filosófica» ou «Notas de Filosofia da Arte».
Em qualquer das suas manifestações artísticas, Abel Salazar “observava o mundo e revelava aquilo que via”.

 

 

O trabalho científico
Foi numa carroça que Abel Salazar foi buscar as suas coisas ao laboratório da universidade, depois do seu afastamento. Essa imagem está retratada numa fotografia exposta no segundo andar da casa, mais dedicada à área científica.
Em 1915, concluiu o curso de Medicina, na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, e apresentou a tese Ensaio de Psicologia Filosófica, que obteve 20 valores. Foi nomeado Professor Catedrático de Histologia e Embriologia, em 1918, o mesmo ano em que fundou o Instituto de Histologia e Embriologia da Faculdade de Medicina do Porto. Apesar dos parcos recursos financeiros, o centro de estudos fez vários “notáveis trabalhos de investigação”.
Mas os métodos pedagógicos que utilizava não eram consensuais: abria o laboratório aos alunos à hora que lhes fosse mais favorável, entendia a docência como uma “investigação coletiva”, arranjava bibliografias. Mais dos que os seus pensamentos políticos, os seus métodos pedagógicos incomodavam. “Tudo isso era muito perturbador do sistema de ensino”, destaca a diretora da CMAS.
Levou a cabo uma série de pesquisas e trabalhos no campo da estrutura e evolução do ovário, tendo criado o método de coloração tano-férrico, de análise microscópica, a que dá nome. Mas não só: publicou mais de uma centena de trabalhos científicos, em áreas como os aparelhos de Golgi, os ovários, a anatomia do cérebro e a técnica de desenho microscópico, por exemplo.
Nas vitrinas do segundo andar, além de lamelas de vidro com preparação microscópica, estão exibidos alguns documentos de relevante importância na vida profissional de Abel Salazar, entre os quais a carta de expulsão da universidade. O mesmo que aconteceria a tantos outros professores universitários, como Aurélio Quintanilha, Manuel Rodrigues Lapa ou Sílvio Vieira Mendes Lima.
Um pequeno quarto guarda a biblioteca privada de Abel Salazar e uma imagem sua com colegas de Coimbra e de Lisboa. Neste piso, as memórias estão guardadas em fotografias (sessões na Associação dos Jornalistas e Homens das Letras do Porto, aulas de História da Arte aos colegas, o funeral), em caricaturas, em “cartas charadas”, em gravuras – Abel Salazar comprou em Paris duas prensas – e autorretratos. Também o relógio, óculos, passaporte, bengalas, lâmina de barbear, laço, écharpe de seda – objetos tão pessoais como o seu quarto, com a mobília que resistiu ao tempo e o candeeiro em cobre que fez em casa da irmã antes de morrer.
“Era um homem transversal, tanto na Arte como na Ciência. Em tudo colocava muito empenho”, sublinha Luísa Fernandes.


Promover a Arte e a Ciência
A CMAS é uma casa muito antiga, mas muito bem conservada. Guarda uma boa parte da vida e da obra de Abel Salazar e ao visitá-la é possível conhecer mais sobre o homem, o artista e o investigador. O percurso museológico foi elaborado pela Fundação Calouste Gulbenkian, que construiu um pavilhão anexo à casa, onde se realizam exposições, colóquios, debates, workshops ou sessões de poesia.
Muitas das atividades são promovidas pelo Serviço Educativo da CMAS, que pretende promover a Arte, a Ciência e o conhecimento da vida de Abel Salazar. Para o público mais jovem são criados laboratórios, ateliês, animações temáticas e cursos livres, além de atividades pontuais em alturas de férias, e ações de sensibilização para guias, tradutores, intérpretes, professores e alunos das áreas de Turismo, Arte e Design. Há ainda o projeto
CMAS na Escola, que pretende estimular “a curiosidade e o espírito crítico” dos alunos em relação ao mundo que os rodeia.
Grande parte dos visitantes pertence ao público escolar, embora as atividades promovidas tenham vindo a atrair cada vez mais novos públicos. “Há mais divulgação e a CMAS tem agora mais visibilidade”, considera Luísa Fernandes. Apesar de a zona onde está inserida não ser de fácil acesso, por não ser muito bem servida de transportes, existe uma “ligação muito forte” com as escolas mais próximas, em especial com a Escola Secundária Abel Salazar.
A CMAS está a investir na área da publicação, com lançamento de livros, por exemplo, e também em parcerias com outras casas-museu, no sentido
de alargar o número de sócios. Além das verbas conseguidas com a realização de visitas guiadas e dos apoios da Universidade do Porto e dos sócios coletivos, a CMAS conta ainda com apoios que chegam através de candidaturas – a casa pertence à Rede Portuguesa de Museus.
As portas estão abertas a todos os que querem saber quem foi este homem que tanto deu à Ciência e à Arte.

 

Maria João Leite (reportagem)
Ana Alvim (fotografias)


  
Ficha do Artigo

 
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