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Abandono escolar contra o arrependimento dos abandonantes e a piedade pelos abandonados

Há uns tempos atrás, lia-se num jornal diário de grande circulação a propósito da deslocação do Primeiro Ministro e da Ministra da Educação a uma escola dos arredores de Lisboa, onde foram lançar o Programa "Novas oportunidades" (criação de Escolas Profissionais) o seguinte:
"Muitos dos três milhões e 500 mil trabalhadores portugueses no conjunto de uma população activa de cinco milhões que têm no máximo o ensino básico "estarão hoje arrependidos de ter deixado a escola tão cedo e querem uma oportunidade de recuperar este atraso", acredita o Primeiro Ministro José Sócrates'.
Apesar de um tanto tardia relativamente ao evento que a motivou, esta notícia não perdeu nada da sua exemplaridade no que diz respeito ao sentido do discurso atribuído ao Primeiro Ministro, aos pressupostos de que usa e aos efeitos que busca.
Valendo-se de um tom de objectividade e de serenidade notório, designadamente através da invocação de números impiedosos, a notícia aproveita para informar que o primeiro ministro acredita que muitos daqueles três milhões e meio de trabalhadores "estarão hoje arrependidos de ter deixado a escola tão cedo e querem uma oportunidade de recuperar este atraso",
Face a esta declaração cuidadosamente dubitativa, somos levados a admitir, já quase sem dúvidas que, antes de mais, muitos daqueles três milhões e quinhentos mil trabalhadores portugueses estão arrependidos por ter deixado a escola; depois que, se estão arrependidos, é porque sentem que poderiam não ter deixado e, finalmente, que, se sentem que poderiam não ter deixado a escola e deixaram, é porque a responsabilidade é deles.
É evidente que o Primeiro Ministro não diz isso tão escancaradamente e é bem provável que não estivesse sequer a pensá-lo. Mas, com toda a certeza, o que está implícito na ordem cognitiva e discursiva das coisas é isso: - que a primeira explicação para o abandono da escola reside na pessoa de quem abandona ou de quem tem a responsabilidade directa do abandonante, os pais ou encarregados de educação. O recurso a esta teoria da atribuição da culpa é quase fatal. Por um lado, ela parece inscrita na ordem dos factos, verificados no quotidiano: todos nós conhecemos sujeitos concretos, nomes, acontecimentos e incidentes, histórias e episódios que podem ser testemunhados. Por outro lado, são os próprios abandonantes que assumem muitas vezes a "decisão" de abandonar. O Primeiro Ministro, ao declarar aquela crença, mais não faz que reforçar esta ordem "natural" das coisas.
É nestes termos que considero muito importante reflectirmos sobre esta realidade do abandono e do insucesso com vista a questionarmos algumas evidências, sobretudo aquelas que, mercê da atenção que recebem dos mais altos responsáveis do sistema, atingem um estatuto de indiscutibilidade.
Em termos teóricos, as concepções dominantes costumam pôr em relevo a importância dos fenómenos sócio-económicos ou sócio-culturais como constituindo quadros propícios à prática do abandono. Os primeiros seriam predominantes nos casos em que os alunos abandonantes seriam necessários à sobrevivência material da família num contexto produtivo em que as empresas procuram o emprego precoce pouco qualificado. Podemos reconhecer esta realidade, hoje, por exemplo em zonas como Lousada, Paços de Ferreira, Felgueiras, Cinfães e Baião, Amarante, Marco de Canaveses, onde o abandono escolar da população entre os 10 e os 15 anos sobe até aos 8 por cento quando a média nacional para essa faixa etária é de 2,7 por cento. Ainda há pouco tempo, num relatório da Comissão Europeia, se fazia referência à situação portuguesa e se lia que, em certas regiões do país, como aquelas acima mencionadas, os candidatos ao emprego com a escolaridade básica incompleta tinham mais hipótese de colocação nas empresas que os candidatos com o ensino secundário completo.
Para além dessas razões, porém, e talvez mais determinantes hoje em dia, temos as que poderemos chamar de razões sócio-culturais e identitárias, resultantes do não reconhecimento sócio-afectivo e relacional da mensagem da escola por parte dos alunos face à sua identidade e à das famílias de origem.
É neste contexto que ocorrem fenómenos propícios a gerar uma lógica de abandono. Os alunos em processo de abandono ou de insucesso são, normalmente, os alunos mais fragilizados, mais susceptíveis de cair em transgressão, mais inclinados a provocar "cenas" de afirmação pessoal compensatória do seu anonimato ou da sua insignificância escolar. São, evidentemente, também aqueles que mais resistência oferecem aos programas de recuperação escolar, sobretudo se se trata de programas estigmatizantes que os assinalem pela negativa, que suscitem compaixão ou falsa valorização. São também os mais esquivos à relação, os mais resistentes à abordagem, os mais antipáticos, verdadeiramente "insuportáveis", como é comum chamar-lhes. Mas é um profundo erro pensar que esses alunos são insensíveis à sua própria condição de marginais escolares. Para chegar aí, foi precisa toda uma "aprendizagem" da negação de si, de "aceitação" da própria incapacidade. É quando o abandono é uma "libertação".
Então, é aqui que certos professores operam verdadeiros milagres. Pena que a figura do professor-titular do novo Estatuto não tenha sido criada a pensar neles.


  
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Edição:

N.º 164
Ano 16, Fevereiro 2007

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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