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Crónica Escolar de uma Trânsfuga...

Magda era a primogénita da família. O pai era motorista de uma distribuidora de jornais e revistas, a mãe era doméstica, mais por força da precariedade das ocupações que lhe iam surgindo do que por vontade própria, e o seu único irmão frequentava o quarto ano de escolaridade na escola primária da zona. A sua vida académica só começara, de facto, a ser árdua e difícil a partir do 10º ano que começara a frequentar para um dia poder vir a ser enfermeira, projecto que acalentava de forma um pouco solitária, já que na família ninguém sabia bem para que é que a rapariga continuava a ir à escola.
Fizera o 1º Ciclo do Ensino Básico sem dificuldade, demonstrando até alguma queda para a matemática e para a escrita. Enfrentara com sucesso o 2º Ciclo, embora não deixasse de ser o que uma das suas directoras de turma designara por aluna mediana. Frequentou o 3º Ciclo sentindo as primeiras dificuldades sérias a Inglês e algumas dificuldades a História, enquanto nas restantes disciplinas mantivera a mesma bitola de sempre. A opção que fizera pelo agrupamento 1 tinha directamente a ver com o sonho de frequentar o curso de Enfermagem. Tentara fugir do Inglês, mas a escola não tinha para lhe oferecer a opção Francês e como nunca pensou na possibilidade de se matricular noutro estabelecimento de ensino, decidiu que havia de se safar dessa embrulhada, tal como se tinha conseguido desenrascar com sucesso noutras situações igualmente aflitivas. Os resultados obtidos no 10º ano pareceram confirmar tal palpite. Conseguira não reprovar, à justa, a Inglês, enquanto a sua média escolar passou a rondar a casa dos 11 valores.
No 11º ano as dificuldades aumentaram. No 1º período tivera negativa a Inglês, a Filosofia e a Físico-Química. Conseguira um dez às restantes disciplinas e destoara com um doze a T.L.Q. e um treze a T.L.B., graças aos relatórios que elaborara em conjunto, num caso, com a Teresa e noutro com a Ana. Quando o 2º período se iniciara sabia que se encontrava no limiar de um desafio pessoal decisivo. Ou conseguia melhorar as suas notas negativas ou corria o risco de tomar conta de um quiosque lá para os lados da Boavista. Dias antes o pai perguntara-lhe, mansinho, se estaria disposta a aceitar esse emprego, de que um dos seus clientes lhe tinha falado por acaso. Recusara a proposta, argumentando que se conseguisse fazer o Ensino Secundário teria mais possibilidades de encontrar outros tipos de emprego, com outras perspectivas e melhor remunerados. Até hoje nunca reprovei, porque é que não me deixam continuar a estudar ? Se com esta pergunta tinha a certeza que conseguia ganhar o apoio da mãe e fazia vacilar o pai na pretensão de lhe arranjar trabalho à força, também sabia que no dia em que não a pudesse fazer, o seu destino estava traçado, decidido por uma ocupação de terceira categoria num canto de um shopping ou num supermercado qualquer. E isso era o que ela não queria. Olhava para a mãe, para as amigas de infância, para as suas vizinhas e essa visão chegava para pressentir o que lhe estava reservado no futuro, caso ficasse com o Secundário por fazer. Ingenuamente acreditava que o 12º ano a resgataria de uma vida obscura e impiedosa, onde o presente decorre ao ritmo de um totoloto em cujos algarismos mágicos todos esperam acertar, entrecortado aqui e ali pelas alegrias breves e rasteiras de uma rifa que, por conter ocasionalmente o número certo, permite manter acordada a esperança num destino abençoado algures pela Providência. Valesse o que valesse o diploma do Ensino Secundário, o certo é que no caso de Magda esse mesmo diploma tinha-se tornado na única razão que justificava aquela espécie de fuga para a frente que a rapariga, de algum modo, sabia ter começado a empreender. Neste momento não tinha notas para entrar numa escola de Enfermagem, mas isso já pouco lhe importava. Vivia o presente como se o futuro não existisse, passo a passo, desbravando dificuldades através de todos os meios possíveis ao seu alcance. A seu tempo veria o que poderia obter com a média de um Ensino Secundário que esperava, apesar de tudo, realizar. Assim, de acordo com a estratégia de genuína sobrevivência que adoptara para o realizar, tinha-se precavido e decidido assumir algumas decisões fundamentais, em função das quais passou a orientar a sua vida na escola.
Acolhera-se, por isso, debaixo da asa protectora da Ana e da Teresa. Já era a companheira de ambas nas disciplinas que envolviam trabalhos laboratoriais ou trabalhos de grupo. Assediava-as constantemente para tirar dúvidas e copiava por elas, o mais que lhe era possível. O director de turma, seu professor de Ciências da Terra e da Vida, conhecia a sua vida de fio a pavio, retocada aqui e ali por alguns toques de maior dramaticidade, necessários para compor um quadro suficientemente trágico para merecer os benefícios da piedade daqueles que podiam decidir o rumo das suas notas. A professora de Inglês oferecera-se para lhe dar explicações de borla, mas ela não aceitara. Tinha trabalho que chegasse e sobrasse na escola, em casa e até, por vezes, de madrugada a ajudar o pai a distribuir jornais pela cidade quando o ajudante lhe faltava. Não precisava por isso de ter mais trabalho, precisava de um dez redentor e esforçava-se por obtê-lo. Com a ajuda da Ana, o seu talento para copiar e alguma indulgência por parte da professora acreditava que podia conseguir uma nota positiva. Para já tinha de conseguir passar do cinco e do seis onde se atolara nos últimos testes para, pelo menos, um oito que lhe abrisse as portas da compreensão da "stôra" Helena. Em Filosofia e em Físico-Química a tarefa era talvez mais complicada. A Berta não admitia copianços e, para além disso, não se comovia muito facilmente. Restava-lhe a táctica do elogio subtil e de ser capaz de preparar algumas questões certeiras para utilizar na sala. Não sabia se era fácil fazê-lo, mas a Ana e a Teresa para alguma coisa serviam. Em Físico-Química não podia nem dar muita confiança à profe nem provocá-la como alguns dos seus colegas faziam. Apostava na sua invisibilidade e no facto da Física estar a terminar para dar o lugar à Química, área onde acabava, apesar de tudo, por sobreviver melhor. Na Matemática e no Português safava-se com mais ou menos à vontade. É que o professor de Matemática embora se julgasse muito esperto, não passava de um tanso que se não conseguia descobrir uma cábula mal amanhada, muito menos conseguiria apanhar uma que fosse bem feita e ainda melhor disfarçada. O homem ou fazia de conta que não via ou era mesmo cegueta de todo, tão fácil era copiar nos seus testes. Sempre o preferia à Judite, a professora de Português, que era toda falinhas mansas, muito compreensiva com os alunos mas que, apesar daquele ar de fada madrinha, não dava baldas a ninguém. Punha-os a ver filmes, explicava tudo com detalhe e atenção, arranjava-lhes os apontamentos das aulas e até tinha em conta, na nota que dava no fim de cada período, as classificações que eles, os alunos, obtinham nos trabalhos feitos em grupo. Apesar disso, obrigava-os a responder a uns pontos com perguntas cheias de palavras esquisitas e com citações complicadas, era exigente na forma como corrigia as respostas, para além de ter a mania de fazer testes diferentes, de modo a que os alunos não copiassem uns pelos outros. Se se safava em Português era porque apesar de tudo lá conseguia saber de cor e salteado os apontamentos das aulas, conseguia a boleia das boas notas dos trabalhos de grupo e, segundo a professora, era capaz de alinhavar duas ideias num texto escrito. O professor de Educação Física era como que uma espécie de carta fora do baralho. Não implicava com ninguém e a nota dele não contava para nada.
Neste arriscado jogo de estratégia, Magda não se sentia tanto como um peixe na água como, por vezes, parecia querer dar a entender. Cada dia era vivido, por si, como um dia mais ou menos decisivo. Cada professor constituía um desafio ao qual era necessário dar a melhor volta possível. Cada colega era avaliado em função da utilidade que poderia ter. Apesar de não compreender metade das discussões e dos discursos que ouvia da boca da Ana, da Teresa ou do Vítor sabia, talvez melhor do que eles todos juntos, qual o valor de mercado que essas mesmas discussões e esses discursos poderiam vir a atingir. Tinha aprendido, afinal, que a função da escola não se avalia pela utilidade do que lá se aprende, mas pela esperança que oferece a todos os que são capazes de papaguear, ou de mostrar que sabem papaguear, o que lá se ensina. Acreditava, por isso, no que costumava responder à mãe quando esta perguntava para que lhe servia andar a estudar. De facto, não me serve de nada se não poder continuar a fazê-lo.

Rui Trindade/Ariana Cosme
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação - Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 90
Ano 9, Março 2000

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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