Mariano Enguita, em entrevista à PÁGINA, desconstrói algumas das análises clássicas marxistas
Mariano Enguita é professor catedrático de Sociologia e director do Departamento de Sociologia e Comunicação na Universidade de Salamanca, Espanha. Para além destas funções, exerce a direcção do Observatório Social de Castilla y León e coordena o Grupo de Análise Sociológica. Foi professor ou investigador convidado nas universidades de Stanford, Wisconsin-Madison e Berkeley (Estados Unidos), Lumière-Lyon II (França), no London Institute of Education e na London School of Economics (Grã-Bretanha), e conferencista em dezenas de outras. É ou foi assessor de diversos organismos dedicados à investigação e à educação, entre os quais a European Science Foundation, assim como de outras instituições e organizações. Autor de mais de duas dezenas de livros, de entre os quais se poderão destacar "La profesión docente y la comunidad escolar", "Alumnos gitanos en la escuela paya", "Economía y Sociologia - ¿Es pública la escuela pública?" e "Educar en tiempos inciertos", cerca de uma centena de artigos em revistas académicas e capítulos em obras colectivas, Mariano Enguita tem como actuais objectos de investigação sobre educação e desigualdades, sobre a organização dos centros de ensino e a profissão docente, imigração, protecção social. Convidado a participar no IV Ciclo de Conferências sobre Políticas Educativas e Curriculares ? Abordagens Críticas e Pós-Estruturais, intitulado "Marxismo e Educação: Repensar a Educação Pública ? Democracia e Justiça Social", que decorreu na Universidade do Minho entre os dias 4 e 6 de Junho (ver texto de introdução "(Re)pensar o Marxismo", na página 21), a PÁGINA aproveitou a ocasião para entrevistar o investigador sobre este tema tão mal amado no actual meio académico e político.
Enquanto cientista social qual é a sua relação com o Marxismo?
Eu considero Marx um dos fundadores da Sociologia. Se dessacralizarmos a sua imagem, temos um sociólogo que nos legou diversas sugestões sobre o mundo da educação, pelo que o considero mais delicado no sentido em que tem implicações políticas e um conteúdo ideológico que não têm outros sociólogos. Por outro lado, uma coisa é o fracasso do marxismo ortodoxo e do comunismo, e outra é o facto de Marx continuar a ser um dos fundadores da sociologia e um dos seus representantes clássicos mais significativos.
No meio intelectual e académico de muitas sociedades o Marxismo já foi um pensamento dominante. Que lugar ocupa hoje?
Não acho que ele tenha sido um pensamento dominante. O Marxismo foi um pensamento muito divulgado num período em que pensar significava marcar uma posição, em particular no final das ditaduras em Espanha, Portugal e Grécia, e hoje é um pensamento com alguma difusão no meio académico de muitos países. No meio académico anglo-saxónico, por exemplo, ele tem uma presença que não se reflecte em absoluto, porém, na sociedade.
Então que papel está hoje reservado ao Marxismo?
Isso é o mesmo que perguntar que papel está reservado ao Weberianismo, ao Parsonianismo, entre outros? É uma pergunta feita de uma perspectiva política e não académico-científica. Na perspectiva académica e científica não se pode colocar a questão nesses termos, deve-se colocá-la em termos de questões substantivas, entrecruzando-a com outros autores, no sentido de ajudar a explicar um determinado fenómeno.
O Marxismo está hoje identificado com práticas políticas falidas. A crítica às experiências falhadas do Marxismo já foi feita ou está ainda por fazer?
Eu penso que ela foi feita de forma insuficiente. Apesar das muitas análises críticas ao Marxismo ? nomeadamente a que decorreu da crise política dos países de Leste, no final dos anos oitenta ?, existe sobretudo uma crítica que aparece associada praticamente à sua origem, e sobretudo desde a revolução russa, onde assumiu um papel determinante no movimento socialista que se separa da corrente bolchevique. O Marxismo fez uma crítica não muito exacta mas muito inteligente do capitalismo, a uma forma de poder baseada na desigualdade da posse dos meios de produção. Mas, ao mesmo tempo, foi absolutamente incapaz de fazer uma crítica das duas outras grandes bases do poder económico. Uma é o poder organizacional ? mesmo naquele tempo havia já uma polémica permanente entre marxistas e anarquistas, entre Marx e Bakhunin, que faziam ambos a crítica da autoridade. Para fazerem a crítica da autoridade, porém, eles próprios defendiam uma forma de mercado, baseada na ideia proudhoniana de produção independente. Uns e outros, no entanto, dada a sua condição de intelectuais, foram incapazes de fazer uma crítica à distribuição desigual do conhecimento. Actualmente, à medida que entramos numa sociedade da informação, a forma ascendente de poder já não reside na posse dos meios de produção nem no exercício da autoridade no seio das organizações mas na posse do conhecimento escasso, diferencial, necessário a terceiros. Para mim, esta é a principal insuficiência do Marxismo analisado de uma perspectiva contemporânea. Por outro lado, o Marxismo fez uma crítica à propriedade individual vendo o seu oposto na propriedade pública, não reparando que isto consolidava a seguinte forma de poder: a autoridade e o poder burocrático do Estado. O monstro social e político dos sistemas comunistas surge a partir do Marxismo, mas isso não significa que Marx tivesse um plano para impor uma qualquer forma de ditadura ? pelo contrário, essa forma de poder foi instaurada por pessoas que tinham resistido à ditadura, que tinham uma ideologia libertária.
Partindo dessa análise, o Marxismo perdeu ou não a sua validade histórica e científica?
Perdeu muita, o marxismo é uma explicação muito parcial da realidade. E toda a meia verdade é, ao mesmo tempo, uma meia mentira. O Marxismo, mesmo com todos os seus acertos, não foi nunca nem mesmo meia verdade. Eu diria que o Marxismo foi capaz de explicar cerca de uma sexta parte da economia; desta sexta parte ele foi capaz de explicar uma terça parte das desigualdades; e desta terça parte das desigualdades ele explicou um terço das desigualdades de classes. Multiplicando os factores (3×3×6) chega-se à conclusão que o marxismo talvez tenha sido capaz de explicar 54 avos da sociedade, que na verdade era a sua parte mais visível, caracterizada por um período de mudança marcado pela industrialização, pela polarização, um novo fenómeno que impressionava não apenas Marx mas todos os sectores da sociedade. O princípio da sociologia é caracterizado sobretudo por uma espécie de nostalgia face a uma sociedade harmónica, integrada, anterior a esta. E este sentimento é evidente mesmo na literatura, através da personagem de Frankenstein, que representa a expressão do horror das classes médias cultas face a um novo tipo de ser humano que estava a ser criado pela industrialização. Por outro lado, Marx desmentiu-se a si mesmo pelo efeito da sua própria teorização, aquilo que na sociologia se designa por "self-denieing prophecy", ou "profecia que se nega a si mesma", já que o Marxismo anunciou que seria a crescente proletarização e empobrecimento da classe operária que levaria à revolução. A resposta das sociedades ocidentais foi a criação do Estado social, o Estado Previdência, concretizado na criação de direitos sociais, na integração social, na garantia de acesso mínimo aos recursos e à riqueza, e neste sentido ela acabou por tornar-se mais real do que as próprias previsões de Marx. Mas em termos gerais, a diferença entre a sociedade e a sua relação com os seus teóricos é que a sociedade é reflexiva. Darwin decifrou a natureza, mas a natureza não leu Darwin. Porém, a sociedade leu Marx, não apenas os operários e os comunistas mas também a burguesia e as forças conservadoras, e reagiu a isso através de políticas que tornavam mais difícil e mais desnecessária a resposta que Marx queria pôr em prática.
Marxismo e neoliberalismo: duas enormes simplificações
Acha que se pode falar hoje da existência de um neo-marxismo?
Eventualmente, mas não acho que tenha muito interesse. O que interessa é procurar compreender a sociedade, e para isso é necessário pegar nos contributos de Marx e de outros. Não faz sentido fazer um epiciclo em redor do Marxismo para tentar manter a sua evidência. O mais interessante no Marxismo, no que se refere aos seus temas mais gerais, é a ênfase posta na economia e no conflito. Porém, a sua lição de economia é muito simplificada e a sua visão do conflito muito unilateral. Poderemos conservar a ênfase na economia e no conflito, mas ao mesmo tempo procurar uma visão muito mais compreensiva e multi-dimensional. Eu não tenho interesse em saber se isso é mais ou menos marxista, se é ser anti-marxista, se é mais marxista do que o próprio Marx?
Apesar disso, o Marxismo foi lido e utilizado como uma concepção da totalidade do mundo. Pensa que o marxismo continua a ser olhado como uma outra concepção da totalidade do mundo ou reduz-se a um de outros contributos para ajudar a explicar as partes do todo?
Acho que Marx foi mais utilizado do que lido. E nesse sentido recomendaria a leitura dos textos mais esquecidos e mais inacessíveis de Marx, porque literariamente são fantásticos. Ele escrevia muito bem, era um economista brilhante, vale a pena lê-lo. O segredo do seu êxito foi ser um sistema totalizante mas ao mesmo tempo muito simplificado. A ideia de que se pode explicar tudo com dois ou três conceitos básicos é muito tentadora, especialmente para os jovens. Mas isto não é verdade, a realidade é muito mais complexa, não há hipótese de reduzi-la a uma teoria unilateral.
Na sua opinião, que contributos pode dar o Marxismo para a desconstrução do neoliberalismo?
Em primeiro lugar diria que o problema do marxismo e do neoliberalismo é semelhante, porque são ambos duas enormes simplificações. Não tem mais valor tentar explicar o mundo na óptica do primeiro capítulo do manual de economia da faculdade, que é o que faz o liberalismo, ou procurar fazê-lo através do primeiro capítulo de "O Capital" ? que hoje está praticamente arredado da formação universitária. O marxismo tem muitos elementos que podem ser utilizados para fazer a crítica das simplificações do neoliberalismo, mas actualmente talvez seja mais interessante utilizar o neoliberalismo como modelo de crítica das simplificações do marxismo ? pelo menos no meio universitário.
À luz da teoria marxista, quais pensa serem os principais perigos representados hoje pelo neoliberalismo?
Paradoxalmente, o maior perigo do neoliberalismo é, tal como o Marxismo, apresentar uma explicação redutora e economicista da realidade. Depois, a sua visão determinista, expressa, nomeadamente, no argumento de que apenas o comércio pode salvar da pobreza. O problema do neoliberalismo, na minha opinião, é um problema da globalização ? facto que não é propriamente novo, porque um processo semelhante ocorreu antes da formação do Estado nacional e social. A grande questão é que hoje temos uma globalização económica, ecológica, criminal, militar, cultural, etc., sem que exista, simultaneamente, uma estrutura política global que permita corrigir os seus efeitos mais danosos. O capitalismo, os meios de comunicação e as tecnologias ultrapassam as fronteiras nacionais, pelo que temos diante de nós a tarefa de criar uma comunidade e estruturas políticas globais ? algumas das quais já existem, como é caso das Nações Unidas, do Tribunal Penal Internacional, das organizações não governamentais de âmbito mundial. O liberalismo é apenas uma má resposta a este desafio, uma resposta que rejeita o compromisso político para se basear exclusivamente na economia e no funcionamento do mercado. A outra má resposta, na minha perspectiva, seria a criação de um governo mundial centralizado, utilizando a fórmula nacional à escala global.
O conhecimento como forma de poder ascendente
Que contributos podem esperar hoje do pensamento marxista os agentes educativos e todos aqueles que, de uma forma ou outra, se interessam por esta área?
Penso que existem duas considerações importantes respeitantes ao marxismo que os profissionais e os agentes educativos devem ter em conta. A primeira é que o contributo mais importante do marxismo para o campo da educação não foi feita por Marx nem pelo marxismo ortodoxo, mas pode ser pensada a partir dele, que é fazer uma análise da educação semelhante à que Marx fez da produção. Quanto a mim, um dos aspectos com maior valor na crítica da produção capitalista de Marx é a ideia de que as relações de produção não se reduzem a si mesmas, devendo incluir uma análise da relação prática do processo de trabalho. Neste sentido, o aspecto mais importante do chamado materialismo histórico é a ideia de que as práticas sociais determinam em grande medida a maneira como pensamos. Aplicada à educação esta ideia assume grande importância, já que habitualmente se considera o conteúdo como o principal problema do processo educativo. No entanto, podemos ter um conteúdo que aponta numa direcção e uma organização da sala de aula e práticas pedagógicas que apontam na direcção oposta. Penso, por isso, que um dos maiores contributos do marxismo para a educação, directa ou indirectamente, é a possibilidade de ele nos permitir a análise prática das relações sociais do processo de ensino-aprendizagem. Esta é a boa notícia.
Em que consiste a má notícia?
A má notícia é que o Marxismo foi insensível a outras formas de desigualdade extrínsecas ao capitalismo. Apesar de a sociedade se estruturar em classes sociais, tal como defende Marx, essa hierarquização não assenta exclusivamente na propriedade ? ou na distribuição desigual da propriedade ?, dependendo igualmente de outros dois factores: da autoridade e do conhecimento. De facto, um dos grandes factores que está na origem da estruturação de classes é a autoridade, ou seja, a posição não no mercado, como acontece com a propriedade, mas nas organizações. A autoridade é a forma de poder específica das organizações, a propriedade é a forma de poder do mercado. A autoridade será talvez actualmente o elemento mais importante da estratificação social. As pessoas não se apresentam habitualmente a si próprias como capitalistas ou não capitalistas mas sim pela posição que ocupam na hierarquia organizacional. O segundo factor, que tem o mesmo valor quer nas organizações quer no mercado, é o conhecimento. Não o conhecimento generalista mas o conhecimento escasso, economicamente útil. É uma forma de poder indirecta, mas um poder. E se este tipo de conhecimento é actualmente uma forma de poder ascendente, irá sê-lo muito mais no futuro. Uma sociedade que se diferencia pelo seu nível de conhecimento, que num determinado período foi considerado uma utopia, está a caminho de concretizar-se. Esta é a utopia platónica, a república governada pelos filósofos. Esta é a utopia de More. Esta é a utopia em geral.
Será ela uma utopia positiva?
Não estou certo de que essa estratificação social baseada no conhecimento seja melhor, pelo contrário, pode ser muito pior do que uma sociedade estratificada em torno de outros critérios, ou de vários critérios, do qual o conhecimento é apenas um. Porque, afinal, a capacidade de aquisição de conhecimento está inscrita, em grande medida, na própria pessoa. Qualquer pessoa pode, em princípio, acumular capital social, ou pode ter sorte ou uma boa ideia e enriquecer no mercado. A aquisição de capital cultural é muito mais difícil de conseguir porque exige muito tempo e está dependente, entre outros factores, da origem social ou do meio social em que se está inserido. Ao mesmo tempo, enquanto educadores e profissionais da educação, consideramos justa a nossa posição de autoridade face aos alunos e de vantagem relativamente a outras profissões, porque tudo o que é educação é bom. Nessa medida, o marxismo desempenha hoje, em muita medida, o papel de uma retórica através da qual se escondem os interesses profissionais daqueles sectores que criticam a autoridade, e sobretudo a propriedade, mas nunca criticam a sua forma específica de poder, que é o conhecimento. Este é o perigo. Eu acho que qualquer educador que encare o marxismo tem de fazê-lo com alguma dose de desconfiança. Porque razão os educadores criticam o neoliberalismo? Há algum entre eles que esteja contra o facto de os carros serem importados do Japão? Nenhum. Todos querem automóveis bons e baratos. E todos sabem que produtos baratos vêm habitualmente de outras partes do mundo. E se não sabem tão pouco se preocupam. Como dizem os neoliberais, a maioria limita-se a votar com os seus euros. Ultimamente, a manifestação de posições face ao neoliberalismo coincidiu com a discussão do tratado de liberalização dos serviços na União Europeia, a chamada directiva Bolkenstein, ou quando se debate a liberalização dos serviços que prestamos. Somos neoliberais para comprar e estaticistas para vender. Assim não pode ser... Nestas circunstâncias, o marxismo converte-se numa ideologia no sentido em que mistifica a posição de classe de um grupo social.
Está hoje posta em prática uma doutrina de eficiência social que condiciona em larga medida os objectivos educacionais. Pode encontrar-se no marxismo uma ferramenta para a desconstrução desta e de outras doutrinas que condicionam a construção do tecido social?
O que precisa de ser desconstruído, na minha opinião, é o discurso corporativo docente sobre questões como a eficiência, a avaliação, etc. O problema da eficiência, ao contrário do que diz a retórica docente, não passa por conseguir muitas aprovações, notas muito elevadas ou um grande número de alunos a chegar às universidades. A qualidade do sistema educativo é hoje muito questionado e tal não se deve ao facto de ele produzir mais ou menos alunos que se tornam médicos ou engenheiros. Em qualquer sistema educativo, todas as escolas têm, a priori, um nível semelhante; e as diferenças entre os professores podem ser acentuadas. Fazendo uma média, porém, chegamos à conclusão que as diferenças não são assim tão significativas. No entanto, alguns professores são muito bons e outros muito maus. A pergunta é porquê? A resposta costuma ser invariavelmente a mesma: "eu não tenho os alunos daquela escola rica ou de um bairro favorecido". Isso é um absurdo. A questão não passa por determinar se uma escola situada num bairro pobre chega mais ou menos longe do que uma escola situada num meio favorecido, porque elas não são comparáveis. No entanto, é possível determinar até que ponto uma escola acrescenta algo ao que tem. Isto é que é importante avaliar. Na minha opinião, esta ideia de que ninguém pode dizer nada sobre o ensino, de que só nós, os professores, sabemos o que fazemos, que sempre fazemos bem, que se existem problemas eles se devem ao sistema, ao governo, às famílias? Os alunos passam na escola cinco, seis, sete horas diárias; cinco dias por semana; quarenta semanas por ano, dez anos da sua vida! Mas os problemas são sempre exteriores à escola. É um discurso inacreditável...
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa
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