Página  >  Opinião  >  Estrangeiro em qualquer lugar

Estrangeiro em qualquer lugar

Tenho vindo a escrever aqui sobre migrantes. Desta feita, a escrita faz-se em regime biográfico porque, de momento, estou no Brasil, num dos seus excelentes departamentos de antropologia (UFSC, Florianópolis). E o sabor da alteridade é agora algo que estou a provar.

Nestes últimos dias, acabamos de conhecer a triste notícia, ainda que esperada, do desaparecimento de Claude Lévi-Strauss. O antropólogo francês que não gostava da Baía de Guanabara como nos cantava Caetano Veloso, mas que deixou um enorme lastro de brilho à antropologia no mundo, e em particular no Brasil. Uns dias antes, tínhamos ouvido uma notícia trágica com um desenlace final, apesar de tudo, mais feliz: a queda de um pequeno avião em plena Amazónia, com pessoal técnico de saúde, que aparentemente teria sido fatal para os seus tripulantes, foi escutada e avistada por índios que acabaram por conseguir resgatar 9 dos 11 tripulantes.
Este diálogo entre tragédias não foi casual na minha cabeça. Lévi-Strauss escreveu uma das mais belas narrativas de viagens («Tristes Trópicos») sobre populações ameríndias do Brasil, onde o pensamento selvagem ganhou um grau de humanidade que até então não se havia sublinhado tão claramente. E foram essas mesmas populações indígenas que, paradoxalmente, haveriam de obter direito de cidadania apenas no final do século XX. Estrangeiros em casa, os índios que esperavam o apoio de vacinação das brigadas de saúde aerotransportadas no combate e prevenção de doenças que fundamentalmente lhes chegaram por contacto cultural com brancos, seriam providenciais no seu salvamento. A questão de alteridade aqui é paradoxal.
Também paradoxal é a situação de um estrangeiro, não necessariamente imigrante, mas um daqueles sujeitos de mobilidade de que tanto falam os filósofos pós-modernistas. Na minha estadia em terras brasileiras, por diversas razões e em diversos contextos, tenho sentido dificuldade em acesso aos principais valores, chamemos-lhe assim, da condição capitalista contemporânea: mobilidade e comunicação.
Estas mais valias, que os paladinos da globalização têm propalado até à exaustão, estão distorcidamente sufocadas. Não se trata de nenhum mal estar pessoal ou até cultural, apesar da Lei do estrangeiro no Brasil ser talvez, ainda, uma das mais restritivas do mundo; trata-se, sobretudo, de um cerceamento de coisas que aparentemente somos sistematicamente convidados a consumir como rótulo de civilização e apanágio de liberdade – o direito de mobilidade e o de comunicar.
Todavia, devo acrescentar que nada é impossibilitado de forma restrita e total. Na verdade, viajar no Brasil – de avião – é possível para toda a gente, mas adquirir bilhetes online, não! Telefonar é possível para toda a gente, mas adquirir um celular pessoal não é muito amigável. Tudo em nome de um tal CPF – código fiscal! –, o qual, obviamente, só é possível obter se formos cidadãos nacionais ou com fiscalidade registada no país.
O caso em que me detenho, já nem sequer se trata de imigração ilegal ou legal, mas o de um mero visitante ou viajante mais demorado e de ampla movimentação, um flaneur contemporâneo, possivelmente, a quem a possibilidade de compra de bilhetes de avião fica restrita às agências de viagens, com os inerentes custos acrescidos; ou aos aeroportos, com a incerteza e o desconforto inerentes; ou para quem a compra de celulares possa ser apenas feita por amigos que possam dar seu código fiscal.
Esta última restrição deve-se, consta, a motivos de combate ao crime organizado e ao terrorismo, tornando possível localizar o celular de cada sujeito pelo seu CPF. A compra de bilhetes não tem aparentemente nenhuma razão perceptível que não seja a presença “burocratizada” dos Estados nos formulários das empresas de viagens ou transportadoras. E este é o retrato de muitas sociedades contemporâneas que estão agonizando em questões de securização excessiva, em pânicos morais mais ou menos fantasiosos e em retóricas maniqueístas simplificadoras do Bem e do Mal.
A mobilidade e a comunicação têm sido os tropos fundamentais do discurso civilizatório ocidental e, em última instância, associados à ordem capitalista global, os territórios de maior expansão dos consumos. Paradoxalmente, estão também a ser os lugares por excelência da vigilância e do controlo social contemporâneos, tornando-nos estrangeiros em qualquer lugar. A alteridade construtiva de que falava Lévi-Strauss parece ter-se despenhado definitivamente numa floresta de enganos, sem que nenhum grupo indígena a possa resgatar...

Paulo Raposo


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo