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Ministério da Educação mostrou “total inabilidade política para lidar com os diversos agentes educativos, em particular com os professores”

Professor Catedrático da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa e coordenador da Unidade de Investigação e Desenvolvimento Educativo em Ciências da Educação desta instituição, Rui Canário é actualmente um dos mais prestigiados investigadores na área da Educação em Portugal. É presidente do Conselho Científico do Instituto das Comunidades Educativas e Coordenador do Mestrado na área de Formação de Adultos da FPCEUL. Neste âmbito, foi consultor científico, a nível nacional, dos Cursos de Educação e Formação de Adultos (Cursos EFA, promovidos pela ANEFA – Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos) durante o ano 2002. Entre outros projectos, foi, entre 2002 e 2004, o investigador responsável pelo projecto ESTER (Escolas e Territórios). É autor de inúmeras obras publicadas em autoria e co-autoria e de dezenas de artigos em revistas científicas, sendo também membro do Conselho Editorial e do Conselho Consultivo de diversas revistas nacionais e internacionais. Nesta entrevista, Rui Canário faz o balanço de quatro anos de governação do Ministério da Educação e mostra-se extremamente crítico relativamente à política seguida por Maria de Lurdes Rodrigues – em particular aquilo que considera ter sido o conflito permanente e a atitude persecutória face aos professores.

 

Que balanço global faz dos últimos quatro anos de governação da equipa de Maria de Lurdes Rodrigues?
Diria que o balanço é extremamente negativo, marcado sobretudo pelo conflito permanente com os professores e pela atitude persecutória que a equipa ministerial manteve em relação a eles. Em vez de resolver problemas, o ministério criou-os. Dificilmente poderemos dizer que as escolas estão melhor hoje do que quando se iniciou a legislatura. E não há dúvida de que tudo aquilo que foi feito em relação aos professores provocou prejuízos que são ainda difíceis de avaliar, nomeadamente no que respeita ao funcionamento das escolas e à relação dos professores com os alunos. Alguns deles diria mesmo irreversíveis.

A herança que este ministério deixou terá inevitavelmente de ser abandonada?
Bom, aquilo que ficou não foi quase nada. O modelo de avaliação, por exemplo, que de recuo em recuo o Ministério da Educação e o próprio primeiro-ministro acabaram por admitir que era extremamente burocrático, complexo, inadequado. E o modelo simplificado de avaliação acabou por ficar bastante distante daquilo que era o modelo inicial. Neste capítulo, portanto, a questão não se coloca em termos de saber se as decisões que foram tomadas irão ou não manter-se, porque elas nem sequer foram aplicadas. O que se tem passado nas escolas está muito distante dos normativos e daquilo que está estipulado inicialmente. Penso que a futura equipa ministerial terá necessariamente de retomar esta questão a partir do zero e manter uma atitude negocial completamente diferente face aos sindicatos. No que se refere à questão da divisão da carreira, não sei exactamente quais as suas implicações, mas considero-a reversível. Não há nenhum motivo técnico nem de funcionamento do sistema educativo que a justifique. Aliás, como refere o meu colega João Formosinho, houve um processo de fabricação burocrática de uma categoria de professores titulares que se desenvolveu em muitos aspectos de forma totalmente arbitrária e que de modo algum constituiu a criação de uma elite profissional, susceptível de ter uma legitimidade e uma autoridade próprias.

O que fica então, afinal, destes quatro anos?
A ministra Maria de Lurdes Rodrigues e a sua equipa partiram do princípio de que os professores tinham privilégios e de que tinham de ser postos na ordem. Em relação a tudo o que são objectivos não alcançados, aliás, a atitude da ministra tem sido a de culpabilizar quer os professores, quer os alunos, passando pelos pais e pela comunicação social, transformados em bodes expiatórios de todos os problemas do sistema de ensino. Por outro lado, um dos aspectos que melhor explica a política global deste ministério é a necessidade de fazer poupanças, que justificam as dificuldades de progressão na carreira, nomeadamente à ascensão ao topo por parte da maioria dos professores, a imposição de quotas na avaliação, o aumento do horário de trabalho, etc. Todas estas medidas têm um pendor marcadamente economicista e traduzem-se em ganhos do ponto de vista económico. O que fica destes quatro anos, portanto, é o prejuízo desta acção. E a diminuição de despesas, para já…

Tal como referiu no princípio desta entrevista, o aspecto que porventura mais marcou estes quatro anos de governação foi o conflito que opôs os professores à tutela. Acha que ele pode ser resolvido no futuro próximo?
Não devemos nem subestimar nem sobreavaliar aquilo que foi a iniciativa desta ministra e desta equipa ministerial. Há muitos aspectos das mudanças que estão a ser vividas pelos professores portugueses que são tendências comuns ao mundo inteiro. Porque muitas das medidas que este ministério está a aplicar, ou tentou aplicar, correspondem a recomendações de organismos internacionais, inseridas num processo global de intensificação do trabalho e de desprofissionalização do trabalho docente, de insatisfação dos docentes, de insatisfação em relação à escola... Um conjunto de problemas estruturais e de dilemas que atravessam os sistemas educativos e que não são passíveis de uma solução que satisfaça toda a gente. Neste sentido, o ME limitou-se a ser o intérprete de políticas que não são originais. O que marca sobretudo este consulado é a total inabilidade política para lidar com os diversos agentes educativos, em particular com os professores. Nas propostas de avaliação que foram avançadas pelo ME existem questões extremamente controversas, mas rapidamente se percebeu que ela se transformou numa questão essencialmente política, não técnica. A partir daí há uma incapacidade total do Governo para recuar de uma forma organizada, mantendo a teimosia e a mesma acrimónia contra os professores. Isso foi desastroso e podia ter sido conduzido de outra forma completamente diferente.

Concordará que reconquistar a confiança dos professores é fundamental para o Governo que saia das próximas eleições... mas de que forma?
Quem ocupa a pasta do ME tem tendência a fazer grandes reformas e a querer resolver um conjunto de problemas que não são susceptíveis de serem resolvidos no curto prazo. Porque não se trata de problemas de carácter conjuntural, mas estrutural. Nesse sentido, há problemas do sistema educativo que não irão ser resolvidos por este ou por qualquer outro Governo, alguns irão até agravar-se. Do ponto de vista político, é necessário que haja uma inflexão na forma como se lida com 150 mil professores, que ao longo deste tempo foram sujeitos a uma grande pressão. Qualquer pessoa que conheça a realidade das escolas e da profissão docente nunca pensaria ser possível juntar três quartos dos professores portugueses em manifestações nacionais. Muitos nunca haviam participado em qualquer manifestação ou acção colectiva... E o nível de adesão às greves é também ele histórico. O ministério conseguiu a proeza de unir todos os sindicatos e de incentivar um trabalho de resistência dos professores, de ter suscitado o aparecimento de vários movimentos autónomos, que acabaram por ter um papel decisivo na acção dos sindicatos. Será portanto imprescindível mais diálogo e uma atitude de negociação com os sindicatos, que nos últimos anos não passou de um diálogo de surdos. Até porque nenhuma das medidas tomadas nos últimos anos assegura qualquer melhoria de funcionamento do sistema educativo nem dos resultados das aprendizagens dos alunos. Muito mais importante do que avaliar o desempenho individual dos professores é avaliar e acompanhar as práticas das escolas e a melhoria do seu funcionamento. Porque as escolas são colectivos, não são somatórios de indivíduos. Terá necessariamente de se apostar noutras prioridades, mas isso não significa, insisto, que de um momento para outro os professores passem a ser felizes na sua profissão, que os resultados nas aprendizagens melhorem, etc.

Tendo em conta que este modelo de avaliação foi rejeitado pela maioria dos professores, que outro modelo pode ser satisfatório?
Julgo que a avaliação dos professores não é o problema fundamental. Considero a avaliação das escolas uma questão de muito maior importância. Durante esta legislatura, na altura em que Portugal ocupava a presidência da União Europeia, realizou-se em Lisboa uma conferência justamente sobre o desenvolvimento profissional e a formação profissional dos professores. E toda a política que está a ser seguida vai ao arrepio das orientações, das recomendações e das conclusões a que se chegou nesse encontro, no qual participaram representantes de todos os países europeus. O grande problema que se coloca não só em Portugal mas em toda a Europa é o de tornar a profissão docente uma profissão atractiva. Aquilo que verificamos nos últimos anos, no entanto, é que há uma corrida às aposentações, porque de facto os professores vivem um quotidiano insuportável. A questão central será, então, reconquistar a confiança dos professores e criar condições de funcionamento minimamente saudáveis nas escolas. Porque as escolas são, actualmente, organizações doentes.

Que comentário lhe merece o novo modelo de administração e gestão das escolas?
Penso que nos últimos trinta anos temos vindo a assistir à implantação de um sistema democrático que, de alguma maneira, é construído em sentido contrário àquilo que foi o regime que se viveu entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1976, período marcado pela explosão da participação popular e da democracia participativa, que se traduziu numa alteração bastante significativa da relação de forças entre o capital e o trabalho e das modalidades de exercício do poder nos locais de trabalho. A gestão democrática significou a transposição para as escolas e para o ensino desse movimento auto-gestionário que atravessou a sociedade portuguesa – que é inclusivamente anterior à legislação sobre a gestão democrática das escolas. O que se tem vindo a verificar desde então é a tentativa de repor uma certa normalização que culmina na imposição dos directores, quando essa não é a questão central do funcionamento das escolas. Não é por funcionarem com uma maior participação dos professores ou com órgãos colegiais que elas funcionam mal. Se não fosse a direcção colegial das escolas, aliás, não seria possível em muitos casos manter o sistema educativo a funcionar com os níveis de eficácia que ele ainda mantém. É por mérito e por profissionalismo dos professores que as escolas continuam a funcionar.

Este modelo põe sobretudo em causa a participação dos professores nas tomadas de decisão no interior das escolas...
Sim, transformações que de resto são congruentes com um reforço do controlo dos professores e com uma diminuição da autonomia das escolas. É preciso recordar que a partir dos anos 80, e sobretudo a partir dos anos 90, houve legislação e alguns passos positivos na tentativa de ensaiar formas de desconcentração e de devolução de autonomia e de poder às escolas. Nos últimos anos temos assistido a um movimento precisamente inverso. A ministra parece querer assumir-se como a “patroa” das escolas e dos conselhos executivos, fazendo dos órgãos de gestão e dos directores meras correias de transmissão para aplicar as suas políticas e impô-las aos professores.

Uma das bandeiras deste Governo foi o prolongamento da escolaridade obrigatória até ao 12.º ano. Parece-lhe que estão reunidas as condições para esta medida resultar de forma positiva?
Apontar os 12 anos de escolaridade como horizonte mínimo e desejável de qualificação é uma inevitabilidade, e corresponde a uma orientação genérica da OCDE e de outros organismos internacionais em relação a Portugal. No entanto, julgo que houve na decisão do Governo considerações de carácter eleitoral e de timing político, mais do que de política educativa. É uma medida tomada em véspera de eleições, que não está apoiada em estudos e que não irá ter repercussões imediatas. Apesar de tudo, a pretensão de aumentar substancialmente a frequência do ensino secundário, e consequentemente a necessidade de diversificar vias de oferta educativa, é uma orientação incontornável. A nível da formação e da educação de adultos, penso que o Governo deu uma sequência desastrada à decisão – a meu ver calamitosa – de extinguir a Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos (ANEFA), instituição que tinha um rumo e que foi pioneira em algumas medidas que poderiam ter tido um desenvolvimento interessante. O Programa Novas Oportunidades massificou-se e corre o risco de desvirtuar e desacreditar por completo o potencial da educação e formação de adultos.

Considera que faria sentido repensar o percurso curricular unificado actualmente presente nas escolas, proporcionado uma oferta curricular mais flexível?
Isso já está a acontecer, mas partindo de um currículo padrão demasiado extenso para grande parte dos alunos e de uma multiplicação de ofertas que muitas vezes não têm mais do que um carácter paliativo. No ensino básico é grave que se criem percursos alternativos logo a partir do 5.º ano de escolaridade – e até já se pensa em percursos curriculares alternativos no 1.º ciclo do ensino básico… Na minha opinião, acho que se deve preservar a unidade dos nove anos de escolaridade do ensino básico. Isso não significa que tenha necessariamente de haver um currículo de carácter uniforme, mas aí entramos na questão da autonomia das escolas, que deveriam poder, a partir de um currículo mínimo nacional, delinear o seu projecto educativo, gerir os seus recursos e organizar-se em equipas educativas que pudessem proporcionar essa multiplicidade de caminhos.

Existe hoje um consenso relativamente alargado face à necessidade de se repensar a profissão docente e a educação. Quais são os caminhos possíveis e que papel podem ter os sindicatos?
Como já referi, penso que há hoje um processo de desprofissionalização dos professores. Os professores estão divididos e sujeitos a pressões muito contraditórias. E isto cria uma situação de quase esquizofrenia em relação à profissão. Acho que aquilo que aconteceu durante este último ano e meio, que gerou uma situação extremamente problemática para a classe, talvez pudesse ser aproveitada pelos sindicatos e pelos movimentos autónomos de professores para um reacordar da consciência profissional colectiva e do movimento colectivo de professores. Os governos tendem a colocar os problemas do país sob a perspectiva do desenvolvimento e a porem em prática políticas que conduzem à desertificação e à depressão económica da maior parte das regiões do país que não se situam no litoral e nos grandes eixos que conduzem à Europa. Não há uma política dirigida às regiões rurais. Do ponto de vista educativo, uma das questões que me parece mais negativa é a política seguida em relação às escolas situadas em meio rural, embora este seja habitualmente encarado como um problema menor. O trabalho que foi conduzido nos últimos vinte anos a este nível, com a participação muito empenhada das autarquias e de instituições como o Instituto das Comunidades Educativas, revelaram que esse era um campo potencialmente muito rico em termos de inovação.

Que margem de manobra têm ainda os governos para delinear as suas políticas educativas a nível nacional?
A margem de manobra dos vários governos a nível nacional é hoje mais diminuta em todos os domínios, num período em que os poderes supranacionais se afirmam relativamente ao Estado-nação. Apesar de formalmente a União Europeia não ter uma política educativa única, na prática ela define e impõe orientações por múltiplas vias, nomeadamente pela via do financiamento. Mas embora não tenhamos autonomia e capacidade para pensar que poderemos resolver os nossos problemas no âmbito nacional – isso seria querer regressar a um passado que já se encontra distante – penso que há uma margem possível de manobra. E isso significa que eles terão de ser equacionados do ponto de vista social, político, sindical e das movimentações sociais numa perspectiva transnacional. Temos de ter um horizonte de transformação mundial, não o espaço definido pelas nossas fronteiras. O facto de as grandes opções em termos de política económica, educativa ou de saúde serem condicionadas por factores que supranacionais não nos conduz a nenhum determinismo. Porque de contrário deixaria de haver possibilidade de exercer política, que na prática é a capacidade de exercer escolhas.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
Fotografia de Teresa Couto


  
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