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Cristiano Ronaldo ou as lições do futebol

Quem sabe ouvir e ver, com tolerância e respeito, muito aprende com o futebol e, portanto, com o Cristiano Ronaldo e o Messi e o Kaká e outros com a mesma profissão. É preciso ouvi-los, não com uma escuta desatenta e hierárquica, mas com a certeza que o diálogo é a essência da vida cívica e eles têm algo para nos contar que nós ainda não ouvimos nem lemos, acerca do futebol e portanto da vida.

Vivemos tempos novos. Quando era rapaz e me entusiasmava com as “Torres de Belém”, com os “Cinco Violinos” e com o Rogério, o “Pipi”, um dos jogadores mais habilidosos que os meus olhos já contemplaram, não me era dado futurar que, sessenta anos mais tarde, o Santiago Bernabéu pudesse albergar 85 mil pessoas, principalmente raparigas, para saudar, aplaudir e (por que não?) venerar um futebolista português, estuante de raça, de orgulho e dignidade, considerado pela FIFA e pelos fazedores de opinião “o melhor jogador do mundo”.

A numerosa presença de público feminino é sinal da cultura somática do nosso tempo. A mulher libertou-se de bafientos valores tradicionais e assumiu os ideais da felicidade sensorial e afinal da própria vida no que ela tem de mais afectivo e pulsional. As espectadoras, entrevistadas pela televisão, não deixaram dúvidas: “Estou aqui para ver o melhor jogador do mundo e porque ele é muito giro”.
O Freud do Esboço da Psicanálise ocorre-me, neste momento: “a pulsão é o ponto zero da génese do psiquismo”. E ficava-se na dúvida se o que as levara ao Bernabéu tinha sido mais o jogador ou o símbolo sexual. Num ponto não é lícita a dúvida: a mulher, por sua conta e risco, torna-se sujeito e não objecto! Esta uma das grandes conquistas do nosso tempo! Por muito que pese aos moralistas (e machistas), vivendo, como sanguessugas, agarrados ao Passado. De facto, ser sujeito é não sujeitar-se! Aliás, já foi há 63 anos que o biquini subiu, pela primeira vez, às passerelles, em Paris...
Mas, na personalidade somática do nosso tempo, onde a libertação da mulher é uma das suas principais peculiaridades, como vimos acima, o desporto dá ao corpo uma relevância tal que os seus melhores intérpretes, como o Cristiano Ronaldo, ou o Leonel Messi, ou o Kaká, são os novos deuses. Portanto, o futebol diz-nos, à sua maneira, que é ao corpo que cabe definir o que somos e o que devemos ser.
Os cortesãos de Luís XVI, ou as sinhazinhas de José de Alencar, ou os luteranos europeus do século XVII também cuidavam do corpo, mas não sabiam que o biológico era o fundamento do psíquico (Jean-Marie Lehn, Prémio Nobel da Química, afirma convictamente que não somos outra coisa senão sistemas moleculares, extremamente complexos), nem que, mais do que salvar a alma, interessa salvar o corpo... porque não há alma, sem corpo!
Quando, na segunda metade do século XIX, o futebol nasceu, o desporto destinava-se a instrumentalizar o corpo, ao serviço dos imperativos categóricos da razão. A Proposta de Lei, de 25 de Fevereiro de 1939, apresentada à Assembleia Nacional, para a criação do INEF (Instituto Nacional de Educação Física) sustenta que à educação física compete fazer do corpo “o digno instrumento de uma vontade esclarecida”. Como se vê, uma teoria da formação do ser humano, assente no corpo-instrumento. E a dicotomia corpo-mente, natureza-cultura, pensamento-acção perpetuava-se declaradamente no desporto e no treino desportivo.
Hoje, alguns treinadores, mais bem intencionados do que lúcidos, ainda separam, no treino, o físico do mental. Ora, na complexidade humana, tudo se relaciona com tudo. E é a partir deste pressuposto que o treino há-de estruturar-se e ministrar-se. Presto, aqui, a minha humilde homenagem ao José Mourinho. Quando, há 28 anos, falava destes assuntos, nas aulas, ele soube concretizar, mais tarde, o que eu então antevia e não saberia nunca operacionalizar. É um super-dotado.
Quem sabe ouvir e ver, com tolerância e respeito, muito aprende com o futebol e, portanto, com o Cristiano Ronaldo e o Messi e o Kaká e outros com a mesma profissão. É preciso ouvi-los, não com uma escuta desatenta e hierárquica, mas com a certeza que o diálogo é a essência da vida cívica e eles têm algo para nos contar que nós ainda não ouvimos nem lemos, acerca do futebol e portanto da vida. Não esqueço o que aprendi com o Mário Wilson e o José Maria Pedroto e o José Mourinho e aprendo agora com o Jorge Jesus.
E o que nos ensinam os “homens do futebol”, incluindo o Cristiano Ronaldo? Em primeiro lugar: só se sabe o que se vive e, depois, perguntar o que é o futebol pode ser bem o mesmo que perguntar o que é o Homem! Dostoievsky, em Os Demónios, salienta que “sem o russo, sem o inglês, a humanidade pode viver. Mas, sem Shakespeare, a humanidade não devia poder viver e parece bem que não poderá viver”. É bom que possamos dizer o mesmo do futebol. Num ponto havemos de convir: o futebol lança uma luz sobre o mundo que este não teria, sem ele. E... “o olho ouve”, segundo a expressão profunda do título de uma obra de Paul Claudel, sobre a pintura! Mesmo a ver um simples jogo de futebol...

Manuel Sérgio


  
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