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Rosto e Assinatura de um «Professor-sindicalista»

«Li ou ouvi, em qualquer sítio, que a vida são umas férias que a morte nos dá. Da minha parte estou apostado em fazer o que puder para prolongar as férias o mais possível utilizando-as para fazer coisas úteis e que nos dêem prazer. Sei que posso contar convosco neste esforço. Deixo um abraço, sempre amigo e solidário, e a minha disponibilidade para fazer o puder e for preciso».

José Paulo Serralheiro, 2009

Não sei se a vida são uma espécie de férias que a morte nos dá, como dizia José Paulo Serralheiro numa das suas últimas mensagens aos colaboradores da revista a «Página da Educação», mas o que sei é que a vida só vale a pena quando é assim assumida, no esforço e no gosto de ser «com e para os outros». Daí a força cívica de instrumentos de apelação democrática como os «abaixo-assinados», por exemplo. Respondendo por um «rosto» e um «nome» próprios, soberano na dupla consciência dos seus deveres e direitos de cidadania, o sujeito inscreve a sua vontade no tempo comum, senhor do seu presente e, nessa qualidade, autor do seu futuro.
Provavelmente, a maioria dos leitores desta revista associam, com toda a justiça, o nome de José Paulo Serralheiro à sua posição de director da «Página», sem saber que o valor distintivo deste projecto editorial decorre de um enraizamento profissional e sindical que o «Zé Paulo» fez questão de protagonizar, de forma única e até ao último sopro vital, em afectuosa solidariedade com muitos outros companheiros que teimam em pugnar por um certo modo de «fazer sociedade», de «fazer escola» e, consequentemente, de «ser professor».
Sou professora, filha de professores, nasci e vivo dentro da escola desde sempre, mas foi no Sindicato dos Professores do Norte (SPN) e através do testemunho ético vindo de presenças humanas como as do José Paulo Serralheiro e do Adriano Teixeira de Sousa, outro estimado rosto prematuramente roubado ao nosso convívio, que aprendi o valor e o sentido existencial de expressões como «comunidade profissional», «solidariedade colegial», «compromisso ético», «escola, responsabilidade social e cidadania».
A morte do outro, a única com a qual, enquanto sujeitos de vida, podemos estabelecer contacto verdadeiramente pessoal, mais do que lembrar a nossa própria vulnerabilidade, representa o fim de um processo de diálogo com outra pessoa, como notou o filósofo Emmanuel Lévinas. Ao retirar o poder de expressão ao rosto, ao transformá-lo em simples máscara, a morte priva-nos da oportunidade de relação com outra manifestação de vida.
Por outro lado, porém, cada vez que a morte toca o mais fundo da nossa sensibilidade por força do sentimento de perda de rostos familiares e amados, tornamo-nos mais conscientes do privilégio que representa a possibilidade de relação quotidiana com outros rostos, que o mesmo é dizer com pessoas únicas e vivas, que nos interpelam, nos respondem e nos desafiam.
Entendo neste sentido o lema da nossa federação sindical, a FENPROF, «somos professores, damos rosto ao futuro». Nesta expressão reside uma subtil, mas decisiva, diferença relativamente à pretensão que subjaz a muitos dos projectos sociais e pedagógicos alicerçados na crença de que é possível e desejável «dar um rosto» ao futuro. Assumindo a imprevisibilidade e a incerteza como vectores estruturantes da fecundidade do tempo, para os professores «dar rosto» significa, fundamentalmente, a responsabilidade de se apresentarem profissionalmente face a outros rostos de modo a ajudar a abrir as brechas temporais por onde o futuro entra e «se faz presente».
Dizer que somos mortais é o mesmo que dizer que «temos tempo». Tempo para nos perguntarmos sobre o que podemos e devemos fazer para continuar projectos como este da «Página» que o Zé Paulo animou com tanta sabedoria e dignidade, tentando assim também «prolongar as nossas férias o mais possível» e de forma a fazer o que for preciso em favor de um mundo onde todos, sem excepção, possam afirmar a sua condição de sujeitos de rosto e assinatura.

Isabel Baptista


  
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