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O contributo do cinema na produção dos discursos pedagógicos

Reinventar a Escola passa por transformá-la num espaço potenciador de inteligência e de humanidade, promovendo a participação de todos na construção de produtos culturais, partilhando-os, e a afirmação de cada um como pessoa portadora e construtora de saberes.

A Escola como espaço onde se torna possível vislumbrar os gestos através dos quais a humanidade se constrói não poderia deixar indiferentes muitos daqueles que utilizam o cinema como instrumento de expressão e de comunicação artística. De algum modo, pode até considerar-se que a assunção da Escola como objecto temático do cinema é expressão da sua existência, hoje, como um espaço suficientemente interessante do ponto de vista das dramaturgias que aí se constroem e desenrolam.
Se, no entanto, esta dimensão da relação entre a Escola e o cinema nos parece ser inevitável, importa abordar uma outra, menos visível, mas não menos interessante, que diz respeito ao modo como o cinema tem vindo a contribuir para alargar o campo da produção dos discursos pedagógicos. Trata-se de um fenómeno recente, sendo necessário, por isso, recuar a 1967 para, em To Sir, With Love («Ao mestre, com carinho»), vermos Sidney Poitier no papel de Mark Thackeray, um engenheiro desempregado transformado em professor de circunstância, a enfrentar e a vencer a hostilidade dos seus alunos, numa escola situada no bairro operário do West End londrino. E não vale a pena lembrar Le Quatre Cents Coups («Os incompreendidos») ou L’Argent de Poche («Na idade da inocência»), de Truffaut, porque nestes, a Escola não passa de um dos cenários que se privilegia para invocar o drama das adolescências perturbadas.
«Jonas que terá 25 anos no ano 2000» também não entra nestas contas, porque, igualmente, não é a escola que mobiliza Alain Tanner – as cenas onde vislumbramos o espaço escolar que os oito personagens, enquanto comunidade alternativa, construíram, apenas servem para ilustrar a utopia que esses personagens perseguem.
É, pois, no dealbar da década de 90 que a Escola passa a ser entendida definitivamente como um objecto cinematográfico. Foi a partir desta época que pudemos assistir a filmes como «Filhos de um Deus Menor» (1986), «Clube dos Poetas Mortos» (1989), «Mentes Perigosas» (1995), «Mr. Holland Opus» (1995), «Melodia do Coração» (1999), «Finding Forrester» (2000), «O Sorriso de Monalisa» (2003), «Os Coristas» (2004), «Ser e Ter» (2004), «The Ron Clark Story» (2006) ou os «Escritores da Liberdade» (2007).
Trata-se de filmes que encontram nas escolas, e nas respectivas salas de aula, os espaços nucleares das narrativas que propõem, uma opção através da qual o cinema pode ser definido, hoje, como um espaço privilegiado de produção de discursos pedagógicos, que, nos filmes em questão, se caracterizam por um registo de tipo épico, a resvalar, quantas vezes, para o voluntarismo. Um registo em função do qual se contribui para transformar as situações exemplares que esses filmes retratam em propostas que podem ser consideradas como modelos de acção educativa tidos como ideais. Por isso é que importa questionar quer esses filmes, quer o seu eventual impacto na construção de uma corrente de opinião que pode influenciar a discussão pública sobre as finalidades e os modos de funcionamento das escolas. Uma corrente de opinião que, assim, se pode constituir como referência da reflexão que se produz, hoje, quer sobre as escolas, quer, igualmente, sobre a acção dos professores e o estatuto e o papel dos alunos.
O que está em jogo é demasiado sério para ser confundido com um devaneio intelectual. Trata-se, pois, de um assunto sobre o qual vale a pena reflectir de forma mais aprofundada. Um assunto que merece, enquanto contributo para esse debate, que se deixe de olhar para a lista de filmes acima enunciada e se chame a atenção para um que propositadamente não consta dessa lista – «A Turma» (2008).
Entre les Mursé um filme cuja importância advém, entre outras razões possíveis, do facto de estabelecer uma ruptura com o, já referido, registo épico e, também, com qualquer modo linear de abordar as escolas como espaços de relações que os seus propósitos de socialização cultural contribuem para delimitar.
É que em «A Turma» a escola afirma-se, acima de tudo, como espaço paradoxal, mais do que como espaço de redenção. Há professores e alunos que entendem os respectivos ofícios como razão suficiente para o investimento que protagonizam. Outros há para quem a permanência naquela escola é uma obrigação perante a qual parecem não ter opção. Há personagens previsíveis e imprevisíveis que alimentam um jogo onde entre o gato e o rato há, por vezes, pausas e momentos de comunicação autêntica, capazes de alimentar a esperança de que todos precisamos para continuarmos a ser docentes e discentes. Razões bastantes para não acreditarmos que «A Turma» possa constituir uma espécie de roteiro de orientação pedagógica dirigido para jovens aspirantes a professores, a não ser para utilizar como instrumento de suporte didáctico onde, no remanso das salas de aula do Ensino Superior, se possam apontar os erros de comunicação de François, o professor, e de alimentar um falso debate sobre as alternativas de que ele dispunha para enfrentar as provocações dos alunos.
«A Turma» é, por isso, um filme que para além de, aparentemente, não alimentar ilusões sobre a Escola, não pretende, igualmente, assumir-se como um discurso de carácter pedagógico, apenas porque Laurent Cantet, o realizador, sabe que não é, nem quer ser, um pedagogo travestido de cineasta. Condição, esta, que todavia não o impede, na cena final, de desnudar a ausência de sentido da Escola, através da voz de uma das alunas que não alinha no jogo de faz-de-conta em que se envolvem François e os seus alunos, quando se esforçam por recordar o que aprenderam ao longo desse ano lectivo. Provavelmente, só ela e Esmeralda é que ousaram dizer a verdade. Uma, quando diz que não aprendeu nada na escola, e a outra, quando nos mostra que, apesar da escola e sem ser por causa dela, foi capaz de ler «A República» de Platão. Se Cantet (na foto) sabe qual é o seu papel, será que nós, os professores, sabemos qual é o nosso?
Descontando o facto de que, hoje, é mais fácil ser realizador de cinema do que professor, importa compreender que, malgré tout, é na Pedagogia que teremos de encontrar o nosso refúgio último, o refúgio onde poderemos aceder aos instrumentos que nos capacitem, não para educar com tal certeza que não seja possível não obter bons resultados, como pretendia Coménio na sua «Didáctica Magna», mas para alargar o campo das possibilidades educativas de que dispomos para nos assumirmos como professores. Uma opção que nem nos isenta de cometer erros nem nos obriga a ter sempre uma resposta pronta para todos os desafios que enfrentamos. Uma opção que, apenas, nos pode ajudar a repensar os caminhos de uma Escola que continua a justificar aquilo que é no facto de continuar a alimentar a sua importância como um passaporte para o futuro.
Tal como afirmámos atrás, não será a reinvenção da Escola que nos libertará de viver situações de conflitos ou de insucessos profissionais. Não é essa a razão que justifica a necessidade de tal reinvenção. O que a justifica, tem a ver, sobretudo, com um outro tipo de desafio – aquele que permita que a Escola se transforme num espaço potenciador da inteligência e da humanidade de cada um, no momento em que possibilita que cada um possa participar na construção de produtos culturais, partilhando-os e aprendendo, no decurso de tal processo, a afirmar-se como pessoa; como gente que é gente porque é também portadora e construtora de saberes.

Ariana Cosme
Rui Trindade


  
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