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Precisamos de um ensino missionário?

É sábio aquele professor de meninos, de jovens ou de adultos que, a coberto ou à margem das prescrições curriculares, não se contenta com a reprodução dos costumes e induz os alunos a pensar que não é suficiente interpretar o mundo; é preciso transformá-lo.

Quando ouvimos as falas (ou o falazar, quando inócuo e desconcertado) de muitas figuras públicas, que se elevam ou são elevadas em todos os quadrantes da nossa vida colectiva – fale-se de governação, política partidária, economia, justiça, educação, indústria, comércio ou agricultura – e nos interrogamos se estarão pensando no país real, somos levados a imaginar que os portugueses se conformam com a ideia de que uma nação pode sobreviver sem uma verdadeira elite, aglutinadora de princípios e forças vitais, e – não menos grave – por ausência de horizontes mobilizadores, se remetem à resignação de salvar o que existe, “já que o futuro a Deus pertence”...
Vem a propósito uma passagem da entrevista do professor António Nóvoa inserta no número anterior da PÁGINA: “… o horizonte não existe para nos trazer de volta à origem, mas para nos permitir medir toda a distância que temos a percorrer” e uma máxima do grande poeta espanhol António Machado: “O caminho faz-se caminhando”.
Conjugando estas reflexões com outras de Spencer, respigadas de um livro escrito há cem anos, «Primeiros Princípios»que marcou a fase voluntarista de um filósofo que privilegiou a observação do comportamento humano, no terreno, à tranquila meditação em claustro, apraz-nos avocar dele especiais momentos de exortação ou de apelo a como que um espírito de missão que, reconhecendo a circunstancialidade de todas as vivências, do passado e do presente, modela os projectos do futuro.
Mas não é fácil o caminho do missionário… No fim da vida, o voluntarista Spencer, que primeiro foi louvado, depois contestado, e por fim esquecido, quando morreu, em 1803, perguntava-se se não teria sido inútil todo o seu trabalho e se não teria errado em sacrificar ao estudo dos homens os prazeres da vida... Na sua fase positivista, ainda reflectia:
”Não é sem fundamento que o homem tem simpatias por alguns princípios e repugnância por outros. Com toda a sua capacidade e aspirações e crenças, ele não é acidente, mas um produto da época. Ao mesmo tempo que é um filho do passado é um pai do futuro; e os seus pensamentos formam uma prole que ele não pode permitir que pereça. (…) O sábio não considera adventícia a fé que o anima. A mais alta verdade que vê, ele enunciá-la-á sem temor, sabendo que, venha o que vier, está representado com honestidade o seu papel no Mundo; sabendo que, se pode conseguir o que mira, bem; e se não pode, igualmente bem – embora não tão bem.”
Quem navega pelas filosofias dos grandes pensadores de todos os tempos há-de concluir, muitas vezes, como Salomão, que nada há de novo sob a roda do Sol. Ou, parafraseando Hamlet, que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa vã filosofia… Em consonância lembremos ainda António Nóvoa, dirigindo-se aos colegas professores: “A história é o que somos mais o que podemos fazer. (…) Ao longo deste tempo, os professores estiveram, de algum modo, relegados para um plano secundário. As realidades do século XXI, as grandes problemáticas do conhecimento, da aprendizagem, da criação e da diversidade, trazem os professores, de novo, para o centro do espaço educativo”. Face à vastidão e complexidade do espaço educativo, entendemos naquelas palavras como que um convite ou um desafio à assunção de responsabilidades específicas da profissão, compreendendo que nela está implícito um sentido de missão que só é reconhecível em actividades virtuosamente potenciadas para distinguir o Certo e o Errado, a Bela e o Monstro. A pensar isto, já escrevíamos neste mesmo espaço, em Junho de 2004, num artigo intitulado Meditações sobre a Escola em Abril: “Quem elucidará o ignorante e o indiferente sobre a diferença abissal  que existe entre Democracia e Demagogia, Popularidade e Populismo, Liberdade e Licenciosidade, Cultura e Alienação, Universidade e Confraria, Informação e Manipulação, Emulação e Competição, Progresso e Desenvolvimento, Urbanização e Predação, Mercado e Monopólio, Consumo e Desperdício, Trabalho e Exploração, Lucro e Especulação, Socialismo e Liberalismo, Universalidade e Globalização, Capitalismo e Imperialismo?
(…) Se não for a Escola a assumir a Ética com o mesmo sentido de ‘missão’ (antes de tudo individualmente assumido) que induz o médico a socorrer quem desfalece à sua frente, um bombeiro a apagar um incêndio ou um samaritano a orientar um cego na rua – que outro papel mais crucial se há-de esperar dela?
Escatologicamente falando: se a Escola só servir para reproduzir o statu quo ou o déjà-vu, e nada explicar, nada questionar, nada estimular, porque é amorfa, acrítica ou conformada e se satisfaz fabricando produtores e consumidores em série, consignados ao Mercado, onde tudo se compra e tudo se vende, (..) essa Escola para pouco mais servirá do que continuar a Confusão – como quem engorda crianças para alimentar o Monstro.” Poderá objectar-se, em contraponto, que a educação é tarefa dos pais, da família, dos governantes. Mas se opusermos uma pergunta crucial – sejam como forem, valham o que valerem? –, a resposta seria a de Spencer: a educação dos homens deverá ser dada por uma “prole que não pereça”, a dos sábios.
É sábio aquele professor de meninos, de jovens ou de adultos que, a coberto ou à margem das prescrições curriculares (pense-se nas oportunidades do Português e da História), não se contenta com a reprodução dos costumes e induz os alunos a pensar, como dizia outro filósofo mal-amado, que não é suficiente interpretar o mundo; é preciso transformá-lo. Seria esta uma missão clandestina? Pois que o seja, em nome do Futuro.

Leonel Cosme


  
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