Vamos tecer alguns comentários ao novo enquadramento legislativo que gere as necessidades educativas especiais, desde uma perspectiva dos cuidados de saúde primários. A nossa reflexão partirá da experiência de psicólogo clínico, no âmbito da saúde escolar. A anterior moldura legislativa consagrava que "em casos mais complicados" (sic n.º 2 do artigo 14 do Decreto-lei 319/91) existisse uma colaboração entre o Serviço de Psicologia e Orientação e a Equipa de Saúde Escolar, consubstanciada numa proposta formal a ser implementada na prática pelo professor de educação especial. Ou seja, em casos que escapassem à competência do professor, era a equipa do SPO, coadjuvada pela Saúde Escolar, que se pronunciaria sobre a situação. A lei previa uma articulação entre a saúde e a educação sempre que, no processo educativo, as medidas previstas se revelassem insuficientes. Em princípio, a educação só solicitaria a saúde depois de um processo pedagógico mais ou menos complexo? Mas este funcionamento foi revogado. O que a nova lei prevê, em termos da interface saúde educação? O diploma concede ao conselho executivo a prerrogativa de solicitar pareceres aos centros de saúde, entre outras instituições. Confere-lhe ainda o poder de não aprovar o processo, remetendo o "despacho justificativo da decisão" - "à entidade que o tenha elaborado". Em última instância, reconhece às chefias escolares o poder de se pronunciar sobre relatórios médicos ou de vários profissionais da saúde mental? No novo figurino, as esferas educativas podem solicitar, muito mais cedo no processo, as esferas da saúde, remetendo estas a posições passivas. Tanto mais que o diploma parece ignorar a existência de equipas de saúde escolar. Aqui impõe-se um outro assunto: a natureza das necessidades educativas especiais. O legislador é aqui muito claro: "...dos alunos com limitações significativas ao nível da actividade e da participação num ou vários domínios de vida, decorrentes de alterações funcionais e estruturais, de carácter permanente?". Mas? as perturbações de carácter permanente são relativamente raras na infância e adolescência, o que deixará muitos alunos de fora de qualquer apoio. Aliás, só se prevê a formação de escolas de referência para alunos surdos e alunos cegos ou com baixa visão. Finalmente, servindo de corolário a todos estes desmandos, prevê-se que o relatório técnico-pedagógico constitua parte integrante do processo do aluno. Relatório esse que terá explícito os resultados da avaliação, com referência à Classificação Internacional da Funcionalidade (CIF) e, recordamos, a ideia das perturbações de carácter permanente. Se pensarmos um pouco sobre as consequências deste procedimento, poderemos antever as catástrofes que lhe poderão estar associadas, pois muitos alunos serão rotulados desde o jardim-de-infância. Outro aspecto a salientar, é que a CIF aconselhada não é a versão dirigida a crianças que, aliás, está ainda em fase de estudo, mas a utilizada com adultos. Adiante? O diploma prevê o destino dos relatórios técnico-pedagógicos, mas não o dos relatórios elaborados por outras instituições. Em nome da protecção de dados, não se perderia nada em explicitar os procedimentos a adoptar em relação a este assunto, até porque se trata de informação sujeita a segredo clínico. Não menos relevante, existe a imposição da utilização da CIF a todos os profissionais envolvidos neste processo. No fundo, trata-se de uma medicalização das necessidades educativas especiais, com perda da vertente educativa e de desenvolvimento da criança/adolescente. O decreto só se aplica a situações de carácter permanente e, tanto como nos é dado a entender, trata-se de diagnosticar casos, competência que pertence ao foro da classe médica. Postas todas estas considerações, pouco resta mais para dizer, ainda menos para concluir. Esperamos, sinceramente, que o diploma seja muito mais funcional e sensato nas propostas educativas, sobre as quais não incide a reflexão deste texto.
Rui Tinoco
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