Pensar uma pátria sem um território de referência identitária faria tão pouco sentido como acreditar que um “despatriado” que reconhece os laços da língua, da família, da cultura e da terra onde nasceu e viveu se considere, sinceramente, liberto da “raiz” por transformação em “cidadão do mundo”.
Num texto pouco citado, - O Sentido de Portugal - , Fernando Pessoa simplifica o vínculo do homem à pátria considerando que “a base da Pátria é o idioma, porque o idioma é o pensamento em acção, e o homem é um animal pensante, e a acção é a essência da vida.”
Se quisermos ser mais abrangentes, aduziremos que o homem, sendo também um animal terrígeno, como os bichos do monte e as aves do céu, mas dotado com uma qualidade que o distingue entre os outros animais – o livre arbítrio – pensou, falou e agiu em função do território em que “apareceu”, logo para se relacionar com o seu parceiro ou vizinho, criando um idioma de intercomunicação que lhe permitiu receber e transmitir práticas e ideias de sobrevivência e desenvolvimento. Todavia, se, conservando embora o idioma em territórios estranhos para onde nos mudámos, por necessidade ou aventura, não contássemos com o único território de recurso em que não nos sentiríamos tolerados e donde moralmente nunca poderíamos ser expulsos,
- não nos perturbaria ver que israelitas e palestinos se matam desenfreadamente para terem um território e não se contentam, vivendo na diáspora, em manter a língua e o que ela resguarda, como um relicário, da sua identidade;
- não nos sensibilizaria ver aquele velho camponês que vendeu a casa e o eido da aldeia onde nasceu para custear a compra do apartamento do filho com quem vai viver, na cidade, e depois, doente, por não encontrar nele assistência, acabar os seus dias recolhido numa Misericórdia, sofrendo de saudade dos campos e dos montes da terra perdida, sentindo que a sua pátria morreu na cidade – sobre o que António de Alçada Baptista, beirão saudoso expatriado em Lisboa, também achou que “a Pátria começa nas aldeias e tem o destino do campesinato”;
- não veríamos como um perigoso aviso ou ameaça o facto de países ricos e populosos da Ásia, para proverem à sua alimentação, estarem a comprar partes do território de países pobres de África onde os seus naturais, por falarem idiomas diferentes, chegam a disputar ferozmente direitos de ocupação.
Ora, ninguém questionará que, dentro ou fora do território pátrio, a língua-mater plasma um sentido de pertença a uma “história”, “entidade” ou “ipseidade” (como lhe chamaram Steiner e Derrida) enformados por memórias vividas ou contadas, que caracterizam, segundo uns, a “alma nacional”, segundo outros, a “identidade”. Donde, pensar uma pátria sem um território de referência identitária faria tão pouco sentido como acreditar que um “despatriado” que reconhece os laços da língua, da família, da cultura e da terra onde nasceu e viveu se considere, sinceramente, liberto da “raiz” por transformação em “cidadão do mundo”, alheio ao questionamento formulado pelo poeta cubano Damaris Calderón: “Há saída possível para fora ou toda a saída é para dentro, até ao reino da raiz?” Um biólogo ou um poeta teluristas aceitariam igualmente esta relação considerando a influência que a terra (o solo, a paisagem) exerce sobre o carácter e os costumes dos seus naturais. O telurista Teixeira de Pascoaes, na Arte de Ser Português, é mesmo peremptório: “A reflexão da paisagem no homem é activa e constante. A paisagem não é uma coisa inanimada; tem uma alma que actua com amor ou dor sobre as nossas ideias ou sentimentos, transmitindo-lhes o quer que é da sua essência, da sua vaga e remota qualidade que, neles, conquista acção moral e consciente.” Mais tarde, Torga, poeta médico, diria que “a província é o protoplasma da pátria, a substância onde se processa o metabolismo que lhe garante o equilíbrio homeostático.” Ao vínculo fortíssimo que induz um emigrante rústico a reproduzir memórias do “ninho” em terra estranha que foi coagido a habitar há quem chame Saudade. Não desconhecendo que o território onde se nasce e vive (o seu clima e paisagem) produz uma determinada psicologia (o nativo dos trópicos não pensa-sentindo como o nativo dos glaciares), provavelmente também Jung e Mounier concordariam que a “anima” é condicionada pelos efeitos que o ambiente exerce (ou exerceu) sobre a “carne”. Pelo menos, enquanto o Homem, como o conhecemos historicamente sujeito a um certo metabolismo, não se transformar em Cyborg, congeminado com chips e clonagens num “admirável mundo novo” cibernético... Mas um poeta urbano e solitário, que só conheça do seu país a partícula que é visível do alto de uma janela, ou um sem-abrigo condenado a viver entre a rua do Pão dos Pobres e o cortiço onde se acolhe, só pode ter da pátria uma ideia emprestada, – por conversas, livros ou televisões - que tanto pode ser realista como fantasiada, transmissora de verdades como de mentiras, de factos como de mitos. A pátria que está para lá da nossa casa, da nossa rua ou do nosso bairro, num espaço difuso que nos é distante e do qual somos ausentes, mas sabemos existir nele gente, campos, montes e rios, onde se reproduzem as espécies, semeia, planta, e se é feliz e infeliz, é a pátria de outiva, também julgada nossa porque apreendida em narrações de glórias e de horrores, mas que, na realidade, não nos “pertence” e por isso podemos enjeitar, sem sentir pena nem pecado. Politicamente, não é patriota aquele cidadão, intelectual, político ou governante, para quem é indiferente que o território nacional arda ou se despovoe, alugue ou venda, e pelo qual só fará uma revolução ou uma guerra se for afectada a sua casa, a sua família ou o seu negócio, se antes não puder fugir para outro país. Poderá cantar um hino, evocar antigas glórias e coleccionar ícones, e não ser um cidadão da Pátria, se no território nacional ele for apenas um morador. Com inquilinos destes a pensar e a agir, certamente não seria famoso o sentido de Portugal.
Leonel Cosme
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