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A propósito do livro de Filomena da Cunha 'Ao Sopro das Brisas Fagueiras do Índico' e do Dia Internacional da Mulher



Apresentação da apresentadora

Sou pobre e simples. Sou uma mulher-moinho e um caminho com rumo.
Pobre, no sentido de não ser avara e simples porque conto a verdade.
A razão de eu estar aqui deve-se a uma conversa que tive com o dr. Mário Nunes, para trocar impressões de trabalho. Nesse encontro, ele expôs-me assim o assunto:
-- Cristina, quem acha que, aqui em Coimbra, seria capaz de apresentar um livro sobre a Mulher?
Respondi-lhe em jeito de brincadeira:
-- Eu !
-- Está bem, fica combinado, dou-lhe a oportunidade de o fazer&ldots;
Podereis pensar, claro, que a escolha foi um pouco mal feita, já que neste tipo de encontros ficaria muito melhor uma alta figura das Letras&ldots; Mas não. Desta vez, sou eu quem cá está, tenham paciência&ldots; Não falo de mim, porque nada sei de mim, os outros que me ajuízem. Só direi que adoro a liberdade, a Natureza, o Mar a Fé e o violino da Vanessa Mae. Todo o tempo livre que tenho é para pintar, ler e escrever. Não tenho gavetas nem segredos. Não fecho portas à chave, nem escrevo diários. Hesito em magoar-me na intimidade da rua estreita que é o meu coração.
Gosto de montes e valados, de flores silvestres e prados cerrados de milho, dos lírios roxos e da evasão quando o dia fecha. Da linha do infinito, com um sol calmo a beijar-me a face.Gosto da quinta dimensão, das casas de perfil, da solidão e dos desafios. Gosto das pontes e dos barcos sem remos. da palavra 'nós' à beira-mar. da fusão do Universo, bebendo sóis pela janela aberta. Do feno, da cor e da alvorada.

O livro e a autora

É com um sentimento de grande humildade e admiração profunda que revejo o curriculum de Filomena da Cunha: imagino-a frequentando o Curso de Piano e Música, em Secunderabad, na Índia, em 1923, após o que se seguiu o Curso de Medicina; anos depois, já começam os seus escritos a chamar a atenção de revistas e jornais de Nova Goa; é guarda-livros, taquígrafa, fundadora e directora de um Instituto de Comércio e Contabilidade, depois gerente comercial; casa com o dr. Domingos Rebelo e vai dar aulas em Mombaça, no Quénia; vive sucessivamente em Lourenço Marques, na Nazaré e, desde 1980, em Alcobaça. Vida de luta, de sofrimento e de dádiva; vida sempre voltada para o serviço ao próximo, para a libertação da Mulher, para a dignificação do ser humano !
O seu livro, 'Ao Sopro das Brisas Fagueiras do Índico', é o grito de uma alma jovem e entusiasta que não aceita a injustiça da inferioridade, que reclama a igualdade de tratamento para as mulheres e não pactua com os privilégios injustos do homem-dominante que, quantas vezes, só sobe na vida porque tem atrás de si uma companheira humilde e sofredora que lhe proporciona a comida, o aconchego, a frescura da camisa engomada, o cuidado com os filhos, a casa limpa e arrumada!&ldots;
E ao curvar-me de respeito perante esta Senhora, não posso deixar de o fazer também a seu esposo, sr. dr. Domingos Rebelo, autor de uma vastíssima bibliografia referida na parte final do livro e que em 56 anos de vida em comum sempre soube apoiá-la e incentivá-la; que lhe proporcionou uma Dedicatória e um Prefácio prenhes de enternecido amor e dedicação. Se ela soube ser digna e exigente, ele emprestou-lhe a sua força e o seu carinho! Com estas duas figuras, o binómio homem/mulher foi verdadeiramente feliz e enriquecido !

O livro que temos a honra de apresentar divide-se em três partes.
A primeira é um conjunto de 10 artigos, escritos em Nova Goa, entre 1930 e 35. A autora apresenta uma visão geral do movimento feminista, em três perspectivas: a Mulher no Mundo, na Índia e na Índia portuguesa, em particular. Como títulos interessantes, citaremos ' A Mulher Moderna', 'O Movimento Feminista nos Países Orientais', 'Conferência das Mulheres na Índia' e 'A Mulher na Índia Portuguesa', para não referir mais.
Ao folhear esta primeira parte, encontramos dois tipos de texto: aquele em que Filomena da Cunha descreve com precisão a árdua luta que milhões de mulheres têm vindo a travar para melhorar uma situação injusta; outro, de carácter polémico, em que ela responde a um tal Rufino de Lemos que se mostrou indelicado e irónico, ao abordar a palavra 'feminismo'.
Na segunda parte, a escritora presenteia-nos com três ensaios: 'Sorrisos', 'O abade Faria' e 'A Índia e seus encantos', escritos também nos anos 30. Não resisto à tentação de colher um excerto saboroso do Ensaio 'Sorrisos', que é como uma pequenina jóia de delicadeza e expressividade verbal:
' Uma pessoa que facilmente consegue ter um sorriso à flor dos lábios é como a própria alegria personificada, como o sol que alegra tudo com alegres matizes, espalhando o calor benéfico dos seus fúlgidos raios; é sempre um prazer a companhia duma dessas pessoas privilegiadas, enquanto que a duma outra, que não tenha sido favorecida pelos deuses com o dom precioso dum sorriso e que nem o tenha cultivado, dá-nos a impressão dum dia nebuloso que envolve a natureza com o seu manto cinzento de tristeza. (&ldots;) A alegria é tão contagiosa como a tristeza. Espalhemos, portanto, o brilho do sorriso, para alegrar este mundo, repleto de males que escaparam da caixa fatal de Pandora, ficando no fundo, para nos consolar, o único bem que é a luminosa e efémera Esperança.'
Decerto concordareis comigo em que este é um pedaço mágico de prosa, pela doce alegria que empresta às palavras, pelo fundo sereno de uma alma plena de optimismo, pela sábia arquitectura da palavra e da frase !
A última parte do livrinho intitula-se 'Anotações suplementares', nas quais há referências aos jornais e revistas em que a autora divulgava as suas reflexões sobre a Mulher. Mencionarei, a título de exemplo, o 'Jornal da Índia', 'O Independente' e 'Portugal Feminino'.
Poderá parecer, à primeira vista, descabido editar uma obra cujos escritos terão 60 anos de publicação. As condições concretas de vida eram outras, como outras eram as situações política, económica e social. Mas estes escritos não envelheceram, pois o Homem, no seu íntimo, nas suas ambições e misérias, é sempre o mesmo. E as injustiças não têm idade, são de sempre. Penso, assim, que a melhor maneira de homenagear a ilustre autora é expor aos vossos olhos alguns aspectos importantes do livro, relacionando-os com os resultados da pesquisa que efectuei e que provam, afinal, que muita coisa ainda não mudou, infelizmente.

Pretexto para outros textos

O que tem sido, desde há muito, ser Mulher ?
Aproveitando algumas passagens de um documento insuspeito da ONU, publicado recentemente na Internet, vou apresentar um panorama da situação da Mulher no Mundo. Este documento é fruto da realização da 4ª Conferência Mundial Sobre a Mulher, que teve lugar em Pequim, em 1995. Passo a ler:

'Pobreza:
As mulheres constituem cerca de 60% da população rural pobre do mundo, que ultrapassa mil milhões de pessoas (&ldots;) Um terço das famílias de todo o mundo está a cargo de mulheres.

Educação e saúde:
Dos 905 milhões de analfabetos que se registavam em 1990, 65% eram mulheres que viviam sobretudo em zonas rurais (&ldots;) As mulheres representam actualmente 40% dos adultos infectados com o HIV. No ano 2000, podem estar infectadas com o vírus mais de 13 milhões de mulheres, das quais é possível que morram cerca de 4 milhões.

Violência:
Na Índia, 5 mulheres são queimadas por dia, em consequência de disputas relacionadas com o dote (&ldots;) Na Papua Nova Guiné, 67% das mulheres são vítimas de violência doméstica (&ldots;) Nos Estados Unidos da América, em cada 18 minutos uma mulher é agredida.

Conflitos armados e outro género de conflitos:
Embora, de uma forma geral, não participem das decisões que dão lugar a esses conflitos e raras vezes sejam combatentes, as mulheres têm, com frequência, de manter as suas famílias quando a vida social e económica se desintegra. Muitas vezes, as mulheres são também vítimas de tortura e de desaparecimentos e violações sistemáticas que são utilizados como armas de guerra.

Desigualdade económica:
As mulheres representam, actualmente, 41% do total de trabalhadores dos países desenvolvidos e 34% a nível mundial. Contudo, os seus salários são 30 a 40% inferiores aos que os homens auferem por um trabalho semelhante.

Desigualdade no poder e na tomada de decisões:
As mulheres não têm uma participação plena em funções diplomáticas, a alto nível, nem nas organizações internacionais (&ldots;) Em 1993, apenas seis chefes de Governo eram do sexo feminino (&ldots;) Em mais de cem países não há qualquer mulher no Parlamento.

Direitos humanos:
As mulheres gozam de direitos, mas, muitas vezes, não os podem exercer plenamente, devido à falta de conhecimento das leis nacionais e internacionais em vigor e ao facto de não existir, da parte dos Governos e das comunidades, o compromisso de respeitar a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres.

Meios de comunicação social:
A participação nos meios de comunicação social é reduzida. Em África, na Ásia e na América Latina, a média de mulheres na rádio e televisão e na imprensa é inferior a 25%. Na Europa, atinge os 30% na imprensa, e 36% na rádio e televisão.

Meio ambiente e desenvolvimento:
Nos países em desenvolvimento, as mulheres produzem 50% dos alimentos. Em alguns países de África, têm de percorrer a pé 10 quilómetros ou mais para conseguir água e combustível (&ldots;) Na Índia, a mulher constitui 75% da mão-de-obra utilizada para transplantar e mondar o arroz, 60% dos trabalhadores que efectuam as colheitas e 33% dos que asseguram a debulha.' (1)

Regresso
'Ao Sopro das Brisas
Fagueiras do Índico'

Na sua obra, Filomena da Cunha recorda a Conferência das Mulheres na Índia, em 1934, afirmando que uma das oradoras 'apelou à Conferência para abolir o costume do purdah,( que disse ser o pricipal factor do aumento da tuberculose). Falou em casamentos precoces'. A este propósito, vou ler um testemunho impressionante, não de 1935, mas do ano passado, o que prova que este livro não perdeu, infelizmente, a sua actualidade. Ayesha Beevi, de 28 anos, empregada doméstica, em Kozhikode, teve que se casar, aos 13 anos, com um homem de 60, que tinha uma filha da sua idade. Diz ela: 'Eu não tinha pai nem irmãos. A minha mãe empurrou-me para o casamento porque pensava que era o melhor para mim. Nunca se importou com os meus sentimentos'. O seu marido era tão ciumento que, no mesmo dia em que viu alguém cumprimentá-la na rua, se divorciou, levando com ele os dois filhos.
Ela voltou a casar, e amava o seu segundo marido. Depois de 10 anos de casamento, ele foi-se embora para ir viver com outra mulher, levando todas as suas economias. O seu desespero foi tão grande que num dia, às cinco da manhã, se atirou para debaixo do comboio, sem que este a matasse. E ela recorda:
'-- As pessoas ficaram a olhar. Tive que me levantar sozinha e ir a uma clínica. Levei 15 pontos na cabeça e nas mãos'.
Ayesha regressou ao trabalho como criada doméstica. Ainda tem esperança que o marido regresse.
Este documento está à vossa disposição numa página da Internet, cujo endereço terei o maior prazer em facultar. (2)
Vejamos agora qual é a situação concreta da Mulher em Portugal:
A Mulher é frequentemente vítima de exclusão social, de abandono, de maus tratos físicos e psicológicos, de violação da privacidade, de violação física&ldots; O telefone SOS Mulher recebe inúmeras chamadas de desespero e a APAV, Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, regista muitas queixas de mulheres maltratadas. Segundo um artigo publicado no Jornal de Notícias do passado dia 21 (e passo a citar), 'as mulheres continuam a liderar as estatísticas da APAV, onde os maus tratos, no seio da família, aparecem como o crime mais praticado. Em geral, o autor dos maus tratos é marido ou companheiro, mas estão a aumentar os casos de agressão por parte de filhos -- toxicodependentes, alcoólicos ou com problemas de desemprego. Em segundo lugar, vêm as ofensas à integridade física (agressão fora do meio familiar); depois, a difamação, injúrias e ameaças; a seguir, surge o crime de violação; depois, o abuso sexual; e, por fim, furto e roubo&ldots;'(3)
Outro aspecto negativo é o facto de a mulher ter uma jornada diária dupla, pois simultaneamente sobre ela recaem o trabalho doméstico e o profissional, numa sobrecarga verdadeiramente desumana e impeditiva do seu desenvolvimento intelectual. Ainda por cima, ela é obrigada por vezes a faltar, por doença do marido ou dos filhos, daí o seu maior absentismo. O trabalho doméstico tem sido menosprezado pela sociedade em termos remuneratórios. Trata-se de uma ocupação não qualificada e não compensada em termos económicos. Isto, apesar de um recente estudo britânico ter chegado à conclusão de que ' o trabalho das donas-de-casa europeias tem uma correspondência de cerca de 260 contos mensais, no contexto das economias nacionais'!(4) Ao menos num aspecto, todas as mulheres do mundo deverão ter aplaudido Fidel Castro quando, em 1975, fez aprovar uma lei obrigando os maridos a colaborar com as esposas nas tarefas domésticas!&ldots; Que pena não termos nós, mulheres portuguesas, uma sorte dessas!&ldots;
As mulheres portuguesas têm geralmente profissões menos qualificadas do que os homens. 20% são analfabetas e uma percentagem ligeiramente superior possui apenas o primeiro ciclo. Os ramos de actividade profissional maioritários são o agrícola, o têxtil e o do calçado. Vêm a seguir o ensino, o comércio retalhista e o pessoal doméstico.

O assédio sexual no local de trabalho é frequente e usado como chantagem e forma de pressão sobre as trabalhadoras; muitas delas calam a situação e embora não exista ainda legislação específica que reprima tal prática, o Conselho da União Europeia aprovou em 1990 uma resolução que levou à elaboração de um Código de Conduta sobre as medidas destinadas a combater tais actos.
Recordemos as belas e doloridas palavras de Filomena da Cunha quando, em 1935, responde ao antifeminista que, sob a capa do anonimato, atacava o movimento das mulheres; dizia ele que 'se, antigamente, as leis restringiam a esfera de acção da mulher, não era com o intento de a prejudicar, mas de defendê-la do poder absorvente do homem'&ldots; Foi esta a resposta da nossa querida autora -- e passo a ler um trecho da página 49: 'Os trabalhos extenuantes e rudes, como cavar debaixo do sol e da chuva, cultivar a terra, ser costureira trabalhando até altas horas da noite, ser engomadeira, trabalhar horas intermináveis nas fábricas com remuneração inferior à do homem, que executa iguais trabalhos, não lhe eram vedados; mas só os bem remunerados, esses sim, eram feitos para os homens.'
A escritora Maria Velho da Costa, ao evocar, há trinta anos, o sofrimento humilde das mulheres portuguesas (e, afinal, de todas), deixou-nos um texto cheio de beleza e de sofrimento, de que vou ler um excerto:
'Elas são quatro milhões, o dia nasce, elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café. Elas picam cebolas e descascam batatas. Elas chamam ainda escuro os homens e os animais e as crianças. Elas enchem lancheiras e tarros e pastas de escola com latas e buchas e fruta embrulhada num pano limpo. Elas lavam os lençóis e as camisas que hão-de suar-se outra vez. Elas esfregam o chão de joelhos com escova de piaçaba e sabão amarelo e correm com os insectos a que não venham adoecer os seus enquanto dormem. Elas brigam nos mercados e praças por mais barato. (&ldots;) Elas migam hortaliças. Elas passajam meias e calças e camisas e outra vez meias. Elas areiam o fogão com palha de aço. Elas correm esbaforidas para não perder o comboio, o barco. Elas enterram o dedo mínimo na galinha a ver se tem ovo. Elas acendem o lume. Elas mexem o arroz com um garfo de zinco. Elas enchem os pratos&ldots;' (5)

A discriminação da Mulher, as injustiças, os maus tratos, o facto de ser considerada um ser inferior por muitos homens, que lhe atribuem todas as responsabilidades do lar e da educação dos filhos, são de há muito. No entanto, quando começou a ter consciência da sua situação e a revoltar-se contra tal situação, ela começou a unir-se e a criar movimentos de emancipação, alguns deles com a ajuda de homens, reconheça-se. A este respeito, eu gostaria de sublinhar que a autora não se manifesta uma vez sequer, em toda a obra, contra os homens, nem os considera a todos antifeministas. Vou ler uma passagem significativa, na página 50:
'Não se conclue daí que todos os homens sejam antifeministas. Existem alguns, cujo número é limitado, que dão todo o seu apoio, lutando a par das mulheres pela completa alforria do sexo feminino, mas são as mulheres que iniciaram este grande movimento e muitas delas trabalharam com entusiasmo e ainda hoje estão lutando incansavelmente. Em vista desta agitação irresistível, os Governos têm sido obrigados a conceder algum direito à mulher'.
Vejamos agora um breve calendário de iniciativas concretizadas em vários pontos do mundo:
1869 - Estados Unidos: criação da Associação Nacional pelo Sufrágio Feminino;
1893 - Nova Zelândia: as mulheres conquistam o direito de voto;
1911 - Japão: criação do Movimento de Libertação feminina Seito Sha;
1920 - Estados Unidos: as mulheres votam em todos os Estados;
1925 - Índia: Sarojini Naidu, escritora, poeta e defensora dos direitos da mulher, é eleita presidente do Congresso Nacional Indiano; sobre ela, um excerto do livro de Filomena da Cunha, na página 27:
'Quem não terá ouvido falar da Mrs. Sarojini Naidu, cognominada O Rouxinol da Índia , a inspirada poetisa e oradora pública cuja palavra eloquente deixa encantados os que a ouvem? É um vulto feminino mundialmente conhecido. Tem estado na Europa, África e América pugnando pelos direitos dos Índios e fazendo conhecido o seu país'.
1932 - Espanha: a constituição da Segunda República reconhece o direito de voto das mulheres;
1951 - A Organização Internacional do Trabalho aprova a Convenção de Igualdade de Remuneração entre Trabalho Masculino e Feminino para função igual;
1959 - Ceilão: Pela primeira vez no mundo, uma mulher, Mme Sirimavo Bandanaraike, é eleita Primeiro Ministro;
1967 - Irão: A lei de 'protecção à família' permite à mulher trabalhar sem autorização do marido.

a questão do género

Filomena da Cunha revela-se uma mulher atenta a toda esta movimentação, ao relatar a preocupação das delegadas à Conferência das Mulheres na Índia, em 1934 -- passo a citar o livro na página 32: 'sem diferença de castas nem de credos, atacaram e discutiram os diversos problemas de interesse feminino, que afectam a grande massa da população feminina do país e às dificuldades que a impedem de ir avante na marcha progressiva do feminismo, gozando das regalias a que tem jus'-- fim de citação. Esta preocupação que Filomena da Cunha refere (de não diferençar as mulheres por causa das castas ou credos), ainda hoje persiste. Ainda hoje, na Índia, os homens hindus, cristãos, sikhs e budistas têm que suportar longos processos em tribunal e o pagamento de pensões às mulheres, em caso de divórcio; aos muçulmanos, basta dizerem simplesmente 'talaq, talaq, talaq' para se separarem, tendo apenas que ajudar as ex-mulheres e filhos durante três meses&ldots; (6)
Estes problemas de interesse feminino continuam, hoje ainda, a preocupar as mulheres muçulmanas, na Índia. Recentemente, elas concentraram-se, ao lado dos homens, em Lucknow, para as orações de sexta-feira, enfrentando as condenações dos tribunais e mesmo o casse-tête dos polícias. O seu argumento é indestrutível: iguais nas ruas, iguais perante Deus.(6) E como refere um documento publicado na Internet em Setembro de 1997, em 'The Times of India', o grande medo da liderança ortodoxa é que, uma vez que as mulheres ganhem o direito de adoração por igual, possam publicamente começar a questionar as três atitudes que rejeitam: a poligamia, o purdah e o talaq. (7)
Todos estes movimentos realizados em prol da Mulher têm vindo a encontrar nos textos legais uma certa correspondência; o Homem verificou, finalmente, que só será uma pessoa realizada e digna se a Mulher também o for -- mas as excepções continuam, e não são poucas!&ldots;
No nosso país, tem-se verificado também alguma evolução no reconhecimento da igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, como passamos a referir:
A Constituição de 1976 afirma, no artigo 13º, que 'todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei'; mais adiante, no nº 3 do artigo 36º, determina que 'os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos'. Segundo o nº3 do artigo 68º, 'as mulheres têm direito a especial protecção durante a gravidez e após o parto, tendo as mulheres trabalhadoras ainda direito a dispensa do trabalho por período adequado, sem perda de retribuição ou de quaisquer regalias'.
Em 1979, foi criada, pelo decreto-lei nº 392/79, uma Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego. Por outro lado, a Lei nº 4/84 dispõe, no nº2 do artigo 1º, que 'os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação'. Finalmente, o artigo 10º apresenta uma inovação referente ao papel do Homem no seio da família -- passo a ler: 'O pai tem direito a licença (de maternidade, de 60 dias a seguir ao parto) igual à que a mãe teria, em caso de
- incapacidade física/psíquica da mãe;
- morte da mãe;
- decisão conjunta dos pais'.
Essa preocupação de tornar o Homem mais consciente do seu papel e das suas responsabilidades, leva-nos a conhecer um documento da União Europeia intitulado 'Igualdade de Direitos e Oportunidades entre Mulheres e Homens', que passo a citar: 'A licença parental é um direito que assiste o pai ou a mãe e não deverá haver discriminação quanto à sua concessão a um homem a uma mulher'. (8)
Poderíamos ser levados a pensar que todas estas leis e disposições são cumpridas, que as pessoas vivem muito felizes, mas na generalidade isso não acontece, porque não cumprem os seus papéis. As medidas legislativas são insuficientes para garantir a igualdade de participação das mulheres na vida política, económica e social, até porque a maior parte delas são fruto de organismos em que os homens detêm a maioria. Citemos, a este propósito, uma afirmação do dr. António Arnaut, distinto advogado e escritor e ex-ministro da Saúde, publicada na imprensa diária da passada 2ª feira; embora num contexto que nada tem a ver com a luta das mulheres pela igualdade de oportunidades, o seu depoimento aplica-se perfeitamente ao nosso tema -- e passo a citar: 'Não há reformas profundas que afectem a classe dominante. Quem faz as leis são os políticos, que pertencem à classe dominante. Deste modo as leis não podem proteger os fracos, só de vez em quando.' -- fim de citação. (9)
Um estudo realizado pela UNESCO.html">UNESCO.html">UNESCO revela que actualmente não há em qualquer país obstáculos legais ao acesso das mulheres aos estudos, aos empregos, a uma vida social sem entraves. Isto é verdade no plano formal. Mas funciona diferentemente na prática. Para tentar, de algum modo, responder a esta dificuldade, foi recentemente constituído um grupo de trabalho de que fazem parte Vital Moreira, Leonor Beleza, Jorge Miranda e outros especialistas, para estudar a relação entre a igualdade de direitos da mulher na vida política, e a sua aplicação prática; como afirma a Alta Comissária para as Questões da Promoção da Igualdade e da Família, Joana Barros, ' as mulheres não ascenderão politicamente (esfera pública), enquanto os homens não partilharem mais as tarefas familiares (esfera privada)'. (10)
Uma mulher corajosa foi a professora Helena Costa Araújo, directora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação do Porto, que criou uma nova cadeira naquela Faculdade, intitulada 'Educação, Género e Cidadania'; esta disciplina procura articular as questões da construção do masculino e do feminino -- das nossas identidades -- com as questões mais alargadas da cidadania e dos direitos, não apenas direccionados para o que é do âmbito público, mas para aquilo que podemos considerar a esfera do íntimo, pessoal, doméstico. (11)
Como Filomena da Cunha afirma, na página 25, a 'educação e o trabalho são o único esteio para se libertarem do jugo a que estavam sujeitas, há tantos séculos'.
Oxalá as nossas Escolas saibam preparar as gerações vindouras para que ganhem uma nova mentalidade, tornando-se pessoas mais abertas e positivas!

Um poema final

Vou terminar lendo um poema que peço licença para dedicar à srª D. Filomena da Cunha -- do grande poeta indiano Rabindranath Tagore,

Mistério divino da Mulher

Vieste a mim um momento
e eu senti ao roçares por mim
o grande mistério da mulher
que vive no coração do universo;
aquele que continuamente
vai devolvendo a Deus
o seu próprio rio de doçura;
a beleza sempre fresca e jovem
da natureza,
que salta nos ribeiros espumantes,
e canta na luz da manhã,
e alimenta com ondas de desejo
a terra sequiosa;
onde o Eterno se parte em dois,
numa alegria
que não pode já conter-se,
e se derrama, dolorosamente,
pelo amor. (12)

Cristina Henriques
Coimbra e Casa da Cultura, 28 de Fevereiro de 1998

 
Referências bibliográficas

(1) - 'Situação da Mulher' - http://www.onuportugal.pt/mulher1/situaçao.html
(2) 'My mother never considered my feelings' - http://206.103.13.164/news/aug/30talaq1.htm
(3) 'Jornal de Notícias' - 21/02/98
(4) Revista 'Guia', nº 333 - Maio de 1996
(5) Maria Velho da Costa, 'Cravo', 1976
(6) Muslim Women in India -http://st-www.cs.uiuc.edu/~chai/berita/960830-960930/0241.html
(7) 'The Times of India' - http://timesofindia.com/050997/edit1.htm
(8) 'Igualdade de direitos e oportunidades entre mulheres e homens' - Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias - Luxemburgo, 1996
(9) 'Diário de Coimbra' - 23/02/98
(10) Diário 'As Beiras' - 20/01/98
(11) 'Helena Costa Araújo&ldots;' - http://www.a-pagina-da-educacao.pt
(12) Rabindranath Tagore, 'O Coração da Primavera'


  
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Edição:

N.º 67
Ano 7, Abril 1998

Autoria:

Cristina Henriques

Cristina Henriques

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