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Luis Cajão - a memória do entardecer

Nascido na Figueira da Foz (1920), Luís Cajão pôde viver a infância nessa bela cidade marítima de que Ramalho Ortigão falou com interesse e vivo pormenor: «A grande baía compreendida entre o Cabo Mondego e a embocadura do rio desenha uma curva encantadora, lembrando os mais risonhos e os mais doces golfos do Mediterrâneo». Mas, se o lugar em que se nasce para sempre fica marcado como o espaço em que se alicerçam as primeiras raízes, no bem e no mal de todas as coisas, a Figueira desses anos 20 era ainda uma praia de areia fina, sempre de grande animação e viva euforia durante os meses de Verão, frequentada pelas gentes abastadas que afluíam e se confundiam com os espanhóis vindos de Madrid, Salamanca, Cáceres e Badajoz para um tempo de férias gozado entre os banhos e os salões do casino ou em passeios de certo espavento e exibicionismo pela larga e extensa marginal da cidade.
Na ficção literária de Luís Cajão sempre se desvendam as injustiças sociais e as incidências dramáticas no comportamento individual, porque as suas histórias são repassadas por uma verdade comovida e realista e, através de um estilo conciso e objectivo, a escrita afirma-se muito próxima de um claro realismo expressivo que confere às suas narrativas e personagens uma bem doseada dimensão ficcional que tem sido colocada em destaque pela crítica. De facto, desde os contos de Torre de Vigia até às ficções de Férias em Andaluzia, foi longo o caminho literário percorrido, muitas vezes sem grande entusiasmo, é verdade, e com algumas razões de queixa do próprio meio literário, como se passa também com outros escritores portugueses, apesar do interesse de críticos como João Gaspar Simões, Artur Portela, João Pedro de Andrade, Amândio César, José Tengarrinha, Duarte Faria e Taborda de Vasconcelos.
Porém, alheado da crítica que se faz aos seus livros ou das razões que
o fizeram escrever muitos contos e romances em mais de quarenta anos de vida literária, o autor de Escarpas do Medo, no abeirar-se dos oitenta anos, não é ainda um guerreiro ferido ou magoado pelo que vê em seu redor, mas teve ainda forças para publicar Um Secreto Entardecer, segundo volume de memórias em que perpassam, entre a música, a literatura e o mais, histórias de gente que andou a seu lado, participou dos sonhos e aventuras na aventura de estar vivo e ter uma demorada experiência dos tempos e lugares que mais marcaram esse trajecto. E assim nas páginas deste livro memorialista, com um sentido claramente objectivo e realista, traça os aspectos essenciais de pessoas que foram do seu conhecimento e convívio, como Tomás Alcaide, Fernando Lopes Graça, Domingos Monteiro, Tomás de Figueiredo, Vitorino Nemésio, José Régio ou João Gaspar Simões, a par de um pormenorizado fresco literário de quem sabe do que fala e fala sobretudo do muito que viveu e dos vários lugares por onde o seu desejo de peregrinação o levou em tantos anos de vida.
É verdade que Luís Cajão muito pouco se importou em conquistar até hoje alguma posteridade, porque lhe tem interessado mais escrever as suas histórias, consolidar uma obra literária que tem os seus méritos e, na recta final da vida, pode assumir com grande desassombro, como nas páginas de Um Secreto Entardecer, a clara consciência de que a consagração imediata pouco ou nada o preocupa. E assim pode desabafar: «Nem sequer tenho obra que justifique tal presunção. Há uns trinta anos que figuro naHistória da Literatura Portuguesa. Se lá ficar mais dez ou vinte após a minha morte, isso já será para mim uma recompensa imerecida, não só imprevista mas de todo inútil. É tudo tão fugaz, frágil e transitório, que não vale sequer a pena ter preocupações dessa ordem».
Julgamos não haver nisto qualquer indício de modéstia, mas tão só a certeza de que Luís Cajão não alinha nos "mistérios" da nossa vida cultural nem pertence a essa galeria de autores «com retratos e ditirambos em tudo quanto é comunicação social, guizalhando em carrocéis de fumo e tristes ostentações, esses, solenes e fátuos, que vivem à sombra de prémios inexplicáveis e de livros alguns deles realmente ilegíveis». Os seus livros existem e só esperam ser entendidos na mais profunda e verdadeira expressão literária, porque nos últimos anos foram reeditadas obras como Torre de Vigia e A Estufa e esse interessante livro de contos Férias em Andaluzia, em que de novo se regista uma certa memória que desde sempre guarda da sua cidade natal.
Mas, entre esse silêncio em redor da sua obra e a memória que ainda mantém de muitas pessoas e factos, como se pode reviver pelas páginas da sua evocação do entardecer e próximo de atingir os oitenta anos, Luís Cajão permanece como um escritor que deve ser lido na justa dimensão da obra que até hoje se não cansou de escrever,porque na opinião de João Gaspar Simões lhe são devidas, sem dúvida, «algumas páginas de literatura de ficção muito dignas de figurar entre as melhores que se escreveram no nosso tempo».

Serafim Ferreira
Crítico literário

Luís Cajão
UM SECRETO ENTARDECER
Memórias
Ed. Escritor / Lisboa, 1998.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 82
Ano 8, Julho 1999

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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