Ela tem oito anos. Na sua curta vida, já passou por situações complicadas. Até chegar à idade em que, pressupostamente, tinha que começar a ir para a escola todos os dias, ficou com a mãe e as crianças do local onde vivia. O vocabulário de que dispunha era reduzido, mas servia perfeitamente para as conversas do dia-a-dia e para as brincadeiras, sem brinquedos, imitando o mundo dos adultos. Quando a escola chamou, não se pode dizer que foi com grande alegria que entrou neste mundo desconhecido, repleto de crianças e adultos que utilizavam palavras que ela não entendia. Faziam-lhe o que pareciam perguntas, para as quais lhe faltavam as palavras da resposta. Não se pode dizer que era uma frequentadora assídua daquele estranho lugar, mas quando tinha companhia do bairro, até passava bem a manhã, pensando na refeição quente que a seguir iria receber. Um dia, o legítimo encarregado do poder na cidade, eleito para o efeito, decidiu remover as casas das pessoas com quem ela vivia. A palavra “casa” até era um eufemismo para o abrigo onde morava, mas, uma vez demolido, nem tecto ela tinha. Ninguém parecia querer disponibilizar outro lugar onde se instalar. Passou longas noites ao relento, aconchegada pelos adultos da família, sem perceber porque é que tudo isto lhe acontecera. A escola proporcionava-lhe agora um lugar seco, onde muitas vezes adormecia. E a estadia continuava com refeição incluída. Como perdurava sem local para viver, houve quem tornou pública a situação. O legítimo encarregado do poder não parecia avançar com uma solução, pelo que um outro encarregado, responsável pelos destinos da povoação e do povo ao lado, aceitou financiar um realojamento provisório para ela, a sua família e os seus vizinhos. Quando a família procurou integrá-la numa das escolas da zona para onde foram viver, tinha ela sete anos, a resposta era: “Aqui não há vaga” ou “A sua residência não é aqui”. Ela ficou algum tempo sem ir para a escola, como as outras crianças com quem foi realojada. Não parecia haver outra opção: a escola da sua desaparecida residência continuava aquela que podia frequentar. Resolveu-se então financiar também o transporte diário do grupo de crianças que a incluía. Sujeito ao sabor do trânsito, o grupo atrasava-se, diariamente. Improvisou-se uma mini sala de aula, para as doze crianças dos 5 até aos 11 anos, por duas razões: o grupo não tinha horas certas de chegar, nem de sair, e, com estas aventuras todas, tornava-se a prova paradigmática de que turmas homogéneas só existem na cabeça de burocratas que pretendem ensino normalizado. Começou um trabalho notável por parte das crianças e da professora, em parceria. Era preciso quebrar o muro invisível, resultado de um vocabulário demasiado tempo confinado ao contexto imediato, e para o qual poucas palavras chegam. Tiveram um contributo de mais uma professora, duas horas por semana, que combinava expressão verbal e não verbal, propondo momentos de trabalho relacionados com o que o grupo fazia na sala de aula. Cinco meses depois, a menina de oito anos explica-me com grande à-vontade o plano individual de trabalho que ela gere, a partir da agenda semanal, discutida com o grupo e a professora. Comenta o que faz, mostra-me os textos que já sabe ler. Conta-me o projecto de trabalho que desenvolveu com uma colega, sobre bailarinas, e outro acerca de golfinhos. Consegue raciocinar sobre um problema simples. A turma ao lado da sala improvisada, trabalha de porta aberta e, com alguma frequência, as crianças misturam-se para realizarem alguns trabalhos. Durante o intervalo, as professoras mostram-me o material que desenvolveram, pensando neste pequeno grupo de crianças e na urgência de lhes proporcionar um aumento de vocabulário necessário para conceptualizações mais abstractas e para as quais o léxico disponível era, de longe, insuficiente. Entretanto, a menina procura, no recreio, algumas das novas amigas de fora do círculo realojamento-transporte-turma-transporte-realojamento, constituído invariavelmente de 11 colegas, seis dos quais da sua família. É fácil falar de inclusão. Difícil é consegui-la. Em Portugal, perto da capital. Em dois mil e nove.
Pascal Paulus
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