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Elites culturais de Lisboa e Porto têm mais tendência para o complexo de inferioridade

Doutorado em Sociologia da Cultura (Coimbra, 2010), sob orientação de Boaventura de Sousa Santos e Max Paddison, António Pinho Vargas é professor de Composição na Escola Superior de Música de Lisboa e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Músico, compositor e ensaísta, é licenciado em História (Universidade do Porto), fez o Curso Superior de Piano no Conservatório do Porto e concluiu mestrado no Conservatório de Roterdão. Colabora ou colaborou directamente com a Porto 2001, Casa da Música, Fundação de Serralves e Centro Cultural de Belém. Condecorado pelo Presidente de República com a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique (1995), recebeu a Medalha de Mérito Cultural da câmara de Gaia (1998). Premiado com três “Sete de Ouro” para melhor disco instrumental do ano, Pinho Vargas compõe regularmente para teatro e cinema, tendo sido distinguido pelas bandas sonoras originais de «Tempos Difíceis» (João Botelho) e «Cinco Dias Cinco Noites» (José Fonseca e Costa).

Na véspera de um concerto – “a minha música e os improvisos que consiga fazer” – numa capela em Santo Amaro de Oeiras, a dois passos do local escolhido para esta conversa (Centro Cultural de Belém), António Pinho Vargas falou calmamente do seu trabalho, das etapas já percorridas, dos projectos e também das suas apreensões de cidadão atento, muito preocupado com “a asfixia da vida cultural do país”. Mas a conversa, numa bela manhã de sol, com a Ponte 25 de Abril e a serenidade do Tejo como cenário, estava condenada a começar pelo concerto do dia seguinte. Pinho Vargas veste a camisola do artista experiente, habituado à diversidade dos locais, das condições de trabalho e dos públicos: “Não conheço a capela onde vou actuar. Sei que serei o único, neste ciclo de teclas, essencialmente de música clássica, a improvisar. Vamos ver como corre...”


Primeiro andamento: do jazz e do provincianismo

“Nos anos ‘70 e ‘80 do século passado dediquei o essencial da minha actividade ao jazz. Gravei sete discos com dezenas de composições originais e toquei em vários países da Europa, em Cabo Verde, na África do Sul, em Macau e nos Estados Unidos (EUA). Trabalhei com músicos como Kenny Wheeler, Steve Potts, Paolo Fresu, Arild Andersen e Jon Christensen. Mas o mais importante, de longe, foi tudo o que compus nesse período”. 

 Nota-se um brilhozinho nos olhos quando fala da sua dedicação ao jazz.

Vivi muitas experiências Aprendi muito nessa etapa. Aliás, estamos sempre a aprender…

Mas a vida também é feita de paragens e reflexões...

Em 2001 decidi parar com os concertos um certo tempo. Tinha muito trabalho como compositor, e quando dei conta, já tinham passado sete anos… Surgiram então «Solo I» e «Solo II», em 2008/2009, uma vez que a gravação realizada (três horas) teve que se dividir por quatro CDs. Percebi então que alguma coisa tinha mudado, por várias razões – uma delas é que tocar sozinho ao piano implica outro tipo de abordagem face ao instrumento e cada vez mais se tornou claro o maior grau de liberdade e de outras possibilidades. Percorrendo alguns festivais que animam o país jazzístico, desenha-se-nos um cenário optimista. Tem razão quando diz que temos hoje, de Norte a Sul, passando pelas regiões autónomas, um naipe de festivais de jazz de reconhecida qualidade. Mas, infelizmente, penso que, na generalidade, os programadores são muito provincianos – preferem sempre o estrangeiro ao português, e apenas por essa razão. É uma atitude provinciana na sua aparência cosmopolita. Não tenho acompanhado a par e passo este sector, nos últimos anos, porque a música contemporânea cada vez me ocupou mais tempo e trabalho, mas dizem-me que a qualidade média dos músicos portugueses de jazz subiu imenso. Isto, num cenário marcado, ao mesmo tempo, pela raridade das suas participações nos festivais que as autarquias organizam, com programadores que preferem logo à partida um norte-americano em vez de um português, mesmo que este seja eventualmente superior. Isto é uma situação perversa. Não me afecta directamente, porque há muitos anos que não sou ‘músico de jazz’ no sentido habitual. Toco a minha música desse período, improviso e é tudo. Mas afecta a geração mais jovem.

Cascais Jazz, Jazz em Agosto...

O Festival de Jazz de Cascais, que começou em 1971, enquanto foi organizado pelo Luís Villas-Boas, incluía sempre um grupo português em cada um dos três dias da programação. O Jazz em Agosto, iniciado em 1983, na Fundação Gulbenkian, enquanto Madalena Azeredo Perdigão foi directora do serviço ACARTE (entretanto extinto), também tinha sempre um grupo português em cada edição. Depois do seu desaparecimento – em 1989, salvo erro – e depois de uma fase de transição, com vários directores, o programador actual imprimiu o seu gosto particular, muito associado ao freejazz dos anos ‘60 e ‘70 e às suas ramificações de hoje, e praticamente só contrata músicos dessa corrente. Inclui um português ou outro, raramente, mas ao mesmo tempo provincializa-o, pondo-o a tocar numa sala mais pequena… Isto não tem sentido. É mais um exemplo, neste caso no jazz, daquilo que defendo na minha tese de doutoramento: a ausência da música portuguesa no interior do próprio país é produto da acção e da responsabilidade dos próprios portugueses, da sua acção como decisor que aceita como natural a menoridade: dos outros portugueses e fundamentalmente de si próprio, sem se dar conta.

 

Segundo andamento: do atavismo nacional e do ensino da música

“Tem sido assim o nosso provincianismo atávico, para o qual têm chamado a atenção vários pensadores no século XX, a começar em Fernando Pessoa e a acabar em Boaventura Sousa Santos e Eduardo Lourenço, que falam da relação complexa e complexada que Portugal tem com a Europa («Nós e a Europa ou as duas razões» é um dos livros de Lourenço que aborda esta problemática), uma relação de ressentimento e fascínio. Ressentimento, porque ninguém nos liga nenhuma; fascínio, porque se assume uma mitificação dos países centrais da Europa e dos seus produtos culturais Ora o ‘lá fora’ é um produto da imaginação do periférico que imagina a Europa una, quando ela é muito diversa. O que é comum a estes pensadores é que todos eles – a começar em Pessoa – dizem que as elites culturais são mais provincianas do que o povo. Pessoa dizia mesmo que as cidades portuguesas mais provincianas são Lisboa e Porto. Isto continua a ser verdade! É óbvio que isto não significa que só haja provincianos nestas duas cidades, mas são as elites culturais de Lisboa e Porto as que têm maior tendência para este complexo de inferioridade”.

Mas isso é um fenómeno recente?

Esse provincianismo é uma característica da sociedade portuguesa desde o século XVIII. Antero de Quental foi importante na reflexão sobre este problema e marcou decisivamente o momento da interiorização nos meios culturais da ideia da decadência face à modernidade no Norte da Europa.

Tenho à minha frente o licenciado em História…

Sim, mas também a Sociologia e a minha tese. O conhecimento da realidade obriga-nos a conhecer, a estudar e a reflectir sobre vários ângulos. O músico que pensa que basta saber música para ser bom músico não sabe música.

Historiador e sociólogo, investigador, músico e compositor. Mas também professor...

Com raríssimas excepções, os compositores da música erudita contemporânea – um espaço à parte da música clássica, numa divisão que se manifestou a partir da II Grande Guerra – são também professores de composição. Faz parte da própria natureza da sua actividade. Gosto bastante deste trabalho, é um momento de prazer.

Contribuir para ver as peças a nascer… A par com o trabalho propriamente dito do professor, a transmissão de um saber, está a identificação de uma criatividade, fomentá-la, libertá-la, fazê-la crescer…

E a escola, está a sobreviver?

Vai sobrevivendo com os cortes, como todas as instituições públicas. A escola foi fundada em 1983, quando os antigos conservatórios foram substituídos. Foi a adopção d o modelo universitário americano em Portugal. Outros países da Europa preferiram manter os conservatórios, anterior sistema de ensino da música, de origem napoleónica. Essa adopção do sistema anglo-americano teve alguns efeitos perversos, a transição foi muito complicada, a começar pela contratação dos professores. Isto aconteceu no consulado do ministro Roberto Carneiro. Na minha perspectiva, foi um processo que correu mal, foi muito mal conduzido. Com muitas injustiças, nomeadamente no plano das carreiras profissionais dos docentes – alguns a ficarem sem o reconhecimento apropriado e atempado das suas habilitações, depois de muitos anos de ensino. Durante três décadas, no momento em que um aluno completava um curso, ficava imediatamente com uma habilitação superior à do professor que teve. Um disparate! Aliás, pouco sabido fora do meio musical.

Critica a pobreza do ensino da Música no sistema educativo...

Penso que ao nível do Ensino Básico há um ensino da Música de iniciação, mas depois desaparece dos currículos. Em muitos países, o ensino da Música tem um lugar de dignidade idêntico ao da Matemática ou das Ciências. A formação da criança e do adolescente precisa da música. Não se trata de formar músicos, ninguém está a pensar em formar músicos nesta fase. É preciso, isso sim, formar pessoas para mais tarde poderem ouvir música, enriquecendo-se como cidadãos, mais completos e como público potencial. Normalmente, os tecnocratas não têm qualquer noção da importância educativa da Música, encaram-na como se fosse um luxo apropriado para cerimónias... E quando não se investe nesta área, as consequências fazem-se sentir ao longo das sucessivas gerações. Para as elites, é chique ir de vez em quando a um concerto na Gulbenkian. Mas estas elites de que falo não são verdadeiramente cultas, apesar de se pensarem como tal.

 

Terceiro andamento: da política e da cultura

“E nesse sentido – já agora permita-me esta breve nota – há uma grande diferença entre a classe política actual e a que tínhamos, por exemplo, nos 10 anos a seguir ao 25 de Abril. Há uma diferença geracional e cultural muito grande. Os políticos preocupados com a formação humana e social foram-se embora e, pouco a pouco, instalaram-se tecnocratas que tomam os seus saberes especializados como tudo aquilo que interessa saber. E, na verdade, nem de números sabem, como a realidade tem demonstrado. Afinal, a economia, hoje, não é ciência nenhuma; é um jogo de apostas. Por isso é que a expressão ‘capitalismo de casino’ tem algum sentido. Se há casino é porque há apostas e jogo, e o que temos visto é que quanto mais eles apostam, mais erram.No meio disto tudo, levamos ainda com os chavões da ‘competência técnica’, confundindo técnica com política e com visões do mundo ligadas aos grandes interesses do capital financeiro e especulativo. É tão simples quanto isso. Os economistas não conseguem pensar o mundo em toda a sua complexidade. Vivemos no período da ganância. E muita gente – incluindo pessoas que nem são de esquerda e que até já desempenharam funções em entidades como o Banco Mundial, como Joseph Stiglitz – reconhece que esta é uma economia da ganância”.

Mas não nos podemos resignar.

Não. Mas cada vez mais se torna claro que a resposta tem que ser global.

Na área cultural, também há um empobrecimento nacional em marcha...

Não haver um ministério, mas uma Secretaria de Estado da Cultura, é apenas uma desvalorização simbólica. Mas, para ser franco, não me parece que isso seja o mais importante. Preocupo-me mais com a forma como se põem a funcionar os equipamentos culturais que pertencem ao Estado – como os teatros nacionais, por exemplo – e como se considera a atribuição dos subsídios às pequenas instituições e aos grupos das diferentes áreas culturais, como o teatro ou o cinema. Os cortes que agora estão a ser executados vão pôr em causa muito trabalho cultural em todo o país.

Acredita que há agentes culturais mais ‘protegidos’ do que outros?

Há directores e responsáveis de instituições que têm o subsídio quase sempre garantido, é verdade. Neste aspecto não devia haver receio de repensar a acção do Estado sem tabus. Nem tudo tem corrido bem nas três últimas décadas e criaram-se lobbies poderosos. Os campos de produção cultural, como Pierre Bourdieu nos ensinou, são campos de disputas e combates por primazias. O apoio às artes e à Cultura merece uma profunda reflexão. Mesmo os mais institucionais, como o Teatro Nacional de São Carlos ou a Casa da Música, vão ter, talvez, de baixar salários, para terem dinheiro para a programação. O corte que se pretende implementar em 2012 coloca mesmo as grandes instituições nesse plano de luta quotidiana pela sobrevivência. Trabalhei nesta casa (CCB), como programador, entre 1996 e 1999 e percebi, já nessa altura, em que o ministro da tutela era Manuel Maria Carrilho, que a instituição vivia num permanente subfinanciamento, com a necessidade de alugar espaços para criar receitas próprias (e acho bem que o faça), num clima muitas vezes marcado pela angústia e a incerteza.

 

Quarto andamento: da edição e da composição 

Para concluir, não posso deixar de lhe lançar um derradeiro desafio – falar dos seus projectos...

Há dois discos que poderão ser editados no próximo ano, e destaco o tempo verbal – poderão...
Um, é a ópera «Outro Fim», gravada ao vivo na Culturgest, com libreto de José Maria Mendes; trabalho estreado em 2008, a gravação existe e, neste momento, o administrador da Culturgest está fazer contas para ver se tem dinheiro para que o disco seja lançado. O outro, um disco do grupo de percussão Drumming, sediado no Porto e dirigido por Miquel Bernat, que gravou quatro peças minhas para percussão, de 2000 até 2011; é o chamado disco monográfico e também se está à espera para ver se há alguém para o editar e distribuir. São dois projectos muito importantes. Mas mais ainda, para mim, é a composição. Tenho uma encomenda de uma peça relativamente curta para a Guimarães, Capital Europeia da Cultura. O evento é já no próximo ano e o contrato está atrasado. Todos os meus colegas que foram contactados para compor dizem o mesmo. Estou à espera para saber se a encomenda se concretiza ou não. Tenho o meu trabalho bastante adiantado. É um pouco lamentável que, de cada vez que o Estado organiza eventos desta natureza, haja problemas do mesmo tipo. Isto não tem nada a ver com os artistas, tem sempre a ver com as estruturas administrativas e com as escolhas, talvez discutíveis, para os cargos.
Há, ainda, uma outra encomenda, da Gulbenkian. É um «Requiem» para coro e orquestra, a estrear em 2013. É importante, porque a Fundação não me fazia encomendas desde 2000.

Entrevista conduzida por José Paulo Oliveira


  
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