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Somos todos responsáveis, eu pelo menos sou

Pergunto ao jovem que me ajudou a arrumar o carro e com quem converso, enquanto procuro uma moeda: - Por que não me olha? Fala sem me olhar.
? Nunca olho ninguém, senhora. Ninguém me olha e eu também não olho ninguém. É assim, e não me importo nada. Estamos «quites».
Lembro-me de Lévinas (filósofo, 1906-95) e contraponho: ? Eu gosto de olhar as pessoas, penso que os rostos falam. Não acha que tenho razão?
Fico sem resposta, porque, entretanto, chegou outro carro para arrumar. E chegará outro e outro, e quantos mais melhor, até à quantia exacta de mais uma dose, num ciclo infernal (julgo eu) em que aquela vida se transformou.
Aqui, como em muitos outros casos, chegámos ao limite, à fronteira, da não relação. O ?o olhar no rosto?, a proximidade com aquele que me olha e a quem eu olho, há muito que deixou de existir. O passo até à quase desumanidade está a uma curta distância.
Eu sei que tens razão (desculpa, começar-te a tratar por tu, é uma forma de te sentir próximo), muitos não te olham, não querem mesmo olhar-te. Desejariam que não existisses ou que não te cruzasses no caminho. Se calhar, a maioria, até. Eu mesma, para quê ser hipócrita, desejaria que não estivesses aqui, mas estás e isso não me é indiferente. Por quê, então, negares o olhar a quem deseja fixá-lo, a quem quer ver para além do que aparentas ser?
Dirás que não tenho nada a ver com isso. Às vezes também penso assim. Apetece-me ir na onda e acreditar que ninguém falhou, só tu falhaste, que não tenho nada a ver com o que te está a acontecer. É um problema teu, da tua família, mas meu não.
Outras vezes, reivindico direitos para ti, respostas sociais, que deviam existir (e funcionar) para que não tivesses chegado onde chegaste. Revolto-me. Para que pago eu impostos, para viver numa sociedade que não cuida de quem precisa, num país que deixa cair nas margens cada vez mais pessoas?
Vêm-me à cabeça as perguntas que tantas vezes faço: ? Quantos direitos ficaram por cumprir? Quantos te foram negados? Quantos tu dispensaste, porque não quiseste assumir deveres? Que instituições falharam (e continuam a falhar)? Falhou a família, os amigos, as associações, a polícia, o patrão? Terá havido de tudo, quem te tenha aberto a porta vezes sem conta e também quem a tenha fechado muitas vezes.
O que fez a escola, quando tiveste más notas, faltaste às aulas ou a abandonaste de vez? De certo, não o suficiente. Bastaram os relatórios e as justificações de sempre, para acalmar as consciências ? família desestruturada, bairro degradado, pais ausentes, comportamentos associais, violência, etc. Começo a sentir que tenho alguma coisa a ver com o teu problema.
A seguir ao abandono escolar, restou a rua. Aí, começou talvez a tua escalada. Mas como em todas as escaladas há sempre dois sentidos, durante muito tempo pudeste escolher, seguir em frente ou voltar para atrás. Hoje mesmo, eu penso que ainda podes escolher. Sabes, esta é a minha maior dificuldade: perceber até que ponto decides tu. Saber que papel tem a tua vontade nas decisões que tomas. Tens momentos em que pensas na tua vida, naquilo que te está a acontecer, ou já não te importas com isso?
Pouco a pouco, foste esquecendo e deixando para trás tudo aquilo a que davas valor e que agora já não consideras importante. E foi assim que um dia não regressaste a casa, deitaste fora todos os números de telefone, quebraste todos os laços. Talvez persistam alguns, não sei: ? Tens namorada? Consideras os teus ?colegas? como amigos?
Tu dirás que não foi bem assim, o que se passou. Já temia enganar-me. Dou-me conta que falei de ti como se fala dos ?drogados?, como se todos fossem iguais, como se um padrão comum os definisse a todos. Era exactamente o que eu não queria, é o que eu não quero.
Desculpa-me. Fi-lo porque não me deixaste opção, não pude olhar o teu rosto, esse rosto que é apenas teu, que fala de ti (e por ti), te individualiza e te diferencia de todas as outras pessoas. Esse rosto que se torna discurso, comunicação, no que diz e no que deixa perceber. Verdadeiramente, é quando olhamos alguém no rosto que encontramos o indivíduo, a pessoa singular, que cada um de nós é. Tu és único, e isso é muito importante. Percebes isto?
Talvez seja difícil. Um dia destes, quando te encontrar de novo, olhar-te-ei o rosto e, se tu quiseres, falarei demoradamente contigo sobre o que quero dizer.


  
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Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

Maria Rosa Afonso
Professora
Maria Rosa Afonso
Professora

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