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Do voluntarismo ao aventureirismo: Constatações sobre política educativa

No último artigo que subscrevemos na «Página» tentamos demonstrar como o voluntarismo iluminado, enquanto modo de acção política, se afirma por um tipo de autoritarismo pedagógico que se justifica em função da superioridade de um determinado tipo de conhecimentos técnicos que não admite discussão ou até interpelações produtivas.
É esse autoritarismo que olha para as providências cautelares interpostas pelos sindicatos dos professores como uma espécie de acto de diletância jurídica perpetrada pelos tribunais que as acolheram. Revela-se, assim, a outra faceta do voluntarismo iluminado, a do aventureirismo político-pedagógico que se alimenta da crença que há apenas um percurso a fazer, aquele que esse mesmo voluntarismo determina como o percurso inevitável. Sem pretendermos ser exaustivos, sempre poderemos considerar como manifestações de um tal aventureirismo, o projecto da Escola a Tempo Inteiro, a cada vez menos tímida intenção de municipalização da Escola Pública, o processo de avaliação de desempenho dos docentes ou a nebulosa e anunciada reforma curricular do 2º Ciclo. Faz-se, faz-se o mais depressa possível, mostra-se o que se faz e avança-se para a medida seguinte, no estilo consagrado do disparar primeiro para não ter que perguntar depois.
A ponderação prévia, de acordo com este estilo, é um luxo para intelectuais narcísicos que sacrificam as necessidades do país à sua reflexão paralisante, a qual deixa, assim, de ser valorizada como uma necessidade em função da qual se podem evitar erros, sobretudo quando estes se tornam difíceis de reparar. Na «Escola a Tempo Inteiro», por exemplo, o programa foi lançado, os problemas e os equívocos abundam, mas qualquer tentativa de discussão sobre o mesmo tende a ser vista como uma manifestação de insensibilidade face às necessidades das famílias, como se fosse impossível conciliar as respostas perante tais necessidades com uma proposta capaz de respeitar as necessidades das crianças, as singularidades dos contextos e a dimensão educativa dos projectos de intervenção a promover. As objecções que se colocam à avaliação de desempenho dos docentes tendem a ser entendidas, então, como manobras dilatórias dos sindicatos e não como uma manifestação decorrente de um entendimento distinto do projecto de avaliação defendido pelo governo. Uma manifestação que, nomeadamente, poderá ser abordada como expressão do investimento na construção de um projecto que possa constituir um instrumento quer ao serviço da construção das escolas como organizações aprendentes, quer, concomitantemente, ao serviço do desenvolvimento profissional dos educadores e dos professores. No tempo em que vivemos, um tempo onde a ambiguidade semântica se afirma como uma estratégia de silenciamento das tensões e contradições que atravessam as nossas discussões e os nossos discursos, parece que estamos todos no mesmo barco, mesmo que se reconheça existirem algumas dificuldades de comunicação, apesar de, na verdade, não estarmos. Para o Ministério da Educação, muitos dos problemas com os quais o confrontamos têm a ver com a recusa de uma abordagem da avaliação de desempenho que seja circunscrita a uma actividade de controlo burocrático da actividade docente, quando esta avaliação deveria constituir-se, na nossa opinião, como um instrumento de construção de um espaço de inteligibilidade profissional partilhada e institucionalmente mediada. Por isso, é que não podemos andar depressa a queimar etapas, até porque, em termos operacionais, sabe-se menos sobre o assunto em causa do que aquilo que alguns especialistas dão a entender que sabem e dominam. A municipalização da educação é outra das aventuras sem rumo que anda a ser preparada nos corredores do poder, em nome de uma autonomia que pode conduzir à desqualificação da Escola Pública, por via da desresponsabilização do Estado como parceiro a envolver no seu governo, enquanto depositário de compromissos políticos cuja alienação terá que ser vista com evidente apreensão, pelo menos da parte de todos os que se situam no campo político dos projectos de educação democrática. A reforma curricular do 2º ciclo, cujo anúncio envergonhado já foi feito, é a última manifestação de aventureirismo deste governo. Não se podendo deixar de considerar a importância de alguns dos argumentos a favor desta mesma reforma, importa discutir, contudo, as condições, a viabilidade e as implicações da mesma, de forma ampla e responsável. O aventureirismo terá que ser entendido, assim, como uma consequência do voluntarismo inspirado, acabando por ser, afinal, quer uma fonte de mal-estar e de sofrimento dos professores, quer uma fonte de novos problemas organizacionais e pedagógicos que se acrescentam aos problemas educativos tradicionais para cuja resolução seria suposto que contribuíssem.
O que fazer com esta herança? Será que estamos condenados a continuar a resolver os problemas do passado, em vez de investirmos na construção de um presente educativo mais significativo e congruente com os valores de sociedades que se afirmam como democráticas?

Ariana Cosme
Rui Trindade


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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