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Notícias do outro lado do Atlântico

Ao mesmo tempo que, por cá, continuamos a assistir à destruição acelerada e radical das estruturas e investimentos realizados nos últimos anos na educação e formação de adultos, recentemente, tive oportunidade de participar em duas iniciativas, promovidas pela Secretaria de Educação de Suzano (Brasil), que traduzem uma forte aposta na educação e na cultura enquanto direitos humanos básicos a serem assegurados através da criação e disponibilização públicas das necessárias condições humanas e financeiras.

A criação da Escola Livre dos Trabalhadores (ELT) é um projeto em curso, que conta com a participação ativa de professores e educadores de Suzano (a 50 km de São Paulo), de sindicatos, associações comunitárias, cooperativas, grupos informais e outras entidades implicadas no desenvolvimento de uma educação integral e de qualidade para jovens e adultos, propiciadora de um processo ampliado de humanização.
Procurando recriar experiências de educação que afirmam as práticas culturais como direito dos trabalhadores – designadamente da Universidade Popular Portuguesa, presidida por Bento de Jesus Caraça, e da Universidade Popular do Porto –, visa contribuir para a construção e difusão do conhecimento dos trabalhadores, a inserção da economia solidária na educação de jovens e adultos e a elaboração e sistematização de metodologias e instrumentos que permitam a realização de projetos de desenvolvimento local participativo.
Em estreita articulação com os programas de elevação da escolaridade nas suas diferentes etapas e modalidades, a educação e o mundo do trabalho, assim como as mobilizações sociais que afirmam novos direitos, serão os temas permanentes da ELT, assumindo com Paulo Freire que “os trabalhadores querem saber tudo aquilo que as elites sabem, sem deixar de saber aquilo que já sabem como trabalhadores”. Não é, pois, de estranhar que a primeira atividade da sua agenda seja a projeção e discussão de “Tempos modernos” (filme de Charlie Chaplin) em diferentes datas e locais.
A participação de centenas de jovens e de trabalhadores na sessão de lançamento da Escola, onde se debateram questões como a educação e o trabalho para as camadas populares, a educação e a cultura como direitos dos jovens e adultos trabalhadores, a democracia participativa e a experiência portuguesa das universidades populares é, sem dúvida, um ótimo prenúncio para o êxito que se espera venha a alcançar.

De catadora de papel a escritora
Não por acaso, a sessão aconteceu durante a realização do I Salão Internacional do Livro, promovido com o objetivo de contribuir para a execução de políticas públicas de incentivo à leitura, a formação de novos leitores e a democratização do acesso às publicações. Num município com uma única livraria, pode-se imaginar a importância de uma iniciativa como esta.
Para além dos stands das editoras – onde todos os alunos e professores puderam escolher e adquirir livros, através da troca de um cheque-livro previamente oferecido pelo município –, o salão proporcionou um vasto programa cultural e educativo, com a realização de dezenas de iniciativas ao longo da semana, envolvendo públicos muito diversos, que permitiram ouvir e contar histórias, conhecer escritores, debater múltiplos temas, ouvir música..., transformando cada dia numa grande festa da educação, do livro e da leitura.
Outra particularidade, que nos ajuda a perceber a especificidade deste salão, foi uma homenagem a Paulo Freire e a Carolina de Jesus.
Os motivos da homenagem a Paulo Freire – nessa mesma semana, e por feliz coincidência, declarado “patrono da educação brasileira” – são tão evidentes, como referência incontornável para tantas e tantos educadores, que me escuso de escrever sobre eles. Mas Carolina de Jesus é, provavelmente, desconhecida para muitos.
Tendo vivido na favela paulista do Canindé (1914-1977), Carolina concluiu apenas o 2º ano escolaridade. Foi “catadora” de papel e de outros tipos de lixo, numa luta permanente pela sua sobrevivência e dos três filhos. Gostava de ler e lia os livros que encontrava. E escrevia... No seu diário, a sua vida e a vida da favela e dos favelados ganharam outra vida, perpetuaram-se, impedidas, desse modo, de cair no esquecimento ou de virem a ser contadas apenas por quem nunca viveu uma vida assim.
Descoberta Carolina e os seus cadernos por um jornalista, Audálio Dantas, a sua obra foi publicada. O primeiro livro, «Quarto de Despejo», trazendo-nos a vida da favela na primeira pessoa e retratos da fome e da miséria por quem as sentiu intensamente, foi traduzido em 13 idiomas e vendido em 20 países, dando origem a movimentos sociais, um samba, uma peça de teatro, um programa de televisão e um documentário, no Brasil, e a um telefilme, na Alemanha. Depois foram publicados «Diário de Bitita», «Casa de Alvenaria», «Pedaços de Fome» e «Provérbios», constituindo a sua obra uma referência fundamental para a compreensão do Brasil do seu tempo e do mundo atual e uma denúncia gritante das desigualdades sociais.
A importância de Carolina de Jesus e dos seus escritos estende-se, igualmente, à educação de adultos, demonstrando, com enorme clareza, os profundos conhecimentos e saberes existentes nas camadas populares e nos que, por motivos diversos, não viram reconhecido o seu direito à escola.

Teresa Medina


  
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