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António Sérgio e Raul Proença ou o Diálogo entres dois Homens de Ideias

"Não, meu Poeta, o nosso mal não é a luz do facho de Paris: o que nos cumpre é acender realmente esse, e ainda o de Londres, o de Berlim, o de Roma, o de Sampetersburgo e todos os mais que prestativos forem. Não confundamos o copiar as formas (paródia a que nos temos reduzido e contra a qual são justos toda a espécie de protestos) com o aprender a técnica, o saber, os processos, a experiência acumulada pelo escol dos povos que avançaram no tempo em que nós dormimos. Não é desnacionalizar-se o ignorante o aprender com quem sabe, não é desnacionalizar-se o miserável o tornar-se apto a competir: ou se desnacionalização isto é, a desnacionalização mais que tudo nos convém agora" - eis o que dizia António Sérgio a Teixeira de Pascoaes, em carta enviada de Londres em Dezembro de 1912, a propósito de um texto publicado então em A Águia, onde o Poeta de Marânus pontificava sobre o saudosismo português e com
o qual Sérgio estava claramente em desacordo. E, mais adiante, na mesma carta, dizia ainda: "Não sei se a saudade nos libertará desta lógica da História: mas creio que não. E visto que não temos entre nós uma disciplina tradicional do trabalho, uma educação, ou como lhe chamar, mas vivemos
e respiramos uma atmosfera de inércia parasitária, é esse o elemento que havemos de pedir ao estrangeiro: os métodos, a técnica, a educação para a produção crematística
".
Mas, no centro das cartas de António Sérgio a Raul Proença, nesta edição feita por José Carlos González e com um prefácio-estudo de Fernando Piteira Santos, o que perpassa como corrente caudalosa de ideias é, sobretudo, a discussão em redor das questões fundamentais da época. As cartas de Sérgio abarcam um período de trinta anos, entre 1911 e Agosto de 1940, ou seja, a fase histórica posterior à implantação da República e depois da ascensão e consolidação do fascismo em Portugal, com Salazar no poder, muitos intelectuais e políticos oposicionistas ao Estado Novo presos ou exilados no estrangeiro. Quando a República se instala, Sérgio tem 27 e Proença 26 anos, mas um e outro ocupam já posição destacada no meio intelectual, num tempo em que floresciam revistas como a Renascença Portuguesa, A Água ou Vida Portuguesa, e por aí abrindo caminho aos propósitos e valores defendidos pela Seara Nova.
Para lá da funda amizade intelectual que se consolida entre o autor de Ensaios e Raul Proença, no fio dos anos em que se desdobram as cartas que agora relemos, ocorrem tantos e tais factos políticos que não cabe dizer do interesse que os mesmos tiveram no entendimento futuro das posições de cada um assumidas ou se revelaram como clara justificação de dissidências que levaram António Sérgio a afastar-se da Seara Nova, em desacordo com Câmara Reis. Em carta a Jaime Cortesão, datada de finais de 39 e começos de 40, Sérgio diz a esse propósito: "Estou habituado a injustiças piores. Mas tomar partido contra mim é tomar partido pela imoralidade, pelo desprestígio moral, intelectual e político da S.N. - desprestígio que é hoje completo em todos os homens de inteligência e de carácter que têm reparado no caminho que ela leva".
Todavia, o que se deve salientar como eixo fulcral das cartas de Sérgio é marcadamente a sua tendência para a clareza das ideias, por não desejar embarcar na corrente republicanista que sacudiu o País e foi o pano de fundo em que muitas lutas intestinas se travaram e de algum modo consentiram depois o triunfo da Revolução do 28 de Maio e trouxe Salazar ao poder por largos anos: "A propaganda dos chefes republicanos portugueses foi uma acção de outro século e de outra parte do mundo que não o século XX
e a Europa: foi uma obra de ignorância, de bestialidade, de pulhice, puramente negativa e bárbara; tratou de de bestializar e lograr um povo. No século XX, esses chefes redentores não tinham uma ideia construtiva, estavam alheios como cafres ao espírito do nosso tempo e às necessidades e condições da actual civilização"
(carta de 31 de Agosto de 1913).
Mas não eram os conflitos ideológicos e políticos que mais pareciam ligar estes dois homens de ideias: pelas cartas de Sérgio a Raul Proença (e as deste último, infelizmente, perderam-se ou levaram descaminho e assim se não pode entender bem o sentido das suas respostas ou das questões que levantara), vislumbra-se de forma clara ser a cultura o que profundamente mais os aproximava e justificava esse diálogo vivo que as cartas deixam supor, a tal ponto que não têm conta as iniciativas realizadas e em que ambos se empenharam e de que se deve destacar essa obra admirável no plano do mais rigoroso levantamento cultural e histórico do país inteiro feito nos vários volumes do Guia de Portugal, reeditados há poucos anos pela Fundação Gulbenkian.
A oposição política entre a monarquia e a república ou republicanos e progressistas parece não ganhar muita importância no espírito de Sérgio que sempre procura conduzir as ideias expressas nas suas cartas de preferência no plano cultural. Mas ainda hoje, neste dealbar de novo milénio e quase cem anos passados sobre a correspondência sergiana, podemos reafirmar que se houve quem entre nós melhor se esforçasse por nos fazer pensar claro e assim contribuir para a sempre adiada "renovação de mentalidades", não só pela sua vasta obra ensaística, mas também pelo carácter exemplar da sua cidadania em muitas intervenções políticas, esse homem foi de facto António Sérgio. E daí que nestas cartas, durante tantos anos mantidas em silêncio no espólio literário de Raul Proença, sobressaia esse sentido cultural em que o autor de Antologia Sociológica sempre se empenhou em trabalho constante e dos mais fecundos da cultura portuguesa do século XX.
Por isso, amplo e larguíssimo é o cenário em que estas cartas de Sérgio a Proença se justifica: os primeiros tempos de contactos ainda formais, os anos de organização e edição do Guia de Portugal, para que o autor de Ensaios escreveu uma denunciadora "introdução histórica, depois os tempos de exílio em Paris, a viver mal de traduções feitas a prazo, mas dando para suportar as difíceis condições de "exilado político" e, mais tarde, já de regresso a Lisboa ou nos meses de permanência em Coimbra, as cartas que se ligam ao período de doença que tanto afligiu Proença nos derradeiros anos de vida. Mas, se a parte inicial destas cartas incide ainda na polémica entre republicanos e monárquicos, que está no centro de muitas das considerações sergianas, a verdade é que os anos acabaram por fazê-lo situar-se mais no plano da sua preferência - o da cultura, repetimos -, talvez por ter da política e das suas intrigas ou pulhices, como a cada passo dizia a Proença, conceitos e razões muito próprias, que poucas vezes se podiam enquadrar com clareza nesse espírito kantiano que, como se sabe, define no essencial a atitude e o pensamento filosófico de Sérgio. Mas fossem republicanos ou monárquicos, estivessem à direita ou à esquerda do poder, o que contava para Sérgio era de facto a grandeza mental e a coerência intelectual muito mais do que a defesa oportunista e interesseira de tanta gente a quem não poupa duras críticas em muitíssimas referências pessoais expressas nas suas cartas.
Por último, deixar registo da importância cultural e ideológica destas cartas e salientar o trabalho de rigor na fixação e transcrição dos textos, a par das notas explicativas com que José Carlos González valorizou esta edição da Correspondência de António Sérgio para Raul Proença, que se revela como fonte de conhecimento de gentes e ideias de um tempo português muito conturbado e de que sempre interessará fazer a sua história nos domínios de expressão literária, política e cultural.

Serafim Ferreira,
Crítico Literário


  
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Edição:

N.º 88
Ano 8, Fevereiro 2000

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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