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Fundações sem fundamentos e sem fundos...

Para que fique claro, refiro-me às “fundações públicas de direito privado”, figura de estilo introduzida pelo Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior e que pode constituir (já constitui para três) o regime legal das universidades em Portugal. E eu sou contra, pelas razões que a seguir exponho – e aqui quero referir que, para mim, o debate é sobretudo político, de ideias e não de medos, embora se deva estar atento a cenários possíveis de evoluções inconfessáveis e degradantes para o sector, mas que não constituem o panorama actual...

Os princípios. O princípio de que uma instituição, mesmo (ou sobretudo) se pública, passa a ser bem gerida se utilizar as regras da gestão empresarial e privada, levanta-me logo duas objeções. Se essas regras são melhores para o funcionamento das instituições, por que não se aplicam a todas, independentemente de serem fundações ou não? A gestão do BPN e do BPP era privada, ou não?
O princípio de que as fundações podem gozar de maior autonomia, sobretudo financeira e patrimonial, levanta-me outras duas dúvidas. Se essa autonomia é melhor para o funcionamento das instituições, por que não se aplica a todas elas, independentemente de serem fundações ou não? Se a autonomia das universidades está inscrita na Constituição (art.º 76, no 2), para que serve a au- tonomia “a mais” concedida às fundações?
O princípio de que “o financiamento do ensino deva ser feito com base em contratos negociados com cada uma das instituições”, em vez de ser calculado numa fórmula única, que supostamente leva à criação das tais fundações, também me coloca duas questões. Se esse princípio é melhor para o funcionamento das instituições, por que não se aplica a todas elas, independentemente de serem fundações ou não? Porquê a mudança de regime, se o mesmo Governo que fez a lei foi capaz de negociar contratos – de confiança, por exemplo – com as universidades não fundacionais?
O princípio da accountability, muitas vezes referido, e a que adiro integralmente, enquanto cidadão e académico, é um objectivo positivo. Por isso sou a favor da contratualização das relações entre a tutela (Estado) e as universidades. Restam-me dois problemas (múltiplos). Se esse princípio de transparência favorece o melhor funcionamento das instituições, por que razão não se aplica a todas elas, independentemente de serem fundações ou não? Como se coaduna o facto de serem ainda hoje totalmente secretos os contratos estabelecidos entre o ministério e as universidades que se tornaram fundações com o desejado objectivo de accountability? O que há a esconder? Os contratos foram cumpridos? Sê-lo-ão alguma vez, em tempos de crise?
Não concordo com o princípio de que “a liderança das instituições seja genericamente considerada fraca, devido ao método de eleição do Reitor e da forte colegialidade na tomada de decisões”. Não vejo nenhuma contradição entre colegialidade e liderança (mesmo forte) ou democracia. Mas se esse princípio fosse melhor para o funcionamento das instituições, por que razão não se aplica a todas elas, independentemente de serem fundações ou não? Conheço algumas lideranças fortes – até obtidas por via eleitoral, como Hitler, ou por golpe de Estado, como Salazar e Franco (e seria fácil alongar a lista) – que não acho especialmente recomendáveis como solução, pois custaram mais de uma dezena de milhões de vítimas, e algumas levaram meio século para nos livrarmos delas. Não será outro o problema da (falta de) liderança?
Uma fundação-sem-fundos – produto genuinamente português! – não será um tanto como uma cesta sem fundo? Nem levará a um beija-mão ministerial (perdão, um contrato) em cada período de financiamento? Onde fica a autonomia financeira, dependente da boa vontade da tutela?

As convicções. Quero confessar aqui as minhas “preferenciazinhas” ideológicas (se assim se lhes pode chamar e se não incomodar muito que persista em mantê-las), apresentando-as em crescendo de relevância.
Sou totalmente contra colocar exclusivamente gestores (classe “pura” e sem atavismos académicos), profissionais (o que os universitários parece não serem nessas funções) e de preferência privados (triplamente “puros”), a gerir instituições não empresariais nos domínios da Educação, Ciência e Cultura. Parece que as universidades têm tido dificuldade em manter-se ao longo dos anos – dificuldade que, para algumas, se arrasta há centenas de anos – por terem sido dirigidas apenas por académicos, docentes e investigadores, que nada sabem do que deve ser exigido a essas caquéticas instituições! As universidades de hoje têm todas, certamente, professores de gestão em excelente posição para colaborar nas tarefas de gestão, sem ignorar as peculiaridades da missão da universidade em termos de responsabilidade social e funções de ensino e investigação. De facto, considero que o FMI não faria melhor do que os professores que as criaram e fizeram crescer ao longo do último milénio!
Uma universidade sempre foi (e é, ou deve ser) um lugar de produção e transmissão de conhecimento. Esta actividade só se desenvolve numa cultura de questionamento, dúvida sistemática, pensamento livre, cooperação entre iguais – tudo isto é o que hoje se costuma apelidar de liberdade académica – e muito, muito estudo dos professores/investigadores e dos alunos! Também reconheço que em algumas se privilegia mais a mediocridade, o faz-de-conta, a intriga palaciana, o nepotismo, o mandarinato académico – em resumo, o que se pode chamar delinquência académica. Todos conhecemos instituições que delapidam o nome Universidade.
Mesmo, por vezes, sendo públicas, parecem empresas ao serviço de interesses particulares e/ou privados, dos seus membros ou de outros, e talvez lhes conviesse a tal gestão empresarial!
A Ciência (e o conhecimento) não tem nacionalidade, cor, género, status social ou preferência sexual, política, religiosa... Pertence a todos, todos podem contribuir, deve ser partilhada por todos e estar ao serviço do bem-estar de todos, mesmo dos que não pensam assim. Uma gestão privada, baseada numa liderança forte, (quase) não respondendo a ninguém pelas suas decisões, será capaz de me garantir a igualdade de oportunidades (art.º 76 da Constituição) entre todas as categorias de minoritários, diferentes ou estranhos? Eu, português, branco, homem, pequeno-burguês, heterossexual, esquerdista e ateu, permito-me descrer e duvidar. E como eu, muitos...

Manuel Pereira dos Santos


  
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