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Estórias de Thamel - Joaquim de Castro, em Katmandu

Joaquim de Castro, em Katmandu

Thamel, bairro situado numa das extremidades de Katmandu, transformou-se, de há uns dez anos para cá, assim numa espécie de gueto para estrangeiros, onde os nepaleses devem obedecer ao recolher obrigatório decretado especificamente para essa zona da cidade .

Às 10 horas, menos quinze ou mais quinze minutos, a polícia não quer ver nenhum cidadão nacional - para além dos proprietários e empregados - em qualquer dos numerosos bares que pululam aquela zona da cidade. E os agentes da autoridade fazem a ronda para o confirmar, mesmo que para isso tenham de subir aos terceiros e quarto andares onde normalmente se situam os ditos estabelecimentos, réplicas dos seus congéneres europeus e americanos .

'Bem, o controlo não é assim tão rigoroso como isso' - confessa Mani Gurung, guitarrista local que anima com 'blues à Clapton' as noites de 'Tales and Tongues', um dos poucos bares de Thamel com música ao vivo. E de facto, passado alguns minutos, o polícia que vem fazer a ronda troca palavras amistosas com Mani e, depois de se certificar que não está ali mais nenhum nepalês presente, sai.

Mas, qual a razão do recolher obrigatório? Já tinha reparado no ambiente por vezes tenso que se vive em Thamel, sobretudo à noite. Mas daí a impôr o recolher obrigatório... A resposta dá-ma o proprietário de um estabelecimento da noite. Relato pouco agradável, fora do habitual num país tranquilo como é o caso do Nepal. Segundo ele, há uns anos atrás, no Himalayan Cocktail Bar, um italiano teria sido assassinado, 'esfaqueado por quatro tibetanos', na sequência de uma acesa discussão. 'Um dos tibetanos tinha importunado a namorada do italiano que jogava bilhar' - conta. 'Como resultado surgiu uma escaramuça, que tomou proporções graves com a chegada de mais três amigos desse tibetano. Todos eles de famílias ricas' acrescenta ainda. Após o incidente, as ordens das autoridades foram

estritas: depois das 22 horas, nepaleses em casa. O governo não quer afugentar os turistas que tanta falta fazem à economia do país.

Mas Mani Gurung não é um nepalês qualquer. Jovens como ele são frequentes nos dias que correm, mas inimagináveis há uns dez anos atrás. Para os mais distraídos, Mani pode perfeitamente passar por latino. A forma como traja, o gel no cabelo e a desenvoltura com que fala inglês com a britânica de brinco no nariz que tem a seu lado, faz com que passe perfeitamente por estrangeiro. Aliás, os rapazes nepaleses têm bastante sucesso junto das estrangeiras. É vê-las, em chinelas e vestido solto, acompanhadas pelas suas mais recentes conquistas exóticas. E os galantes nepaleses não se fazem rogados, muitos deles com o olho no passaporte estrangeiro... Recordam-me os latagões portugueses que durante os meses de veraneio aguardam a chegada das nórdicas nas estações e apeadeiros da linha costeira. Esses, não propriamente com os olhos nos passaportes das meninas, mas com total disponibilidade para usufruirem dos marcos e das coroas que elas trazem consigo. Meninas, já sabem, se procuram homem, Katmandu é que está a dar.

Quanto às nepalesas, também elas mudaram. Era impensável ver uma newari enfiada numas calças de jeans há uma dúzia de anos. Agora, andam em bandos. Ainda a medo. À excepção de alguns casos raros, não se aventuram nos antros nocturnos onde rondam estrangeiros. Mas não faltará muito para que tal venha a acontecer.

'As estrangeiras são loucas', exclama Senam Lama, um jovem estudante, claramente sem pretensões ao posto de gigolo. 'Tenho um amigo', continua ele, 'que conheceu uma australiana em Katmandu. Quando esta voltou à sua terra arranjou maneira que ele obtivesse um visto de três meses para a ir visitar. Mas depois de três semanas, já ele estava de volta em Katmandu.' E a este ponto Senam dá uma piscadela de olho. 'Ela não o deixava em paz. Sabes o que quero dizer? O meu amigo chegou magríssimo. Como hei-de dizer... Ela queria todos os dias'.

Estamos sentados nas escadarias do templo Maju Deval mesmo no centro da praça de Durbar, o local ideal para ficar a ver o mundo passar. O jovem nepalês faz então uma revelação importante para fechar com chave de ouro esta interessante história: 'Pelos vistos a australiana dava-lhe um pó vermelho para que o seu... eh, eh, como hei-de dizer... permanecesse duro e grande.' Prossegue depois com outra estória, mais a condizer. Fala-me do seu amigo Marco - mostra-me uma foto de passaporte e tudo - um holandês que ficou sem cheta em Katmandu e que 'tinha esse hábito de fumar haxixe' e de como o ajudou a desenrascar-se até 'as tias enviarem-lhe dinheiro' para ele poder regressar à terra. 'Ajudei-o como pude' - termina Senam. Depois, ao reparar o meu olhar abstraído, arrisca. 'Eu não estou a tentar propor-te qualquer tipo de negócio. Não sou como os outros'.

Sim, sim. Sei que és um miúdo porreiro, mas tens de ganhar a vida como todos os outros que nos vão abordando das mais variadas e imaginativas maneiras. 'Vá lá, diz o que te traz aqui' - cogito. Antes de partir, como se tivesse adivinhado o que me ia na cabeça, Senam dá-me o cartão da agência de viagens para onde trabalha e diz: 'Se precisares de alguma ajuda para fazer trekking não hesites em contactar-me ' .

Em Durbar Square é assim. Impossível sentar-se ali a relaxar sem que alguém venha com propostas ou com perguntas. Miúdos, finos como ratos, com perfeita desenvoltura no inglês. Quantas vezes falam também japonês, francês, italiano ou até mesmo espanhol. A sua escola é a rua, e apesar de insistentes e até chatos, o seu modo de abordagem torna-os simpáticos. Se houver boa disposição, são até um perfeito veículo para aprender algo sobre a cidade e os seus habitantes. Com a vantagem de se poder mandar vir o chá, que 'tchai-walas', estaminé montado na praça, fazem ao minuto.

Thamel é o paraíso do consumo para imberbes e freaks fora de uso. E para passadores de droga - os últimos a abandonar as ruas - quantas deles meros infantes aos tropeções, de voz rouca. Trago na memória um miúdo junkie que se arrastava pela zona de Freak Street há dez anos atrás. Agora, como ele, já são muitos.

A intersecção junto a uma conhecida pastelaria e o restaurante La Dolce Vita, é o ponto mais quente de Thamel. Todas as noites há estórias, e quase sempre desagradáveis. Certa ocasião vi bastões da polícia estilhaçaram o pára-brisas de uma viatura para a obrigar a parar. Noutra, avistei agentes que transportavam em braços um jovem nepalês, inerte.

Com recolher obrigatório ou sem recolher obrigatório, 'Tom and Jerry', um dos bares mais populares entre os estrangeiros, mantém as portas abertas até pouco depois da meia noite. O mesmo se pode dizer do 'Blue Note', seguramente o poiso mais agradável de Thamel. Não só tem a melhor selecção musical - aos sábados actua uma banda de jazz residente -, como conta ainda com uma esplanada, protegida por um pára-quedas colorido devidamente preparado contra as chuvadas-surpresa. Pena é o dono que, ainda o bar não fechou as portas e lá está ele, de ar avariço, noite após noite, a contar os maços de rupias acumulados na caixa registadora... Bem podia disfarçar um pouco aquilo.

'De onde são vocês?' - inquire Nilendra Dhruba, proprietário do 'Tom and Jerry', decididamente mais habituado a lidar com estrangeiros do que o seu concorrente da porta ao lado. 'Regressei dos Estados Unidos a semana passada' - informa sem que nada lhe tivéssemos perguntado. Adianta ainda que esteve por lá um mês 'para espiar', como ele próprio gosta de dizer, 'para aprender os truques dos bares americanos'. E parece que Nilendra aprendeu bem a lição. 'Tom and Jerry' tem todos os ingredientes dos bares europeus. Mobiliário ocidental, clientes ocidentais e música ocidental. Nepaleses, só mesmo os empregados.

Joaquim Castro


  
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Edição:

N.º 64
Ano 7, Janeiro 1998

Autoria:

Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista
Joaquim Castro
Fotógrafo e Jornalista

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