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O polícia sem vocação

Purang vive isolada. Lá para o extremo sul do Tibete ocidental. Devido à proximidade com o vizinho Nepal, está arquivada como zona proibida. Interdita ao apetite voraz dos visitantes estrangeiros. Dos laoeis - os diabos brancos - como os chineses gostam de rotular tudo que seja olho largo e nariz comprido.
Cheguei pela calada da noite. Sempre havia mais hipóteses de ficar por ali um dia que fosse. Afinal, fiquei dois. Tive tempo para passear pela aldeia, observar os negócios regateados entre tibetanos e comerciantes nepaleses, espiolhar as caves dos eremitas cavadas na parede granulosa das montanhas, trocar saudações com os habitantes sorridentes... Enfim, tive tempo para justificar todas as privações que atravessara para chegar ali, àquele oásis de fertilidade. No terceiro dia, de manhã, enquanto fazia as compras de subsistência no mercado local, ouvi uma voz que me chamava. Olhei para trás e reparei num jovem em uniforme. Sentado numa tasca local. A gozar o doce calor do sol de Outubro. Quando me aproximei, vi que aquele rosto não me era desconhecido. Tinha cruzado com ele no dia anterior. Trajava então à civil e enviara-me um hallo entusiástico. Percebi logo o que se tinha passado. Na véspera fora celebrado mais um aniversário da revolução chinesa. Por isso, o polícia não tinha actuado e concedera-me aquela estadia bónus de dois dias. Mas agora queria que lhe mostrasse a autorização. Pediu-a com a maior educação deste mundo. Como quem pede desculpa por estar a importunar. Eu, é claro, sem saber como descalçar aquela bota, mostrei a maior das inocências: 'Ai é! Então é preciso licença para estar aqui'? Não sabia. Peço mil desculpas'. O jovem agente da autoridade, mais tímido ainda, não se alterou. Pediu-me apenas que lhe deixasse o passaporte e o fosse visitar ao posto policial na manhã seguinte. Para regularizar a situação.
Dito e feito. No dia seguinte, Thupden, assim se chamava o polícia, esperava-me com uma garrafa de termos cheia de chá com manteiga. Deixara de ser a autoridade para se transformar num amigo. Quis saber do mundo. Das viagens. Da vida fora daquele exílio que o mantinha incomunicável durante todo o inverno. Tinha imensas saudades dos pais e da namorada que o esperava em Lassa, sua terra natal. A abordagem no mercado, afinal, acabara por ser pretexto para selar uma amizade regada com sucessivas taças de chá. Uma pequena palavrinha ao chefe bastou para resolver o problema da minha legalidade.
No fundo, a autoridade local, seja ela tibetana ou chinesa, não se sente minimamente incomodada pela presença de estrangeiros. Antes pelo contrário. Só que são obrigados a mostrar serviço...
No final da conversa, antes de um 'até breve' que prometia ser certo, Thupden acabou por confessar o seu desgosto em ser polícia. O que ele queria mesmo era ser músico. Dava uns toques de guitarra, mas isso não chegava para subsistir. Por isso ali acabou desterrado. Sem alegria. Mas prometeu que iria mudar de profissão, dando jus ao provérbio de que 'o hábito não faz o monge'.

Joaquim Castro, em Purang


  
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Edição:

N.º 68
Ano 7, Maio 1998

Autoria:

Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista
Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista

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