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Oneolítico e as fantasias das origens

O ELEMENTO FUNDADOR DA SOCIEDADEOCIDENTAL, DO PONTO DE VISTA DA SUA ONTOLOGIA, VEM DA GRÉCIA CLÁSSICA econsiste em ter dividido as coisas humanas, o observador, das coisas naturais,aquele que é suposto explicá-las, ou seja, domesticá-las, trazê-las para o ladoda cultura.
Essa crença de que existe umacultura e uma natureza, como realidades partidas embora articuladas fundamentatoda a nossa maneira de estar no mundo e de o explicar, mesmo quando percebemosa ilusão e queremos escapar-lhe: está impressa na própria moldura do nosso discurso.
Correlativas a esta crença são aideia de origens e a ideia de primitivo, de homem primitivo, se quisermos.Encontrar as origens das coisas é, segundo a nossa fantasia, explicar ecompreender a sua razão de ser. Por isso a nossa cultura se instala na ideia dehistória.
A HISTÓRIA É A NARRATIVA DE COMO É QUE AS COISAS SE TORNARAM NO QUE SÃO (ouimaginamos serem) HOJE. Toda a história, por mais "científica" e"objectiva" (que as pessoas ligam a neutral) que se queira, é sempreuma justificação a posteriori.
Origens, narrativa histórica, eevolução estão pois interligadas ideologicamente.
A noção de um primitivo que eraprimeiro que tudo um ser natural e se foi tornando "progressivamente"um ser cultural é o "joelho" , a articulação conceptual, de todo estemecanismo explicativo. Não é apenas a ideologia do racismo e da xenofobia: é aideologia ocidental no seu coração.
NAS ORIGENS HAVIA A NATUREZA EHAVIA O HOMEM PRIMITIVO, o homem da natureza, o que não fazia mais do que tomarda natureza o que esta lhe dava: o caçador-recolector e, para muitos, opredador, quer dizer, o que só consumia e não produzia (tudo ideias e conceitosque ressumam a ideologia justificativa da nossa própria sociedade).
A história (incluindo apré-história) é a narração de como desse "éden" ou paraíso o serhumano se foi distanciando dos animais, da bondade natural (que podia incluiralguma rudeza - daqui a oscilação entre o mito do bom e do mau selvagem, duasfaces da mesma moeda), de uma certa inocência, etc., e adquirindo a manha e aduplicidade do ser humano civilizado, o ser reflexivo e bipartido (no mínimo),e portanto necessariamente interessado e interesseiro, individualista, etc.
Só para se ter uma ideia daextensão e abrangência desta ideologia, veja-se as ideias de Zizek, nomeadamentesobre os mitos de origens, tal como são resumidas na entrada relativa ao autor(por Matthew Sharpe) da The Internet Encyclopedia of Philosophy, em que mepermito inspirar. Ver: http://www.iep.utm.edu/z/zizek.htm
Quer dizer, A NATURALIZAÇÃO DASORIGENS, naturalizando-as, É SEMPRE UM ECRÃ PARA DISFARÇAR A IDEIA DE QUE TAISORIGENS NUNCA EXISTIRAM (nem num determinado momento nem de forma paulatina),mas se deram antes talvez cadeias complexas de acontecimentos que marcaramrupturas a diversíssimas escalas não coincidentes em tempo e espaço,instalações de ordenamentos e de contra-ordenamentos, isto é, políticas, e quetais políticas, tais confrontações e tais tensões pressupunham desequilíbrios,outras formas de ruptura, sempre "anteriores" e tão diversificadasque não tem sentido tentar colocá-las numa ordem temporal linear e inteligível(única ou múltipla, são variantes do mesmo). Não tem sentido pensá-las nessequadro conceptual.
A HISTÓRIA É SEMPRE UMA FICÇÃO,MESMO QUE SEJA UMA FICÇÃO NECESSÁRIA À NOSSA "PAZ DE ESPÍRITO" e à nossaexplicação do mundo em termos de imaginação do antecedente, em termos de opensarmos como algo que ultrapassa a sensação absurda de ele poder ter existidoantes da consciência de cada um, que o pensa.
O "NEOLÍTICO" É AFANTASIA DA ORIGEM DA SOCIEDADE HUMANA, da passagem de um regime de predação erecolha para um regime de produção e de acumulação, quer dizer, de um sistemade indiferenciação para um sistema de diferenciação. É o começo da história,como o francês Jean Guilaine não deixou de insistir em todos os seus livros.
De certo modo, ao domesticar anatureza, os animais, as plantas, ao começar a produzir, a trabalhar, aacumular riqueza, a conseguir excedentes e a poder dar-se ao luxo de fazergrandes obras e de desenvolver uma ordem e uma hierarquia, o homemdistanciou-se do animal. Era o que já diziam os antigos gregos, mas o quetambém vem na nossa tradição bíblica anterior. De facto, a humanidade, aotornar-se tal, quer dizer, ao entrar na ordem do chamado "simbólico"(outro conceito a discutir), e portanto dominar a linguagem, ficou tambémcindida como conta outro mito, o mito de Babel ou da diversidade das línguas.
A LINGUAGEM UNIU, PERMITIU SOCIABILIDADES, MAS DIVIDIU IGUALMENTE, e de maneiraradical, ao separar os sentidos e ao exigir a tradução. O conceito de traduçãoé outro ponto fundamental da nossa cultura.
NO FUNDO O "HOMEM CIVILIZADO" OQUE FAZ É TRADUZIR, TRADUZIR

EM SEU PROVEITO PRÓPRIO. Traduzir materiais e emgeral as realidades da dita natureza em matéria-prima e obra, traduzir espéciesselvagens em espécies produtivas, traduzir as igualdades naturais emdesigualdades naturalizadas, isto é, aceites como indiscutíveis, traduzir oterritório em paisagem, traduzir o meio em natureza que ele controla, traduzira língua do outro em linguagem inteligível, quer dizer, compreensível edomesticável, traduzir em suma tudo o que era dado, em sinais do que é precisodomar, domesticar. Traduzir finalmente excedentes do grupo em mais-valias deuma elite.
E assim se explica a necessidadeda divisão das pessoas em categorias e mais tarde em classes, em incluídos eexcluídos, enfim, a heterogeneidade social em termos de hierarquização e dediferenciação funcional. Guilaine tinha razão em dizer que esta é a origem dahistória: para a nossa ontologia, sem "neolítico" não teria havidoacontecimentos, mas apenas natureza, repetição do mesmo ou cadência tão lentaque se não nota a uma escala humana. Portanto, não teria havido propriamentehomem (ser humano) como tal.
Não há filosofia, até hoje, queeu conheça - e conheço pouco, ai de mim - que não se reporte mais cedo ou maistarde a uma espécie de "caixa negra", de um embraiador do que somos.E essa caixa negra, esse embraiador, é a natureza e o homem primitivo vivendonela.
SE QUISERMOS SOBREVIVER NESTEMUNDO TERRESTRE TEREMOS PROVAVELMENTE QUE CONSTRUIR UMA OUTRA FILOSOFIA DANATUREZA e da nossa relação com ela. Teremos que abandonar a mitologia do"neolítico" e toda a sua panóplia de míticas invenções técnicas emutações epistemológicas.
O NEOLÍTICO NUNCA EXISTIU a nãoser na invenção do evolucionismo do séc. XIX, de que estamos eivados, até hoje.É uma fantasia da origem da cultura e da civilização moderna, ocidental eeuropeia, que depois aliás se tentou aplicar a outros continentes com manifestomal-estar ou mesmo impossibilidade. Em muitos pontos do mundo (Áfricasubsariana, Américas, etc.), nem mesmo a imaginação evolucionista utiliza apalavra "Neolítico". O Neolítico é uma narração bíblica, com a suamatriz no Próximo Oriente (terra de origem dos monoteísmos históricos).
Ponto.
O processo de relação dos seres humanos com as plantas, com os animais, comseres vivos ou inanimados, com a matéria inerte, esse processo (ou multiplicidadeinfinda de processos) deve ser descartado das ideias feitas sobre domesticação.
A DOMESTICAÇÃO É UM CONCEITOLATINO QUE VEM DE "DOMUS", casa, como mostrou Philippe Descola e pressupõe umadiferença entre "home" (lar, o espaço doméstico, as zonas envolventesque o ser humano "controla", e não apenas "house" como umlugar de funções) e "wild", algo que o ser humano teme e onde fazincursões, algo que está povoado de perigos e de seres estruturalmente,ontologicamente diferentes de nós.
Ora, os estudos de etologia, deecologia, de antropologia têm vindo a desmentir essas barreiras e a mostrar ocarácter etnocêntrico dessas classificações e conceptualizações. Mas mesmotentando ultrapassá-las, a matriz do nosso raciocínio continua a ser a mesma:estamos por assim dizer gramaticalizados (como diria Bernard Stiegler) destemodo, e não é a imaginação crítica do pensamento individual que pode sair damatriz que o informa. Só o esforço colectivo de desmistificação, dedesvendamento das fantasias. Daí a importância da matriz psicanalítica, na suavertente verdadeiramente subversiva, isto é, como ferramenta de abertura anovas possíveis formas de "gramaticalização".
Ainda recentemente uns colegas gentilmenteme convidaram para participar num grande livro sobre o Neolítico da Europa.
Qual não foi o seu espanto quandolhes disse: percebo por que se aventuram a tal projecto, que é de grandeprestígio, e que é fulcral para consolidar a ideia de que existe uma Europa,uma cultura europeia, e que essa cultura e unidade (na heterogeneidade)mergulha as suas próprias raízes na água das origens.
Mas eu não acredito já nisso. Epor isso não posso participar, enchendo mapas e tabelas cronológicas comartefactos, tipos de sociedade e outros construtos do meu espírito, eenfaixando tudo numa narrativa do devir, mais ou menos verosímil.
Cansei-me de contar histórias, ouentão anseio por novas fantasias.

Vítor Oliveira Jorge


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 180
Ano 17, Julho 2008

Autoria:

Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP
Vítor Oliveira Jorge
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, DCTP- FLUP

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