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Para quê educamos nossas meninas?

Toda a educação das mulheres deve ser relativa aos homens. Agradar-lhes, ser-lhes úteis, fazer-se amar e honrar por eles, educá-los quando jovens, cuidar deles quando adultos, aconselhá-los, consolá-los, tornar-lhes a vida agradável e doce, eis os deveres das mulheres em todos os tempos (Rousseau)

Durante muitos séculos, no mundo Ocidental, a educação e a participação social das mulheres estiveram relacionadas com exigências e perspectivas configuradas a partir do que denomino "ordenamento masculino". Ou seja, as mulheres deveriam viver e servir a um mundo organizado para e pelos homens. Conforme afirma Rousseau em sua obra Emilio, a educação das mulheres deveria, unicamente, objetivar a satisfação masculina.
Autores que estudam e problematizam a história das mulheres (Duby e Perrot, 1991; Del Priore, 1997; Louro, 1997) (1) têm demonstrado que a doação plena, o amor incondicional, a paciência e a docilidade, entre tantas outras características que hoje ainda são relacionadas diretamente aos sujeitos femininos, são construções culturais que emergiram ao longo dos tempos, naturalizando o ser mulher. Exemplo disto pode ser percebido na associação dos comportamentos femininos às histórias de personagens bíblicos como Eva e Maria, as quais inspiraram modelos de conduta para as mulheres. (Del Priore,1997).
Não vivemos mais o tempo de Rousseau (século XVIII), e a educação de nossas meninas, na atualidade, deveria oferecer condições para a escolha de múltiplos caminhos para suas vidas. Hoje as mulheres podem estudar, viajar sozinhas, cozinhar ou dirigir carros e empresas. Podem ser médicas, militares, mecânicas, professoras, mães solteiras, amar homens e mulheres. Entretanto, estas múltiplas possibilidades são apresentadas às nossas meninas? Certamente a resposta é discutível.
Como mulher, negra, mestranda em educação e professora, é doloroso perceber como ainda se espera que as meninas correspondam a um estereótipo de passividade. A partir deste é incutido que devam ser quietas, organizadas, medrosas, um pouco choronas, um tanto dengosas, para que, com essas características, tornem-se "verdadeiras mulheres". Conforme afirma Perrot (2007, p. 93) [é preciso...] "Inculcar-lhes bons hábitos de economia e de higiene, os valores morais de pudor, obediência, polidez, renúncia e sacrifício." E aquelas que não conseguem incorporar tais atributos são observadas com cautela e desconfiança.
A partir do entendimento de pedagogia cultural (Steinberg,2001), é possível compreender que produções midiáticas diversas, tais como filmes e novelas, também educam pela representação de modos de ser e de viver. Segundo Fabris (2000), a escola e a família perderam espaço, no mundo pós-moderno, diante de novas e diferentes instâncias que atuam na produção das subjetividades.
Uma telenovela recém finda, apresentada diariamente no horário de maior audiência da televisão brasileira, ao longo de sete meses, é um exemplo desta pedagogia cultural. O próprio autor (2) da trama afirma que suas histórias são escritas para educar. Temáticas polêmicas como preconceito racial, transtornos alimentares, infidelidade conjugal, entre outras tantas, são abordadas recorrentemente.
Em meio à trama referida, o autor apresenta sua receita para que uma jovem (como a personagem da novela) possa ser feliz e realizada: que seja loira, alta, magra e bela. Estude pouco, fale baixo, com vocabulário estreito. Mantenha-se virgem, conheça bem as prendas da casa e não trabalhe fora. Dessa forma, ao contrário da mulher independente, que já viajou o mundo e tem curso superior (outra personagem da trama), reunirá as qualidades mais importantes para conquistar o amor e casar com o "príncipe" da narrativa.
Para que mostrarmos às meninas a importância de estudo e independência, se ficamos satisfeitos com a escolha feita pelo "príncipe", e ainda batemos palmas para o final romântico da novela? Não seria melhor educarmos jovens meninas para serem mulheres de hoje − que precisam trabalhar, estudar, quem sabe viajar − e com tudo isso consigam realizar-se como pessoas e encontrar um par? Não seria melhor educá-las para uma vida com muitas cores, em que o cor-de-rosa fosse apenas uma dentre tantas?

Notas:
1) Outros tantos autores estudam também a história das mulheres. Destaco aqui a obra de Lipovestsky (2000) que ao descrever o que seria uma "terceira mulher", acaba por narrar uma perspectiva histórica a respeito da evolução dos papéis sociais das mulheres.
2) Trata-se de Manuel Carlos, conhecido autor brasileiro de telenovelas.

Referências bibliográficas

  • DUBY, Georges e PERROT, Michelle. História das Mulheres no Ocidente. Porto: Edições Afrontamento, 1991.
  • FABRIS, Eli Henn. Hollywood e a produção de sentidos sobre o estudante. In: COSTA, Marisa Vorraber (org). Estudos Culturais em Educação: mídia , arquitetura, brinquedo , biologia, literatura, cinema. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2000.
  • LIPOVETSKY, Gilles. A terceira mulher. Permanência e revolução do Feminino. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997.
  • PRIORE, Mary. História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
  • PERROT, Michele. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007.
  • STEINBERG, Shirley e KINCHELOE, Joe. Cultura Infantil: a construção corporativa da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2001.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 166
Ano 16, Abril 2007

Autoria:

Juliana Ribeiro de Vargas
Pesquisadora do NECCSO e professora da Rede Pública de Ensino.
Juliana Ribeiro de Vargas
Pesquisadora do NECCSO e professora da Rede Pública de Ensino.

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