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A Esquerda, os «Socialistas» e a Governação

Em meados da década de 90, em Carta aos Socialistas (na tradução portuguesa), Alain Touraine (no seguimento de um poderoso movimento social de contestação às principais políticas do governo socialista liderado por Lionel Jospin), dirigia-se nominalmente a algumas das principais figuras socialistas de então invectivando-as a produzir uma resposta política (de esquerda) aos desafios e ameaças à sociedade que a chamada «revolução liberal» vinha produzindo desde finais dos anos 70 e que o designado Consenso de Washington consagrou como política oficial a ser seguida em todo o mundo sob a batuta do FMI, da Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio.

Para orientar tal resposta política, Touraine aconselhava esses dirigentes socialistas a (re)ler Karl Polanyi (A Grande Transformação) e, em consonância, a adoptarem o que designava por “gestão política da economia”, em contraposição com a ideia central do chamado neoliberalismo que defendia a liberdade total para os mercados e um Estado Mínimo. Esta confusão entre economia e mercado conduziu à emancipação das forças mais destrutivas das sociedades, até aí contidas pelos acordos de Bretton Woods e que tinha conduzido ao que ficou conhecido por gloriosos trinta anos de prosperidade e desenvolvimento. Como salientou adequadamente Hobsbawm, parecia impensável que um movimento desta natureza (que Polanyi designou por laissez-faire) e que tão graves consequências teve ao longo da primeira metade do século XX, pudesse emergir com tanta pujança nos finais do mesmo século.

Ora, o que fizeram, então, os socialistas que, em todos os países europeus (e não só, como se comprova através da experiência neo-zelandesa), assumiram a responsabilidade da governação? Com o argumento da «globalização» a desempenhar um papel central no processo de legitimação das suas políticas, rapidamente adoptaram os três pilares do Consenso de Washington como referência da governação: austeridade orçamental, privatizações e liberalização dos mercados, com as consequências sociais que todos somos capazes de identificar em todo o mundo e também nos países centrais. Como salienta um relatório da Comissão Mundial Sobre a Dimensão Social da Globalização (2005, p. xx), “as medidas de abertura dos mercados e as considerações financeiras e económicas prevalecem sobre as considerações sociais”, facto que todos temos vindo a comprovar de um modo insofismável por todo o lado.

Portanto, a experiência de governação socialista nas últimas duas décadas, em toda a Europa, permite-nos concluir que não estamos perante uma governação de esquerda, como no-lo pretendem fazer crer através de potentes sistemas de propaganda que rapidamente se apressaram a edificar logo que alcançaram o poder. Em muitos casos, como o inglês, podemos mesmo afirmar que a década de governação trabalhista que se seguiu à tentativa de destruição do Estado Social levado a cabo exemplarmente pela governação de Margareth Thatcher não foi muito para além do que podemos designar por gestão da herança thacheriana que, aliás, nunca foi questionada de um modo frontal.

Entre nós e com cerca de uma década de atraso, podemos constatar que a governação socialista tomou como seus os principais pilares do neoliberalismo, tanto no estilo como no conteúdo. Tomando como objectivo central da governação a eliminação do défice das contas públicas (o equivalente ao ajuste estrutural preconizado pelo FMI elevado a fim em si mesmo, independentemente das consequências sociais derivadas da sua aplicação cega) no período de uma única legislatura, aquilo a que temos vindo a assistir é à emergência de um estilo de governação autoritário e particularmente voltado para a destruição das débeis bases do Estado Social que recentemente começamos a edificar. O ataque desferido contra a segurança social, os direitos dos trabalhadores em geral e da função pública em particular, os sindicatos e a educação, entre outros, estão aí para o testemunhar.

O que se passa no campo da educação, apesar da retórica oficial centrada no aumento da qualidade e da eficácia (traduzidos na diminuição das despesas com pessoal e no aumento da frequência e do sucesso da educação secundária por via, sobretudo, do programa designado por Novas Oportunidades), comprova o que afirmámos: o medo e a insegurança em todos os níveis de educação estão instalados; a sustentabilidade das universidades está claramente posta em causa; a autonomia das escolas e dos seus profissionais saltou da agenda política. O medo, o conformismo e a subordinação não podem ser bons indicadores de uma sociedade democrática nem de uma governação que se afirma de esquerda e socialista. Os silêncios no interior do Partido Socialista face a este modo de governação autoritário e atentatório dos mais elementares direitos sociais e políticos começam a ser ensurdecedores. Assim, por razões evidentes e a principal das quais se prende com o modo como a esquerda se deve relacionar com o poder e a governação, uma (nova) Carta aos Socialistas, também entre nós, parece fazer todo o sentido.

Manuel António Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho


  
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