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Escola: Lugar de Encontro

"se (algo) é de filosofar, que seja filosofado,
se não é de filosofar, que seja filosofado,
em todos os casos, é de filosofar.»

(Aristóteles,Protréptico,2,Fragmenta Selecta)

A educação deve desenvolver padrões de crescimento que, permitindo a cada indivíduo manter e melhorar a sua identidade, num diálogo processual, sempre precário, com a realidade social em constante transformação, lhe possibilitem uma auto-formação dinâmica e uma correcta adequação à sociedade. Afirmar o carácter processual da prática educativa é o mesmo que acentuar a sua dimensão holística. Com efeito, inter-agem no processo ensino-aprendizagem factores vários que concorrem para um mesmo fim: a socialização dos jovens. Em função deste objectivo geral torna-se evidente a necessidade de desenvolver capacidades que permitam ao jovem um integral ajustamento ao mundo em que vive. Assim, o conjunto de acções que a escola, o professor, a família e o meio exercem no processo de socialização dos jovens, devem ser enfocados por uma visão do ensino que, para além de enfatizar o domínio cognitivo , enfatize também o domínio sócio-afectivo já que, como o tem mostrado a recente psicologia da educação, todo o conhecimento é inútil quando desacompanhado de motivações, interesses e atitudes.
Nenhum homem é uma ilha o que, desde logo, invalida qualquer concepção insular da realidade humana. O ser humano insere-se num contexto social e é através de processos inter-reagentes que o indivíduo devém pessoa. O homem vive em sociedade e é no seio social que, através dum sistema complexo de relações com os seus semelhantes, reguladas por normas e regras, é possível a instauração de uma comunidade de destino ancorada em valores reguladores do trato social que o processo sócio-histórico legou e que os agentes socializantes «impõem».
Educar é suscitar modificações significativas nos padrões de comportamento dos alunos, isto é, promover o trânsito do indivíduo à pessoa ou, nas palavras de Rui Grácio, «emancipar (largar de sob a mão), e é provocar também»(1). Deste modo, a educação, a prática educativa, pressupõe uma concepção optimista do mundo e do papel do homem no mundo. Mais do que uma concepção optimista exige uma atitude positiva da vida e do devir educativo. Afirmar o devir educativo é acentuar o seu carácter dialógico. De facto, o devir educacional exige a presença de uma relação fundamental Eu-Tu e do papel actuante do homem no mundo. Perspectivar o devir educacional na sua dimensão dialógica só se torna possível na condição de se colocar como telos da prática educativa a auto-realização do indivíduo como um processo, interminável, em que o indivíduo se «apossa» de si e do seu mundo num projecto de criação da sua liberdade e da consciência dos limites da sua liberdade no inter-agir social.
Com efeito, o homem não é, por um lado, uma simples coisa no mundo das coisas, nem, por outro lado, uma interioridade pura, fechada, como o cogito cartesiano ou a mónada de Leibniz. O homem não se realiza só como interioridade, mas saindo de si, estando perto das coisas e dos outros; existir é sinónimo de vizinhança, de estar no mundo, de ser uma consciência intencional e intensional. Dizer consciência intencional é dizer que a consciência é primariamente abertura às coisas que não são consciência; não é (apenas) consciência de si mas de algo que está fora de si. Este tomar consciência do que não é consciência é o domínio do saber, da experiência.
O termo «mundo» pode ser entendido em dois sentidos: o mundo objectivo e o mundo do homem. O mundo objectivo será a «soma» dos objectos e de todos os seres que aí se apresentam; será constituído pelas coisas escondidas e que a ciência descobre: um mundo a transformar pela técnica a partir da ciência. Mas o homem não se reduz à panóplia das coisas do mundo. A Antropologia hodierna faz realçar o facto de que o mundo do homem, ser no mundo, significa, justamente, estar junto das coisas, significa participar no processo relacional com os outros homens. É desta relação que nasce o mundo cultural e social. O mundo é antes de mais o mundo do homem constituído por relações sociais e culturais caracterizadas por uma atitude cultural face à natureza ? o homem forma o mundo: humaniza-o. Privilegiar esta concepção relacional do homem no trato mundanal permite visualizar a dimensão da inter-subjectividade à luz de uma categoria cuja fecundidade não parece ter ainda «assomado» completamente: encontro. Já Guilherme D?Oliveira Martins, em artigo a propósito do papel de educador de Emmanuel Mounier, referia que a escola devia contribuir para a consolidação duma «consciência da importância dos espaços públicos ? e do lugar das pessoas e cidadãos neles, como agentes de criação e de aperfeiçoamento», na medida em que, afirma o articulista logo de seguida, esses lugares públicos «são pontos de encontro, de relação e de complementariedade».(2). É assim que qualquer reforma educativa nunca é uma reforma educativa qualquer. Antes , ao procurar ser balizada pelos ideais da modernidade, deve assentar no princípio de que a escola é o tempo e o espaço de encontro de uma comunidade ? alunos, professores, interesses sociais, económicos e culturais ? organizada e orientada para a construção de um projecto de desenvolvimento dos seus recursos humanos. Significa isto que a escola é o lugar privilegiado do encontro dos vários agentes educativos na procura solidária, quer dum projecto de alargamento da autonomia individual, quer da autonomia social.
Não excluindo a positividade de outros lugares de encontro ? congressos, fóruns, seminários, etc -,em que a problemática do ensino é, muito justamente, levada a debate, a coerência do que atrás foi dito obriga à necessidade de recentrar na escola, enquanto lugar de encontro de uma comunidade educativa, toda a reflexão partilhada sobre o presente e o futuro da educação. É deste modo que o devir educacional, ainda que não se reduzindo à escola ela-mesma, tem o seu lugar preferencial na escola, entendendo-se esta, não já como o lugar de transmissão de conhecimentos cujo centro seria a sala de aula onde o professor encarnaria o corpo histórico da disciplina, que se auto-legitima como sendo o lugar do saber, mas antes entendendo a escola como um centro educativo cuja inscrição num território educativo permitiria accionar um feixe de solidariedades comprometidas num projecto de alargamento da autonomia individual e social. Decorre desta concepção o deslocamento da função do professor, assumindo este o papel de organizador de aprendizagens no processo sequencial de auto-realização do indivíduo, ou, se o quisermos, dos inter-locutores do processo de aprendizagem. Deste modo, qualquer sistema educativo, ao perspectivar-se, terá que, forçosamente, ter em atenção uma visão dialéctico-processual do devir educativo.
Recentrar na escola todo o debate sobre a educação significa perspectivá-la como um lugar vivo onde todas as atitudes são possíveis desde que cimentadas pelos grandes valores (in)formadores do trato social: os direitos humanos, a democracia, a liberdade, o respeito mútuo, a tolerância, os valores éticos. Na consecução destes princípios há que ter uma visão dinâmica da escola em permanente fluir com o que ocorre na sociedade sem , no entanto, se subjugar a uma mera lógica acontecimental. Isto quer dizer que o «legislador educativo» deve, na elaboração dos princípios currículo-programáticos do sistema educativo, tomar em consideração que a escola não é uma realidade ensimesmada,e que, pelo contrário, toda a escola se situa num contexto sócio-económico-cultural específico com as suas idiossincracias particularizantes, mas que, ao mesmo tempo, essas particularidades devem participar dos grandes objectivos unificadores e reguladores do processo de aprendizagem dos agentes educativos, directa e indirectamente envolvidos.
A praxis pedagógica só se efectiva na sua plenitude quando enformada por uma estratégia de aprendizagem. Confiar no «bom senso pedagógico» é correr o risco de uma simplificação descaracterizante do diálogo pedagógico. Deste modo, a práxis pedagógica deve ser enquadrada por estratégias de aprendizagem, isto é, os meios através dos quais os objectivos educacionais são trabalhados ou, dito de outro modo, o seu planeamento deve estar em íntima relação com o tipo de ensino a desenvolver. O devir pedagógico, as tarefas de aprendizagem, devem partir o mais possível de problemas reais, permitindo que o indivíduo aja sobre as coisas e/ou sobre os conceitos.
Consequentemente, o aluno deve relacionar-se com o saber, não já segundo o modelo clássico do discurso pedagógico, em que a relação professor/aluno é vertical, descendente, mas antes numa relação horizontal, em que o aluno se relaciona directamente com o saber, aje sobre ele, transforma-o, apropria-se dele de uma forma pessoal. Esta atitude pedagógica exige com mais acuidade uma exegese sistemática das estratégias de aprendizagem em função dos objectivos a alcançar, do nível etário dos alunos e do seu grau de preparação. Assim se compreende que uma pedagogia não-directiva, em que o professor se assume mais como um organizador de aprendizagens do que como a fonte transmissora do saber, apele para o trabalho de grupo. O grupo será o espaço relacional privilegiado, eliminando o isolacionismo característico do ensino tradicional em que os alunos se opõem espacialmente e em que o professor aparece como um ser à parte, ora hostil, ora amigável.
O trabalho de grupo, tendo em atenção os grandes princípios (in)formadores do sistema educativo, permite, pelo desenvolvimento de hábitos e atitudes democráticas, a interiorização dos valores regentes duma sociedade democrática: tolerância, respeito mútuo, liberdade. No confronto dos pontos de vista, o jovem é obrigado a descentrar-se dos seus pontos de vista e, ao transmiti-los, obriga-se, pelo conflito estabelecido, a explicitá-los claramente. O professor funciona, aqui, como um factor de coesão do grupo, ofertando-se, num processo de disponibilidade permanente, como elemento possuidor de conhecimentos, de bibliografia, de experiência, etc.
Por outro lado, esta concepção exige que o devir pedagógico seja consequente, isto é, que haja adequação, sujeita a uma re-negociação permanente, entre os objectivos que o educador se propõe atingir, o horizonte de expectativas do educando e o que efectivamente a prática pedagógica realizou.
A prática pedagógica tenderá, portanto, a vincar cada vez mais a dimensão inter-activa que se estabelece entre os «actores» em aprendizagem ? professor/aluno -, tomando-os como seres plenos, globais, autores e fautores do processo ensino/aprendizagem. Quer isto dizer que na prática educativa o aluno se deve relacionar directamente com o saber, internalizá-lo num projecto de autonomia pessoal. Ora, este redimensionamento da comunicação pedagógica exige que se enfatize a capacidade interpretativa do aluno em oposição à pedagogia tradicional em que o aluno era reduzido a sujeito receptivo.
Reportando-se ao esquema semiótico de Greimas, Odete Santos, acerca da especificidade do discurso didáctico, distingue a este propósito entre sujeito interpretativo e sujeito receptivo:
«(...) o sujeito interpretativo, ao contrário do sujeito receptivo (aquele que apenas recebe o saber), adquire este por uma operação na qual é o sujeito operador (constrói o seu próprio saber), situando-se, por isso mesmo, numa relação mediata, aspectualizada, com o objecto»(3).
Com efeito, o discurso pedagógico não é nunca um acto de comunicação resultante apenas da produção de uma mensagem por um Emissor em função de um Receptor. Como nos diz Charaudeau, o acto de linguagem e, especificamente, o discurso pedagógico, é um «confronto dialéctico (é esse confronto que funda a actividade metalinguística de elucidação dos protagonistas da linguagem), entre dois processos:
- processus de produção, produzido por um «Eu» em função e um «Tu»- destinatário;
- processus de interpretação, produzido por um «Tu»-interpretante que constrói uma imagem do «Eu» do emissor»(4).
Quer isto dizer que o acto de linguagem é estruturalmente assimétrico, o que implica, desde logo, não um modelo pedagógico-comunicativo unidireccional, na terminologia de Odete Santos, mas antes a «interacção entre ambas as entidades do processo pedagógico, a qual pressupõe assimetrias na conjunção de cada um deles, com os conhecimentos de que se apropriam, já que, sendo diversos os "conhecimentos do mundo" e a experiência linguístico-discursiva de um do outro, a "renegociação" das significações discursivas entre ambos implica créditos" para os dois elementos do par».
Este modelo inter-activo do discurso pedagógico só é materializável na condição de o processo ensino-aprendizagem colocar como sua finalidade última a realização da autonomia integral do ser humano, quer dizer, que o indivíduo, para além de saber, domine o como do saber. No devir pedagógico esta capacidade auto-reflexiva pode ser enquadrada como sendo o objectivo último das tarefas de aprendizagem, isto é, tender para um nível superior de reflexão a que John Nisbet e Janet Shucksmith denomina de metacognição - «a capacidade de ?conhecer o próprio conhecimento?, de pensar e reflectir sobre como reagiremos ou reagimos perante um problema ou uma tarefa»(5).

Fernando Martinho Guimarães
Leitor do Instituto Camões no Instituto Superior de Educação da Cidade da Praia Cabo Verde.

Notas

1) Rui Grácio, «Problemas e Perspectivas do Ensino em Portugal»,
in Correntes Actuais da Pedagogia, Georges Snyder/Antoine Léon/Rui Grácio,
Livros Horizonte, Lisboa, 1984, p.90.
2) Guilherme D?Oliveira Martins, «Emmanuel Mounier, educador»,
in JL, artes e ideias, Lisboa, 17/4/90, p.20.
3) Odete Santos, «Teorias da Comunicação e Modelos Pedagógicos»,
in Análise Psicológica, 4, 1987, p. 612.
4) Charaudeau, Langue et Discours. Elements de Sèmiolinguistique
(Thèorie et Prátique)
, Hachette, Paris, 1983, pp.38/39.
5) John Nisbeth, Janet Shucksmith, Estrategias de Aprendizagem,
Ed. Santillana, Madrid, 1987, p.59.


  
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Edição:

N.º 87
Ano 8, Janeiro 2000

Autoria:

Fernando Martinho Guimarães
Leitor do Instituto Camões no Instituto Superior de Educação da Cidade da Praia, Cabo Verde
Fernando Martinho Guimarães
Leitor do Instituto Camões no Instituto Superior de Educação da Cidade da Praia, Cabo Verde

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