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Esconder o real

Devemos afastar os mais novos do confronto com a dor? Devemos evitar que eles convivam com crianças diferentes a nível físico ou mental? Talvez o mais fácil seja conduzi-los dentro de um ambiente tranquilo, sem episódios de sofrimento e afastados de situações que exijam posturas activas de solidariedade. Será mais fácil, não é o mais sensato.
Será mais fácil, não é o mais adequado para os ajudar a crescer (bem). Lembro isto a propósito de uma reportagem exibida na SIC. "Mundo ao contrário" é um trabalho assinado pela jornalista Cristina Boavida que retrata o dia-a-dia de crianças com cancro. Não é fácil de ver. Incomoda. Muito. Ninguém poderá ficar indiferente à imagem daquelas crianças frágeis, com os líquidos a entrar no corpo através de uma agulha cravada em braços franzinos. Um dos pais afirma, a dado momento, isto: "é uma imagem que não cabe no cenário... Uma imagem terrível".
Tem razão. As crianças que a jornalista escuta revelam uma extraordinária coragem. Aqueles que nunca contactaram com esta realidade não serão capazes de perceber integralmente o que estas pessoas dizem. Suspeitamos que tudo isto implica grande sofrimento, mas, quando a reportagem termina, lá ficaremos entretidos com a neve na Serra da Estrela, com o resultado do jogo de futebol ou com os episódios da novela? Aqueles utentes do Instituto de Oncologia continuarão a receber tratamentos dolorosos. Vêem o cabelo a desaparecer, o corpo a emagrecer e a vida a perder sentido. Será melhor ficar por aqui e passar a outro assunto? Será mais fácil, não é o mais acertado.
Existem muitas crianças com cancro nas unidades de oncologia, muitas crianças nos hospitais ou em casa com diferentes síndromes que lutam a todo o custo por uma vida "normal". E isso não nos pode passar ao lado. Como se fosse um mundo à parte. Escolas, famílias, círculos de amigos, associações? todas estas redes sociais poderiam integrar estas realidades nas discussões que promovem. Preocupamo-nos tanto com a saúde, que tendemos a censurar as doenças. Até podemos achar cansativas as conversas daqueles que trazem estes mundos para perto de nós. Ainda que tão-só através de palavras. Não queremos saber. Mas deveríamos ver para compreender estes universos de gente de grande coragem que segura com determinação o fio que os prende à vida. Reconheço que a reportagem da SIC me custou a seguir. Todos os casos me incomodaram muito, particularmente o daquele jovem rapaz que, depois dos tratamentos de quimioterapia, era obrigado a enfiar-se numa ambulância dos bombeiros para percorrer centenas de quilómetros até chegar a casa. Como companhia tinha uma tia idosa. Fiquei a pensar na sua vida para além do hospital. Será que tem apoio na escola? Será que os colegas o ajudam? Será que os professores sabem o que este rapaz passa, quando está no Instituto Português de Oncologia? Será que os amigos têm tempo para ele? Temo as respostas. Em tempos, conheci uma rapariga a quem foi diagnosticado um cancro no peito. Foi operada com sucesso, mas, porque a sua idade rondava os 30 anos, teve de fazer quimioterapia. Era engenheira. Os tratamentos extorquiram-lhe o cabelo e, em troca, colocaram em cima de si alguns quilos a mais. Não eram as mutações do corpo que a perturbavam. Aquilo que a abalava era o afastamento dos amigos. Nas conversas que com ela mantive, isso tornava-se recorrentemente central. Estranho, porque as suas amizades compunham-se com gente adulta com um curso superior. É claro que a escola, tal como a família, não poderá ser uma espécie de sala de convívio, albergando em permanência gente em sofrimento e situações de dor. No entanto, não poderemos passar por cima destes tópicos como se eles não existissem ou fossem apenas uma tragédia que se abateu sobre os outros e que convém afastar de nós. "Educar", como o próprio étimo fixa, significa "conduzir". E essa condução não pode, quando nos dá jeito, enveredar por atalhos para evitar certas visões. A realidade não é preto e branco, mas também não é sempre pintada com cores risonhas. Desviar os mais novos e retirarmo-nos a nós próprios destas dimensões da vida é querer esconder o real.

Felisbela Lopes


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 176
Ano 17, Março 2008

Autoria:

Felisbela Lopes
Professora de Jornalismo na Universidade do Minho
Felisbela Lopes
Professora de Jornalismo na Universidade do Minho

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