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A extinção anunciada da Formação Cívica

Para quem tanto fala de exigência, não deixa de ser revelador como o MEC se desobriga da capacitação de crianças e jovens para uma participação cidadã crítica e informada.

Para o ministro Nuno Crato a proposta de revisão curricular do Governo é feita “a pensar nos alunos” (à TSF) e visa “centrar mais o currículo nos conhecimentos fundamentais e reforçar a aprendizagem nas disciplinas essenciais”, assentando em “objetivos claros, rigorosos, mensuráveis e avaliáveis”. Uma das medidas propostas foi a “eliminação da disciplina de Formação Cívica (FC) nos 2º e 3º ciclos do Ensino Básico e no 10º ano, mantendo a relevância dos seus conteúdos de modo transversal”: ou seja, a Formação Cívica deixou, agora, de ser um espaço comum a todos os alunos.
Uma primeira nota, em nome da clareza e do rigor: quais são os “conteúdos” da FC a que se refere o documento? Na verdade, nunca foram definidos “conteúdos” para a FC e, apenas no ano passado, um grupo de trabalho liderado por Maria Emília Brederode dos Santos, e que integrei, sistematizou objetivos, conteúdos e competências da FC – mas a sua divulgação pelas escolas foi quase inexistente. Diz agora o Ministério da Educação e Ciência (MEC) que vai definir outros – é caso para dizer já vimos este filme!
A benefício de inventário, convém lembrar o processo de criação da FC. Entre 1975 e 1986, embora se reconhecesse o papel da Escola no aprofundamento da democracia, nunca foi possível criar um acordo político sobre esta matéria, ao contrário do que já acontecia noutros países. O medo de inculcação ideológica estava bem presente nas memórias de quem tinha frequentado a escola antes do 25 de Abril. Mas a criação, em 1986, da Área de Formação Pessoal e Social, que incluía a educação cívica, viria a reunir um largo consenso.
O problema com que a Reforma Curricular dessa altura se confrontou é importante para perceber o problema que o MEC parece agora querer criar com a “transversalização” da FC. De facto, em 1989, a opção foi conjugar uma abordagem disciplinar (a disciplina de DPS) com a disseminação dos conteúdos da formação pessoal e social pelas outras disciplinas – tal como agora o MEC quer fazer.
O problema é que este regresso ao passado parece ignorar as consequências dessas medidas, avaliadas em diversos estudos, incluindo do Conselho Nacional de Educação, e que sugeriam a falência desse modelo para garantir que todos os alunos teriam acesso a conhecimentos e capacidades relevantes.
A Área de Formação Pessoal e Social foi – apesar do investimento de muitas escolas, professores e investigadores – uma experiência ficcional, que nunca se concretizou no terreno. Aliás, essa tendência não é exclusivamente nacional e é, até, facilmente compreensível: se todos os professores são responsáveis pela FC, a “culpa é de todos”; logo, como bem sabemos, “não é de ninguém”.
A opção do ministério de Marçal Grilo por criar uma área de FC teve, assim, um resultado claro: garantir que todos os alunos do Ensino Básico tivessem um espaço semanal para considerar a sua vivência como alunos e cidadãos, na escola e fora dela.
Isto aconteceu sempre de forma interessante? Produziu resultados? Não sei. Mas a questão é: o MEC também não sabe. E, mais uma vez, são tomadas decisões na ausência de qualquer avaliação das práticas, meramente fundadas nas impressões de quem tem o poder, assentes em vagas consideração sobre a “qualidade” ou o “rigor” – veja-se, por exemplo, que a extinção da FC no 10º ano acontece quando nem sequer existe um ano de experiência.
Ora, é importante dizê-lo, em nome da clareza e do rigor: a proposta de transversalizar a FC é a legitimação da sua extinção. Será que queremos, enquanto democracia e enquanto sociedade, tomar a decisão de que a educação para a cidadania não é um objetivo relevante do Ensino Básico e do Secundário?
A educação para a cidadania integra hoje o currículo de quase todos os países europeus. Não apenas porque se considera que a Escola tem uma responsabilidade na capacitação para a cidadania, mas também porque a investigação sobre a participação dos jovens revela que o papel da Escola é muito importante na promoção de conhecimentos, atitudes e capacidades cívicas e políticas e do envolvimento futuro. Ou seja, o papel da Escola tende a perdurar no tempo e a favorecer a participação cívica e política. E este papel é ainda mais importante para as crianças e jovens em situação de desvantagem, porque têm acesso a menos recursos culturais e económicos, falam menos com a família sobre política ou têm menos oportunidades de participar em associações nas suas zonas de residência.
Parecem-me estas razões de monta para justificar a manutenção da FC com um espaço próprio no currículo dos ensinos Básico e Secundário – abordando questões como os direitos, liberdades e garantias, as instituições do regime democrático, as diversas formas de participação dos cidadãos, a literacia mediática, a sustentabilidade ambiental, social e económica, a diversidade como mais-valia das sociedades contemporâneas... e tantas outras que têm sido justamente reclamadas por vários atores e instituições.
Os desafios que quotidianamente se colocam à democracia justificariam, quando muito, o reforço desta componente – nunca a sua extinção. A educação, como diria Hannah Arendt, é o lugar da nossa responsabilidade coletiva para com o mundo e para com as novas gerações. Será que nos podemos isentar dessa responsabilidade?
Para quem tanto fala de exigência, não deixa de ser revelador como o Ministério da Educação e Ciência se desobriga da capacitação das crianças e dos jovens para uma participação cidadã crítica e informada.

Isabel Menezes


  
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