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Mudar é muito difícil, há muita resistência!

João Arriscado Nunes licenciou-se em História, doutorou-se em Sociologia, começou a estudar os modelos económicos e acabou por desaguar na área das ciências da saúde. Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador permanente do Centro de Estudos Sociais, os seus interesses de investigação centram-se na ciência e tecnologia (investigação biomédica, ciências da vida e da saúde, relação entre ciência e outros modos de conhecimento), na sociologia política (democracia, cidadania e participação pública) e na teoria social e cultural. “Mas tenho feito uma inflexão que está a aproximar-se bastante da educação”, esclarece. Normalmente trabalha em Coimbra, mas regressa regularmente ao Porto, onde nasceu, estudou e cresceu. E onde conversou com a PÁGINA. Um perfil publicado no site da revista Ciência Hoje (02.09.2011) revela que Arriscado Nunes não conduz nem tem carta, lê muitos livros ao mesmo tempo e tem uma boa relação com a música, especialmente a dos anos ’60, o jazz e os compositores dos séculos XIX e XX. Adora ir ao cinema, mas não vai com regularidade, porque não gosta da concentração de salas em centros comerciais. Não discute futebol, mas gosta de automobilismo.

 

O ponto de partida era o último congresso da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, onde João Arriscado Nunes participou num painel sobre diálogos e sinergias nas ciências sociais, mas a entrevista arrancou do “sonho europeu” e tocou vários assuntos relacionados com a importância dos serviços públicos.

Num texto que publicou a propósito das ciências sociais em tempo de crise referia-se ao “sonho europeu”. Proponho-lhe uma breve reflexão sobre se a Europa está mesmo em crise, se a questão é apenas económico-financeira e se ainda há rumo para o projeto europeu.

Essa noção de sonho europeu fui buscá-la a Jeremy Ryfkin, que foi assessor do então presidente da Comissão Europeia (CE), Romano Prodi, e escreveu um livro que se chamava «O sonho europeu». Procurava mostrar que havia um conjunto de propostas que faziam parte da orientação programática da União Europeia (UE) que poderiam servir como contraponto ao chamado sonho americano, identificado claramente com aquilo que costumamos designar de ordem neoliberal: concorrência, iniciativa privada, mercado, acumulação, etc. Aquilo que procurava mostrar é que o projeto da União seria um exemplo de como se poderia conciliar crescimento e desenvolvimento económico com um modelo social capaz de reduzir as desigualdades, de assegurar de maneira ampla a inclusão e, sobretudo, de promover os direitos humanos, incluindo aqueles que costumamos designar de sociais, económicos, culturais, etc. E que, por isso, a Europa poderia constituir uma espécie de atractor político e biológico, uma espécie de exemplo para muitas regiões que estavam a olhar para a UE como podendo ser esse contraponto.

 

Mas, entretanto, o “sonho europeu” parece ter-se esfumado...

A ideia não resistiu muito tempo. Quando muda a liderança da Comissão, há uma orientação, pela primeira vez na história da UE, para o desmantelamento, ou desarticulação, do que ficou conhecido como pacto social-democrata, que é um pouco a tentativa de compatibilizar capitalismo, democracia, direitos humanos… E hoje vemos o que isso significa: um conjunto de mecanismos através dos quais se controlam as finanças públicas, se obrigam os Estados a respeitar um conjunto de limites ao nível do défice, se estabelece qual a percentagem do PIB admissível como défice do Estado... Aparecem, também, as restrições àquilo que é o investimento público e a propensão para confundir gasto e investimento. Tudo isto acompanhado de políticas de privatização e desregulamentação, mesmo nos casos em que é o Estado quem financia certas atividades que, de facto, são privadas, como vemos na Saúde e na Educação. Portanto, este é um projeto que choca com o discurso do pacto social-democrata, do modelo social europeu, e que tem consequências especialmente graves para os países da Europa de sul, com uma subordinação muito grande, do ponto de vista estratégico, das políticas desses países a uma liderança supranacional, em grande medida nas mãos do setor financeiro. É um pouco esta a situação a que chegámos…

 

Que não é nada animadora...

Se utilizarmos a imagem que Rifkin propunha, o sonho europeu está, de facto, em risco de se transformar num pesadelo. O que está a passar-se na Europa mostra que há realmente uma fragilidade enorme, uma precariedade enorme desse modelo. Mas não é certo que a partida esteja ganha para um lado ou para o outro – a Europa continua a ser um espaço onde também existe muita resposta dos cidadãos, formas organizadas de resistência a este tipo de política, mas, de facto, está numa situação complicada e corre o risco de se tornar uma espécie de território desregulado. Estive há uns tempos no Brasil, e uma coisa que se dizia nos jornais é que a Europa se teria tornado um dos espaços de especulação mais apetecíveis do mundo, e começamos a ver agora porquê: o caso do Luxemburgo, a forma como o setor financeiro foi apoiado durante a crise, sob pretexto de não se poder deixar falir os bancos, a forma como vários países foram literalmente levados à banca rota, através de políticas de restrição ao investimento público e, em grande medida, de desapropriação dos seus cidadãos.

 

O caso da Grécia, que fez acender a luz vermelha?

Exatamente! E depois há a questão da dívida, que é fulcral para o futuro. A exigência, em dado momento, de uma auditoria cidadã à dívida permitiu mostrar que a dívida pública não é a principal responsável pela situação. A dívida pública portuguesa não era muito maior do que a da generalidade dos outros países; o grande problema foi a dívida privada, transferida para os cidadãos através de mecanismos de endividamento, e as consequências da dívida já existente, principalmente os especulativos pagos aos credores. Este é um problema grande que vai ter de ser enfrentado, e podemos dizer que a Europa está numa situação bastante complicada; ainda não se sabe exatamente o que vai acontecer no futuro, mas é muito provável que apareçam fenómenos novos que vão baralhar as contas.

 

Fenómenos de que tipo?

Por exemplo, em vários países, estão a aparecer muitas formas de organização dos cidadãos, de resposta a este tipo de situações; e começam a aparecer também novas formas de organização política, que ainda não sabemos muito bem onde vão conduzir. O que também baralha um pouco o jogo e torna mais difícil fazer previsões.

 

Portanto, o cenário é mesmo de crise?

Eu penso que, de facto, a Europa está numa situação de crise profunda, e não apenas de modelo, que eventualmente estaria a dar lugar a outro. É que está-se a criar uma enorme precariedade em todos os aspetos da vida social e política. Estamos a ver manifestar-se, por exemplo, a incapacidade de relançar a economia; e também não se vê capacidade de alterar o processo de transferência maciça de riqueza para o setor financeiro, que continua a crescer. Aquilo que sai das empresas, que é lucro, não é reinvestido; serve principalmente para aumentar dividendos, não para reinvestir nas empresas. Estamos numa situação em que não sabemos muito bem qual vai ser o desfecho, mas não há razões para estar propriamente otimista.

 

E a situação pode piorar com o Acordo Transatlântico (TTIP, Transatlantic Trade and Investment Partnership) entre a UE e os Estados Unidos da América, que no limite pode levar a que o poder de decisão fique nas mãos de meia dúzia de corporações internacionais e de funcionários mais ou menos obscuros…

Sim, esse é um dos grandes problemas, inclusive a própria jurisdição para a resolução de conflitos, que em alguns casos pode ser transferida para novos mecanismos que permitam às multinacionais funcionarem sem restrições normativas nacionais ou da União. E há outro aspeto complicado: este processo está a criar uma espécie de dinâmica centrífuga; quer dizer, vai haver muitos fluxos de atividade económica e financeira que vão deixar de circular dentro do espaço europeu, e passam a ser feitos no exterior, o que significa que não será a UE a lidar com os EUA e, provavelmente, vai levar a uma multiplicação de relações, de tratados, de acordos, de negócios... E inclusivamente de jurisdições para resolver eventuais conflitos.

 

Quer dizer que os centros de decisão podem passar, de facto, a situar-se no exterior? Mesmo do espaço europeu.

Sim, sim! E outro problema é que grande parte daquilo de que os Estados dispunham para continuar a ter algum controlo sobre os setores estratégicos – o que significava capacidade de influenciar o modelo económico e a negociação de investimentos externos, de apoios à indústria e à criação de empresas, etc. – começa também a ser posto em causa. Por exemplo, quando se começa a considerar que setores como as telecomunicações, a energia, etc., deixam de ser estratégicos sob o ponto de vista do país, eles começam a ser privatizados e, uma vez privatizados, não adianta dizer que o Estado continua a ter algum tipo de controlo. Se não tiver mecanismos efetivos para intervir, por exemplo, mantendo a posição de acionista na empresa privatizada, para poder influenciar as decisões, não vale a pena falar em estratégia. E sabemos o que aconteceu noutros países, como o Brasil: quando foi privatizado o fornecimento de energia, no final da década de 90, houve o maior apagão da história, simplesmente porque havia o pressuposto de que o setor privado pegava naquilo e assegurava o fornecimento, o que não aconteceu.

 

Corremos o risco de aparecerem cá empresários chineses ou angolanos e nos desligarem a luz ou cortarem as comunicações…

Embora seja improvável acontecer uma coisa dessas, isto significa que não vale a pena continuar a falar em estratégia, porque ela passa a ser a dos grandes grupos, das empresas que vão investir, etc. Quer dizer, os Estados deixam de ter uma posição que lhes permita realmente fazer alguma coisa. Isto é preocupante, também, quando se chega a setores vitais da cidadania democrática, como a Saúde ou a Educação. Se passam a estar sujeitos a um jogo que deixa de ter a ver com a satisfação de necessidades básicas das pessoas, e mesmo para o exercício da sua condição de cidadãos, aí começamos a entrar num domínio realmente muito complicado. Os exemplos que conhecemos não são bons: nos EUA, 40 milhões de pessoas não têm acesso à saúde e as escolas públicas estão descapitalizadas e transformadas em zonas de quase guerra, em alguns casos por desinvestimento do Estado... E aqui é importante sublinhar que não se pode manter um regime democrático quando as pessoas deixam de reconhecer no Estado a capacidade de responder a um conjunto de exigências básicas de cidadania que incluem os serviços públicos, eles próprios vítimas deste processo.

 

E também temos aí a gestão dos recursos naturais, a privatização da água e o controlo alimentar...

Sim, sim... Existe hoje uma convicção crescente de que todos estes temas estão ligados e de que a solução não pode vir só de mais acordos para reduzir as emissões de carbono ou de haver regulação do setor financeiro. A resposta tem de ser também política. Agora, que tipo de resposta é o grande problema.

 

A propósito, qual é papel do Parlamento Europeu nesta questão? É a única instituição europeia eleita por voto direto e que, de facto, representa os cidadãos...

Tudo depende de qual for a posição que vai dominar o Parlamento Europeu nesse campo. Que há debate, que há tensões, nós sabemos, e também sabemos que nem todos os países têm a mesma posição relativamente ao acordo, provavelmente haverá questões que não estão resolvidas porque os países podem ter interesses diferentes sob o ponto de vista das atividades em que querem fazer funcionar o acordo e aquelas que querem manter de fora. A verdade é que o PE não é propriamente uma instituição com muito poder... O poder está principalmente no Conselho Europeu e na Comissão. Portanto, há aqui um jogo que não está decidido de antemão, e é por isso que algumas medidas da UE parecem contrariar a posição dominante dentro da Comissão. Mas não sei se o PE terá força para atuar como a única instância onde os cidadãos são representados por voto direto.

 

Já agora, Durão Barroso mereceu a condecoração atribuída pelo Presidente da República? De outro modo, ter um presidente da Comissão é/foi prestigiante para Portugal?

Eu achei aquilo bizarro. Em princípio, não deveria ter nada a ver com o facto de ser português, porque um presidente da CE não representa o seu país. Portanto, não me parece que pelo facto de ser português mereça condecoração. Outra coisa é a apreciação do que foi a Comissão a que presidiu, e uma das consequências foi tornar muito claro que há um choque de projetos dentro da UE e que Durão Barroso protagonizou basicamente um deles, que inclui o TTIP. É conhecida a sua ligação aos EUA, e todos nos lembramos do episódio dos Açores, antes da invasão do Iraque; as simpatias dele estão todas daquele lado e com os que apoiam aquele tipo de iniciativa. Mas isto não quer dizer que também não tenha havido tensões internas – por exemplo, não é muito óbvio que a Alemanha esteja satisfeita com a ideia de abrir mão de ser a potência que lidera a UE...

 

Voltando à resposta dos cidadãos... Como interpreta a ‘radicalização’ que se verifica na Europa, por exemplo, com o ressurgimento do partido nazi na Hungria, o crescimento da extrema-direita xenófoba em França e, em sentido contrário, a vitória do SYRIZA na Grécia, a liderança do Podemos nas sondagens em Espanha? Por cá, o Marinho e Pinto nas europeias e a multiplicação de manifestos e plataformas para unir as esquerdas, aparentemente sem consequências...

A questão da extrema-direita e dos nacionalismos xenófobos não é um fenómeno novo. Acontece é que as plataformas ideológicas e políticas desses movimentos começaram a entrar e a insinuar-se nos programas dos partidos, primeiro dos mais conservadores e depois, como em França, até no Partido Socialista, que começou a adotar posições que só esperaríamos da Frente Nacional. Lembro as declarações de membros do governo francês, há uns tempos, que subscreviam a ideia de que os ciganos devem transformar-se naquilo que queremos que eles sejam, ou então não podemos admitir que vivam assim entre nós; ou o bloqueio à entrada de emigrantes na Europa, muitas vezes acompanhado de violações graves dos direitos humanos. Outra questão é a propensão dos partidos do arco do governo, normalmente das áreas social-democrata e socialista, para convergirem numa espécie de centro político, tendencialmente conservador. E à medida que eles vão promovendo o tal projeto que está a avançar na Europa, começa a haver dificuldade em encontrar resposta dentro desse espaço político. Obviamente, a resposta começa a ser procurada noutro lado, e tem havido dois tipos de resposta: à extrema-direita ou à esquerda, onde têm aparecido plataformas, manifestos, etc., que tentam encontrar pontos de uma convergência que me parece mais ditada pela urgência de uma resposta do que propriamente pela possibilidade de um acordo a longo prazo.

 

Uma convergência frágil e, por isso, preocupante?

O que me parece mais preocupante é a propensão para se ver a política, principalmente, como um exercício de acordos ao centro. A valorização do acordo, do consenso, mata a política. A política consistia precisamente em criar um espaço onde fosse possível haver enfrentamento de posições e de alternativas, de maneira pacífica, mas realmente conflitual, agonística – e não procurar o acordo, o consenso, o compromisso, a todo o custo. São resultados possíveis da luta política, mas relativamente raros, e portanto pode haver ou não. E quando há eleições, a expectativa de que quem ganha vá fazer as coisas de acordo com os que perderam é uma coisa muito perigosa…

 

E é sempre temporário...

E é sempre temporário! Quando um partido ganha com maioria absoluta, é óbvio que foi sufragado por um projeto, uma plataforma, e é por essa plataforma que deve governar. A ideia de que chega ao poder e deve fazer um acordo com o que perdeu significa apenas que, afinal, eles não eram tão diferentes e tanto fazia votar num como noutro. E isto começa a desacreditar o jogo político formal. Este tipo de democracia, baseada nas eleições e no voto, é de facto um jogo em que não há espaço para as grandes diferenças, que são relegadas para as margens. E este desaparecimento da diferença, a ideia de que deve haver só um modo, uma convergência ao centro, e que o resto não se debate, é relegado para o espaço do que é ilegítimo ou que ameaça o próprio regime democrático, é uma coisa que está a ganhar contornos muito fortes. O próprio vocabulário nos meios de comunicação reflete um pouco isso: quando alguma força política está fora do que é o centrão, é radical, é isto, é aquilo; quando está no centrão, é simplesmente chamada pelo nome. Isto é significativo.

 

E põe em causa o próprio regime democrático.

Matar a conceção da democracia feita de escolhas entre posições que podem ser contraditórias, conflituais, é um perigo para o futuro dos regimes democráticos. Pode mesmo chegar o momento – e há quem já o tenha tentado – em que se proponha a substituição do sistema eleitoral, que sai muito caro, por uma espécie de sistema plebiscitário, em que os governos seriam assegurados por regulação, como já alguém lhe chamou. Há uns anos, um livro publicado nos EUA defendia que a UE poderia ser um bom exemplo de como governar por regulação, eliminando a política…

 

E é possível eliminar a política?

Ela depois aparece noutros lados, nos movimentos de cidadãos, em diferentes tipos de iniciativas... Por exemplo, grande parte da política norte-americana é feita através de movimentos que atuam dentro do poder judicial ou através dos tribunais. É uma espécie de ativismo jurídico, uma maneira diferente de continuar a fazer viver a política, no momento em que o próprio sistema político começa a fazer desaparecer aquilo que realmente significa a política, esse enfrentamento de posições.

 

A avaliação devia consistir em ajudar a resolver os problemas

 

Mudando de rumo: diz que tem estado a fazer uma aproximação à educação, mas entendida num sentido amplo...

Sim... Precisamos de ter uma visão ampla do que conta como educação, mas temos de continuar a dar muita atenção à escola, especialmente à escola pública, que é por onde passa grande parte do que são as tensões, os processos, as contradições, que vão contribuir para a socialização das pessoas. É precisamente por assegurar a formação dos cidadãos que não se pode desistir da escola pública, até porque se sabe que há muitos países – e Portugal não é exceção – onde a escola pública é atirada para o que podemos chamar zonas sem controlo ou normalmente produtoras de exclusão. Portanto, a luta pela escola pública é hoje uma questão muito importante. É por ela, também, que passa o enfrentamento entre duas ideias sobre o que deve ser a sociedade e a cidadania: saber se a escola deve proporcionar uma educação para a individualização e a competição ou uma educação do tipo solidário, mas que também seja capaz de permitir a individuação (que é diferente de individualização) e a aquisição e o desenvolvimento de capacidades em contextos marcados pela cooperação e pela solidariedade. Penso que este é um dos lados da questão. O outro é atendermos a que os contextos em que as pessoas aprendem e adquirem capacidades para viver em sociedade, começam a ser cada vez mais difusos e distribuídos, e não só por causa da internet e dos meios de comunicação: o local de trabalho desde sempre foi um lugar onde se aprende, as atividades de socialização próprias dos jovens (desportivas, de lazer, etc.) também, tal como a passagem pelo sistema de saúde e pelas instituições do Estado, por exemplo. Todos são lugares de aprendizagem, onde existe muito espaço para se pensar uma educação em sentido amplo. E é precisamente na relação entre a escola, entre o centramento na escola, e o descentramento dessa educação ampla nos diferentes contextos que se joga muito do que vão ser os cidadãos e a sociedade.

 

E como se pode operacionalizar essa relação?

Por exemplo, estão a ser fechadas escolas em muitos lugares onde alegadamente há poucas crianças. Ora, a ideia de que a escola serve apenas para instruir as crianças é muito pobre e redutora – se as crianças desaparecem, a escola deixa de ter função? Bom, a escola pode ser também o lugar onde se lançam iniciativas e catalisam atividades dirigidas à comunidade, ou a diferentes grupos da comunidade: pode, por exemplo, mobilizar pessoas interessadas numa educação de tipo escolar, mas realizada numa fase diferente da vida; não há razão nenhuma para considerar que populações de idosos não precisam da escola, desde que ela seja capaz de perceber o que pode fazer e com quem. Isto significa que, em vez de serem fechadas, as escolas poderiam ser instituições de dinamização cultural, de iniciativas cidadãs, que poderiam ser trabalhadas com a comunidade. E esse tipo de relação poderia ocorrer também nos sítios onde as escolas não estão ameaçadas, mas acaba por não acontecer por razões várias: falta de tempo dos professores, falta de pessoal, falta de motivação das pessoas que não estão na escola... Mas o potencial existe e é possível, por exemplo, criar atividades de extensão das escolas que podem ser extraordinariamente produtivas e agregadoras.

 

Isso sugere-me algumas questões práticas. Quem tutela e quem operacionaliza essas iniciativas? Quem abre a porta e quem paga a quem lá estiver?

Este é o tipo de iniciativa que seria necessário transformar num programa e que alguém fosse capaz de receber, compreender e operacionalizar. É óbvio que existem dificuldades, mas também é provável que ainda não saibamos todo o tipo de iniciativas que eventualmente já existam em escolas que funcionam como parte do sistema educativo ou com outras potencialidades. Isso exigiria uma intervenção programática que eu, neste momento, não tenho experiência nem competência para propor. Mas nos casos que conhecemos, há um potencial reconhecível para que possam ser partilhados como projetos-piloto. Mostrar que se pode fazer é muito importante.

 

Mesmo com caráter experimental.

Exatamente! E sendo experimental, às vezes, é mais fácil avançar. E pode ter um efeito de demonstração importante. Agora… Nós temos muitas dificuldades práticas para realizar este tipo de coisas. Desde logo, a instabilidade dos professores – mesmo que houvesse capacidade para os colocar, a circunstância de eles nunca saberem onde vão estar no ano seguinte cria imediatamente uma dificuldade grande; e se não há uma instituição capaz de apoiar esse tipo de atividades, tudo é mais difícil, porque uma boa parte dessa conceção ampla e difusa da educação precisa de ter ancoragem, muitas vezes nas escolas. Portanto, há condições que são também políticas e que não temos a certeza que venham a existir. Mas uma conceção de educação que não seja simplesmente instrução passa muito por aqui.

 

A propósito de condições políticas, que análise faz das políticas públicas para a educação? Parece-lhe que a educação é realmente uma prioridade dos governos, designadamente do atual?

Em primeiro lugar, acho que a educação é obviamente uma prioridade. Agora, pode haver entendimentos diferentes do que significa a educação e, independentemente de um governo investir mais ou menos, há também o projeto. E o projeto dos protagonistas do neoliberalismo é distinto de um projeto para formar cidadãos que sejam guiados e internalizem um conjunto de princípios diferentes. Por exemplo, uma coisa que me faz muita impressão é a existência de uma educação financeira para crianças – uma espécie de empreendedorismo infantil, em que se ensina às crianças o que é poupar e elas chegam aos 10 anos e já sabem o que é um cartão de crédito, como se usa e não sei o quê... Mas não aprendem a trabalhar num orçamento participativo de escola, como vi no Brasil. Uma experiência muito interessante, em que as crianças aprendem a trabalhar em conjunto, a partilhar, a decidir e a deliberar, não no sentido da educação financeira, mas para aprenderem a gerir a materialidade da vida de uma forma baseada em princípios completamente diferentes: não os da criança empreendedora, mas os da criança que pertence a um coletivo, a uma comunidade, e que é corresponsável por uma instituição. Claro que isto tem muito a ver com opções políticas gerais, mas também com as opções da escola.

 

Da escola, a que nível?

Mesmo no ensino das matérias. Eu fiz uma pós-graduação no Instituto de Educação da Universidade de Londres e passei grande parte do tempo a visitar escolas e experiências de ensino. Uma muito interessante era numa escola de um município governado por uma ala bastante radical do Partido Trabalhista. Por exemplo, na Matemática, eles defendiam que os problemas se resolvem mais rapidamente e com melhores resultados em colaboração do que cada um a tentar fazer sozinho. E o que eles faziam era dividir as turmas em grupos que trabalhavam de uma maneira e de outra; os que colaboravam tinham uma série de mecanismos para assegurar que todos contribuíam, e resolviam muito mais rapidamente. E havia outras intervenções dos professores que mostravam que iniciativas diferentes e orientações diferentes produziam, depois, disposições diferentes nos próprios estudantes. Portanto, há coisas que ficam no cruzamento entre a política geral e uma política mais descentrada, de escola, e dependendo da maior ou menor autonomia das escolas, há coisas que se podem fazer ou não.

 

Mas parece que entre o discurso da autonomia e a sua efetivação há um desfasamento. E, naturalmente, muitas escolas jogarão à defesa: avaliações, rankings...

Esse é que é o grande problema, que também sentimos no Ensino Superior – há uma obsessão com a avaliação, com a ideia de que as pessoas devem estar permanentemente sujeitas a avaliação. Ora, a avaliação devia ser um momento relativamente raro, devia examinar aquilo que foi feito durante um período de tempo, como se fez e quais os problemas encontrados, o que funcionou e não funcionou. E depois deveria dar um espaço de tempo para experimentar, para ver como corrigir ou intervir sobre o que estava mal. A avaliação devia consistir em ajudar a resolver o problema, mas hoje está transformada numa coisa que acontece quase permanentemente; é do tipo auditoria, mais do que avaliação. Interessa mais saber se as pessoas são capazes de responder à avaliação do que propriamente o conteúdo em avaliação. E muitas vezes tem um intuito punitivo – uma coisa que mete impressão é haver escolas que têm dificuldade em cumprir alguns objetivos e a posição do ministério é premiar as que cumprem e penalizar as outras; em vez de se ver porque não estão a cumprir e do que precisam para melhorar o seu desempenho, acabam por ser punidas... É um absurdo!

 

E cava mais a distância entre as escolas...

Esta ideia de que a escola existe para ser avaliada carateriza muito as atuais políticas de educação. E depois transfere-se para a nossa relação com os alunos. É uma espécie de colete de forças: vamos ter de lhes ensinar isto, eles devem aprender isto e nós temos de verificar a aprendizagem deles, quando, de facto, sabemos que a educação não é isso. Há muita coisa que fazemos e dizemos de que os alunos se vão apropriar e que vão usar de várias maneiras que não sabemos, e que podem não se manifestar na avaliação ou no exame. Tem de haver espaço para se lidar com as diferenças entre eles, com os seus contextos específicos e, na verdade, a auditoria permanente dificulta muito a experimentação de outras possibilidades que a escola abre. É por isso que a política de educação é central, e é muito importante que um ministro seja capaz de perceber isso. Há uma grande diferença entre um ministro que tem alguma noção do que é a educação e outro que não tenha.

 

No caso, teoricamente, Nuno Crato teria. E no entanto, a confusão que foi a abertura do ano letivo, a prova de avaliação dos professores (que vai voltar), a insistência nos mega-agrupamentos, o aumento do número de alunos por turma, o regresso dos exames no 4o ano... É certo que algumas medidas vêm de trás, mas a questão da via profissionalizante para crianças, a redução dos apoios a alunos com necessidades educativas especiais, a municipalização da educação... Além dos sucessivos cortes no Orçamento de Estado, com mais milhões, em 2015, para o ensino privado...

Exatamente!... Mas isso faz parte daquela ideia de o Estado passar de prestador a financiador de serviços em domínios que são da sua responsabilidade. E isto significa transferências maciças de recursos para o setor privado. É um mecanismo que já conhecemos noutros países, como o Brasil, onde os serviços de apoio social, e mesmo em áreas da saúde, começam a ser prestados por organizações sociais que na prática, muitas vezes são organizações privadas que vivem do dinheiro do Estado, e algumas com orçamentos muito superiores aos de organizações correspondentes que pertencem ao Estado. Isto hoje é praticamente doutrina: os privados gerem sempre melhor do que os públicos e, portanto, o que temos a fazer é passar-lhes o dinheiro para eles gerirem. O Estado continua, nominalmente, a assegurar os serviços, mas através dos privados. Os brasileiros chamam-lhe terceirização…

 

Já agora, o que é que efetivamente distingue um serviço público do mesmo serviço privado, que eventualmente até pode ser de interesse público? Porquê a ‘nuvem’ de que o privado é melhor do que o público?

Em princípio, os serviços públicos não têm fins lucrativos; são serviços essenciais, considerados importantes para a realização da cidadania, para o exercício dos direitos de cidadania. No caso da educação, significa que uma escola, ou o sistema de ensino, não deveria funcionar com uma orientação para o lucro e que aquilo que é investido não pode ser considerado como um gasto. Há, evidentemente, maneiras melhores ou piores de gerir os recursos, mas não se pode dizer que um serviço público é deficitário ou que dá prejuízo – pode haver problemas de boa ou má gestão, no sentido de se gastar mais do que se podia, de uma alocação de recursos deficiente, equivocada ou mal realizada, mas a noção de prejuízo não faz qualquer sentido. Dizer que um serviço público, que em princípio deve ser financiado, dá prejuízo é esquecer a sua natureza, que é precisamente não dar lucro – então, os recursos têm de vir de algum lado, neste caso do OE. Já no setor privado, ninguém abre uma escola para ter prejuízo. E, portanto, o que faz? Se recebe dinheiros do Estado, a seguir também vai cobrar, porque não quer funcionar simplesmente a preço de custo, e se for uma iniciativa legalmente reconhecida, é perfeitamente legítimo que queira fazer lucro. Mas que um colégio que tem uma educação com características muito especiais o faça, é uma coisa; outra coisa completamente diferente é a transferência de dinheiros do Estado para instituições que têm como objetivo o lucro. Depois geram-se situações como as parcerias público-privadas, em que o Estado garante o lucro estimado, independentemente do desempenho que possam vir a ter…

 

É o lucro de alguns assegurado pelo financiamento de todos.

Exatamente. E há outra questão: a ideia de que as instituições de serviços públicos não têm necessariamente de ser privatizadas, mas que devem ser geridas como se fossem privadas, que é outra maneira de fazer a mesma coisa. É dizer que os critérios são os mesmos e, nessa perspetiva, muitas escolas estariam sempre a dar prejuízo, nomeadamente as que existem em lugares onde o Estado tem de assegurar esse serviço e onde não há condições para que possam funcionar de uma maneira que equilibre o orçamento. Contudo, uma das ideias mais perigosas é a que a Organização Mundial do Comércio (OMC) preconiza, de que tudo é serviço e não há distinção entre público e privado: seja quem for que o preste, um serviço é sempre um serviço e deve obedecer a uma certa racionalidade económica – por exemplo, a ideia de que os Estados devem limitar e disciplinar o apoio às universidades públicas, porque elas são “serviços” e, como tal, devem competir no mercado global de serviços. As coisas não são bem assim e, portanto, o grande risco é a abolição dos adjetivos “público” ou “privado” e ficarmos apenas com “serviços”.

 

É importante reconhecer que há diferença entre público e privado

 

Relativamente às universidades, ocorre-me que, apesar dessa ‘orientação’ da OMC, estão a ter muitos constrangimentos no cumprimento do seu papel e muitas dificuldades em ter iniciativa própria. É também uma Crato-herança...

Nas universidades aconteceu uma coisa muito perversa, que foi o facto de haver um momento em que o Estado – obrigado a garantir as condições mínimas de funcionamento das universidades – tomou a decisão de financiar apenas 90% ou 95% dos seus orçamentos. Isto significou que elas tiveram de procurar outros financiamentos, mas isso, ao contrário do que alguém fantasiou na altura, não é assim tão fácil. Nós não estamos nos EUA, onde um milionário qualquer frequenta uma universidade e depois oferece-lhe um edifício ou faz-lhe uma doação de milhões.

 

E onde é que as universidades vão buscar financiamento?

Muitas vezes, através de alguma prestação de serviços, mas nem todas as universidades podem fazer isso, e nem todas as áreas das universidades. Também há projetos de investigação, que às vezes também trazem algum dinheiro, mas não é uma receita significativa e, normalmente, não assegura a cobertura daquilo que falta às universidades. Então, elas começam a ter de olhar à volta, a ver onde é que, afinal, vão buscar o dinheiro.

 

E o que fazem?

Aumentam as propinas! [risos] Quer dizer, começa-se a obrigar as pessoas que frequentam universidades públicas a assumirem, cada vez mais elas próprias, o custo da sua formação. E isto vai criar a ideia de que a vantagem de alguém frequentar a universidade é, sobretudo, pessoal e individual, quando, de facto, a universidade contribui para a criação de uma massa crítica com formação avançada e superior, que depois contribui para outros tipos de atividade: não teríamos saúde se não houvesse faculdades de medicina, não teríamos educação se não houvesse formação de professores, grande parte da construção civil não existiria se não houvesse engenheiros civis... Portanto, há aqui uma contribuição coletiva, pública, para garantir as coisas que definem uma sociedade como aquela em que, em princípio, todos desejaríamos viver. Quando se começa a individualizar, isso é também uma espécie de legitimação da ideia de que a frequência da universidade e a obtenção de um grau académico são investimentos pessoais e individuais que têm de ser potenciados e recuperados. E como muita gente não consegue pagar, o que está a acontecer em vários países é as pessoas contraírem empréstimos e depois passarem a vida a pagá-los. Portanto, apesar de se dizer que a fronteira é ténue, é muito importante reconhecer que realmente existe diferença, de orientação, de estratégia, de programa, entre serviço público e privado – uma diferença política que temos de saber reafirmar, independentemente do lado em que se esteja.

 

Um dos argumentos utilizados contra a escola pública é a questão do insucesso. Mas os indicadores internacionais, valendo o que valem, dão conta de que Portugal está na média do PISA e até tem tido uma taxa de progressão maior do que a média no TIMSS. Não há aqui um equívoco?

Sim, mas isso tem a ver com a convicção de que “tem de ser assim”, independentemente da verificação dos resultados. Existe um pressuposto ideológico de que é “assim” que a coisa deve ser e que vai funcionar. No caso do ensino público, existe a ideia de que “é pior”, tem que ser pior, não pode ser tão bom como o privado. Mas convém não esquecer que há razões óbvias para muitas escolas públicas aparecerem mal referenciadas: por exemplo, numa escola do interior do país, onde as pessoas não têm acesso ao mesmo tipo de recursos que as classes médias urbanas, aquilo a que Pierre Bourdieu chama capital cultural familiar dos alunos é diferente e muitas vezes têm de percorrer enormes distâncias para ir à escola, cujas condições também podem não ser muito boas, que não têm professores suficientes, ou que mudam todos os anos, etc. Tudo isto cria um conjunto de dificuldades que não são iguais às do setor privado, que tende a ter uma população socialmente mais homogénea. Primeiro porque os alunos são escolhidos e depois porque elas têm sistemas de eliminação dos que consideram desadequados relativamente aos seus padrões, e assim chegam ao final com uma amostra selecionada de alunos. É por isso que os rankings são perversos, porque ignoram a importância dos fatores socioeconómicos e socioculturais e comparam escolas que têm condições completamente diferentes.

 

Também por isso, o sistema educativo poderia, ou deveria, ser mais aberto à experimentação. Ou não?

Sim. Uma experimentação no sentido de responder às condições em que os professores têm de trabalhar, ao tipo de públicos que a escola tem, à diversidade da população estudantil, ao contexto local, etc. E isto é muito desvalorizado, e muitas vezes até atacado, pelos ideólogos de que um dos grandes problemas do nosso sistema educativo é estar constantemente a experimentar. Não, a razão por que se experimentou muitas vezes foi precisamente porque se estava à procura. É por isso que eu tenho um respeito muito grande pelas pessoas que trabalham no sistema de ensino, e acho que é muito injusta a maneira de tratar aquilo que se vê como problemas. É evidente que há problemas, que há dificuldades de funcionamento, provavelmente dificuldades de lidar com muitas das coisas que acontecem e que, algumas delas, têm muito a ver com as políticas para a educação – estou a lembrar-me, por exemplo, que é fulcral resolver a mobilidade dos professores, um problema enorme tanto para os professores como para todos aqueles que passam pelo sistema de ensino. E depois, a própria escola, como equipamento, também tem muitos problemas.

 

E relativamente aos professores?

Há muitas coisas que dependem de se encontrar uma resposta, e para isso, lá está, às vezes é preciso experimentar, não há outra maneira. Mesmo na formação de professores. Em princípio, um professor traz consigo uma certa capacidade... Um professor que lida com turmas com a composição que têm hoje tem que ser, necessariamente, uma pessoa capaz de ser criativa, se tiver incentivo para o ser. Se estiver numa daquelas situações em que não vê saída, é claro que a tentação é sempre ir mantendo a situação, porque já sabe que no ano seguinte vai para outro lado. Mas se tiver a possibilidade, de facto, de começar a trabalhar em algo que tem continuidade e que pode dar resposta a algumas características daquele contexto, daquele tipo de população, as coisas podem ser diferentes. Mas para isto era preciso um conjunto de mudanças na maneira como se pensa o grau de plasticidade do sistema, que é uma coisa que ele precisa de ter.

 

Não sei como é noutras áreas, nem tenho a certeza de ser assim nas Ciências da Educação, mas tenho a sensação de que a investigação realizada é pouco difundida para os protagonistas do sistema educativo e pouco reconhecida pelos decisores políticos. A ser verdade, porquê?

É um problema que pode ter muitas origens. Pode ter a ver com o desenho dos próprios projetos. Uma coisa muito importante seria que a investigação passasse a ser não sobre, mas com o sistema educativo e com os seus protagonistas e participantes. Isto significa, por exemplo, que quando eu estudo uma escola, não posso simplesmente chegar lá, fazer o trabalho, vir-me embora e depois, muitas vezes, as pessoas nem sequer sabem o que acontece com aquilo. Teria de haver um processo de trabalho com as pessoas, mas depois trabalhar também sobre os próprios resultados. Isso é uma coisa que é possível resolver, desde que o desenho da investigação seja orientado para esse trabalho com as pessoas. Coisa diferente é o que acontece com quem define as políticas da educação, e esse é que é o grande problema. As políticas públicas são pouco enformadas pela investigação, pela simples razão de que as orientações estruturantes das políticas, em qualquer área, são normalmente definidas sem que haja uma tentativa de indagar previamente qual o estado daquilo que se sabe sobre o tema. Sei disto em algumas áreas, não tenho a certeza que seja em todas, mas suspeito que na educação é o que acontece. E é por isso que, por vezes, aparecem coisas um bocado aberrantes, como haver políticas de Estado completamente ao arrepio daquilo que diz a investigação.

 

Por desleixo ou porque o conhecimento não é disponibilizado?

Não, não, isto é do conhecimento público! Muitas vezes há uma espécie de inércia das próprias administrações. Mas também há um problema que pode desincentivar o recurso à investigação – é que, se se levarem a sério os resultados da investigação e o tipo de transformações necessárias, muitas vezes ninguém sabe bem como é que elas podem ser feitas, porque, por exemplo, interferem com as rotinas da organização, com aquilo que é a formação das pessoas e a maneira como trabalham. Portanto, é mais fácil “vamos fazer como sempre fizemos e depois vamos incorporando algumas mudanças que nos mandam fazer”, mas sem tocar no essencial do que é o funcionamento do sistema. Por isso, a mudança institucional é complicada e muito lenta, e não pode ser simplesmente decretada, porque tem que levar a transformações de práticas muito localizadas dentro da instituição. Por muito que eu possa dizer que descobrimos isto e que deve ser feita esta a mudança, as instituições não conseguem mudar rapidamente, não por culpa das pessoas, mas porque é realmente complicado. Por exemplo, orientações de política educativa que obriguem a mexer na organização do sistema de cima a baixo são uma coisa muito, muito complicada.

 

Mas foi o soundbite de Nuno Crato, implodir o ministério e...

Sim, mas ele nem sequer conseguiu pôr o ano letivo a funcionar...

 

... e acabar com os interesses instalados.

Interesses instalados é uma coisa demagógica, porque muitas vezes são confundidos com capacidade instalada. Há muita gente sem a qual o sistema não funciona, mas não é um problema de interesses, é um problema de não haver capacidade capaz de substituir a capacidade que já existe, e há que reconhecer a dificuldade deste processo. Não é fácil mudar! É muito difícil! Há muita resistência! E essa resistência não é sempre intencional, ou por causa de interesses instalados; muitas vezes, é porque há resistências materiais do próprio sistema que levam a que haja muitos limites ao que é possível fazer. Se não fosse assim, qualquer governo que tivesse um programa radical de reformas chegava e reformava tudo, mas nunca houve nenhum governo assim. Porquê? Precisamente porque não se consegue.

 

António Baldaia (entrevista)

Ana Alvim (fotografia)


  
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