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O Enfermeiro GASPAR

Estão longe os cheiros, os sons, a luz e as cores. As imagens estão difusas. Está longe a África. Está longe a adolescência. Está perto a dor. A amargura de não ter sabido fazer nada.
Tudo esmorece no consciente. Fica o inconsciente empurrando, empurrando sempre. No fim, mesmo no fim, ficam os fantasmas. Fica a necessidade de não deixar morrer quem morreu.
A história do enfermeiro Gaspar é uma obrigação. É como por flores numa campa que não existe. Não se fala com ninguém. Não se conta toda a história. Solitariamente somos movidos pela ilusão de não ficarmos sós.
Eu era pequeno quando conheci o enfermeiro Gaspar. Ele era muito velho. Tão velho que sendo negro já tinha cabelo branco.
Sempre o vi com ar sisudo. Não ria. Nunca vi rir o enfermeiro Gaspar. Os brancos diziam que ele misturava o álcool da enfermaria com a água e bebia. Não sei se era assim. Eu nunca vi o enfermeiro Gaspar beber ou rir. Sempre com o ar sisudo. Se falava era só pela necessidade de falar.
O que eu sei e posso testemunhar porque vi durante anos, é que o enfermeiro Gaspar tratava muito bem dos seus doentes. Se fossem brancos tratava ainda com mais cuidado.
O paludismo era uma coisa muito chata. Quando se apanhava ficava-se com uma febre tremenda, mais de quarenta graus. Naquele tempo o remédio era tomar camoquina, ficar na cama a transpirar. A doença saía pela transpiração. De maneira que a roupa ficava toda molhada e era preciso mudar de três em três horas.
No sítio havia muitos solteiros, melhor dizendo, brancos sem mulher branca. As mulheres estavam na "metrópole" os homens estavam lá para trabalhar e ganhar a vida.
Quando os brancos apanhavam o paludismo lá estava o enfermeiro Gaspar. Nunca se esquecia dos seus doentes. Camoquina e mudança da roupa de três em três horas. Dia e noite. Nunca sorria. O branco curava-se em quatro ou mesmo cinco dias. Se havia outra doença Gaspar era enfermeiro, médico e mulher, receitava e aplicava. E curava.
A guerra veio depois. Em 1961. Foi um medo tremendo. Matava-se de qualquer maneira. Depressa tudo parecia como nos livros de cowboys. Os brancos traziam revólver na cintura. Alguns tinham metralhadoras FPB. Os negros andavam assustados. Alguns eram presos, espancados e mortos. O enfermeiro Gaspar continuava sisudo tratando os seus doentes, dando camoquinas e outros remédios e mudando roupas.
Um dia vieram alguns tropas comandadas por um tal furriel Ferro. Já traziam colecção de orelhas e até pénis de negros dentro de frascos. A rádio dizia que eram os nossos heróis.
Os tropas começaram a acção. Foram prendendo negros e fazendo experiências. Quiseram até fazer experimentalismo histórico. Conhecedores da vingança de D. Pedro experimentaram arrancar três corações de três homens vivos. Célebre ficou a experiência com a lavadeira Madalena. Era negra bonita e os tropas quiseram experimentar como era fazer sexo depois de lhe introduzirem os cubos de gelo de uma cuvete na vagina. Experimentaram oito antes que Madalena morresse. Contentes com a experiência celebraram com cerveja.
Os tropas continuaram o seu trabalho prendendo, espancando, matando e atirando os corpos ao rio Lucala.
Lembraram-se depois que havia negros que sabiam ler. Um perigo para a Pátria portuguesa. Negro que sabia ler era por certo cabecilha da revolta. Era terrorista. Lembraram-se então do enfermeiro Gaspar.
Alguns brancos disseram que deixassem o velho em paz. Era um velho que sempre cuidara com desvelo os seus doentes. Um bom enfermeiro, diziam. Para os bancos solteiros, melhor, os que não tinham ali mulher branca, era enfermeiro e mulher. Tratava-os dia e noite, dava silenciosamente, na hora certa, a camoquina, mudava a roupa. Se havia outra doença encontrava o remédio.
Os tropas não quiseram saber e prenderam o velho. Levaram-no para o antigo armazém, era ali o sítio dos tormentos.
Eu era menino, tinha curiosidade de espreitar e vi. Os tropas pontapearam, esmurraram e gritaram ao velho enfermeiro Gaspar que se despisse. Silenciosamente, sempre sisudo, o velho despiu-se. Nu, ali ficou sisudo, velho, muito velho, a carapinha branca. Os tropas tinham um torno e prenderam o velho ao torno pelo seu sexo envelhecido. Depois regaram-no com gasolina e pondo-lhe fogo gritaram: — confessa que és um terrorista, diz os nomes dos outros.
Pela janela vi o velho enfermeiro Gaspar morrer calado, sisudo como sempre. Morreu ardendo, a carapinha branca enegrecendo e ele sisudo, sem falar, sem chorar, sem gritar, sem rir. Se deitou alguma lágrima eu não vi. Talvez o fogo a tenha secado.
Sem rir, sisudo, o enfermeiro Gaspar foi o meu mais velho contador de histórias. Não esqueço. Tenho saudades.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

Edição N.º 186, série II
Outono 2009

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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