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A escola segundo Sebastião Salgado

Sebastião Salgado andou pelo mundo a fotografar escolas para, conjuntamente, com Cristovam Buarque nos oferecer uma belíssima obra que a representação da UNESCO no Brasil publicou. Chamaram-lhe, apenas, o «Berço da Desigualdade». São setenta e três fotografias, de Salgado, e outros tantos brevíssimos textos, de Buarque, que nos mostram como ?a escola aprisiona os que estão fora? mas, também, como há neste mundo ?crianças que aprendem números para contar o que não têm?.
Uma sala decadente, no Huambo, com meninos sentados em latas lendo um texto no quadro sob o olhar atento de uma professora é o pretexto para que se pergunte. ?Que futuro se encaixará em uma escola improvisada??. Antes, é a fotografia de um terreiro onde se vêem dezenas de crianças amontoadas à volta de um professor que nos obriga a confrontar com uma questão: ?Apesar de tudo, isto é uma escola. Que futuro a humanidade está construindo a partir dela??
Há fotografias que, tal como aquela que foi produzida a partir de uma sala de aula no Afeganistão, se vê um professor a socorrer-se de uma gravura para falar dos cuidados a ter com bombas e outros artefactos bélicos. Será que ?o caminho das escolas é um mapa de minas??     
?O berço da desigualdade está na desigualdade do berço? é a frase que interpela a fotografia de uma menina, num saguão pobre da Baía, a escrever sobre uma mesa, debaixo da qual se vêem dois bebés, serenamente, a dormir. Há uma outra foto, do Paraguai, onde desfocada no fundo da sala surge a palavra «Ciências». Bem nítidas, duas meninas descalças empenham-se compenetradas na escrita de um outro texto. Pretexto para que Cristovam constate: ?Ciência e pés descalços: resumo do  mundo moderno?.
Contudo, nem um nem outro dos autores descrêem da Escola. Uma criança angolana, de cadernos e lápis na mão, é a fotografia que o permite comprovar. Uma fotografia que foi construída no meio do ?horror de uma guerra?, onde ?a escola surge como esperança?. A mesma ?esperança nas letras? de um outro texto que descreve a fotografia de outros dois meninos, na Guatemala, observando e trabalhando sobre um quadro silábico, ?olhos atentos?, apesar das ?calças rasgadas, pés descalços, piso de terra, parede sem reboco?.
O livro de Salgado e de Buarque nada tem de pós-moderno, mesmo que possa duvidar da Escola e interrogar-se acerca das suas finalidades e dos discursos que se produzem por causa dela, acerca dela e a pretexto dela. Dúvidas, interrogações e discursos que, afinal, se tornam necessários para afirmar que não são as escolas em si que lhes interessam como fonte de esperança e de dignidade humanas, mas tudo o que nelas se faz para que essa esperança e essa dignidade sejam possíveis. Como o professor da fotografia que no Luena é capaz de despertar toda aquela atenção por parte das crianças que com ele trabalham ou como a professora queniana que, por demonstrar a ?sua dignidade e amor pelos alunos?, inspira Cristovam a afirmar que ?melhor uma criança em pé na escola, do que sentada na calçada?.
Pode a escola educar ?sem cortar as asas do sonho?? Certamente que pode se, parafraseando C. Buarque, o lápis for a espada e o caderno for o escudo daquele menino afegão que num campo de refugiados entra determinado pelos nossos corações adentro. Pode, também, se a fonte de criatividade que a criança é ? Cristovam é quem mais uma vez o afirma, conseguir ser ?liberada pela escola?. Pode, finalmente, se se conseguir que a escola seja ?alegre aos olhos de seus alunos?. Apesar de tudo, pode, mesmo que se saiba perante os pés sem sapatos ou as salas sem cadeiras que, afinal, ?a civilização só globaliza o que lhe dá lucro?.
O que fazer ?
 É o próprio «Berço da Desigualdade» que nos empurra para a resposta. Uma resposta que passa por abordar a discussão sobre a relação entre educação escolar e desenvolvimento humano como um problema político que deverá afectar obrigatoriamente tanto a nossa militância em prol de um mundo mais justo e solidário, como, e também por via disso, as nossas discussões sobre o papel das escolas, o modo como pensamos o acto de ensinar e de aprender, o protagonismo dos alunos e dos professores ou a importância do património cultural como instrumento necessário à construção e afirmação da inteligência e da dignidade humana.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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