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Do Povo que somos ao Estado que merecemos

... somos um povo que enfrenta os desafios do século XXI, apetrechado com valores e princípios éticos do século XIX e uma relação de desconfiança com as instituições estatais, própria do século XV !

As calendas da contemporaneidade, que os inícios de novecentos consubstanciavam, permitiam encontrar ainda, num país à altura predominantemente rural, um corpo de valores éticos e morais, sustentados pela tradição, de contornos comunitários evidentes e uma conexão funcional com as empíricas e autonómicas vivências locais, na afirmação de um espaço geofísico, visto como ?axis mundus? de um cosmos em grande parte estranho e, portanto,  pouco fiável.
O generalizar do estilo de vida urbano veio alterar, radicalmente, este estado de coisas. Persistiram, contudo, nas nossas atitudes e comportamentos, reminiscências de formas tradicionais de entender o mundo que, entre outras  coisas, moldam a maneira como encaramos a sociedade actual e, nesta, como nos relacionamos com as nossas instituições.
A desconfiança ancestral face aos mais diversos níveis e organismos de poder, ainda hoje se mantém numa dimensão superior àquilo que seria desejável e, convenhamos, àquilo que seria admissível, face a mais de três décadas de aprendizagem de cidadania.
Frequentemente acusamos o Estado de corrupto. Tribunais, municípios, polícia, gestores e departamentos públicos mais variados. Sem nos apercebermos que, em última instância, o Estado somos nós! E que os nossos representantes aí (aqueles a quem nos queremos referir quando falamos de Estado) são, de uma forma ou doutra, a emanação do povo que somos!
Na verdade, as práticas de ?compadrio?, por exemplo, eram elementos marcantes na sociedade tradicional portuguesa, onde constituíam mecanismos funcionais intrínsecos às relações de cooperação social e muitas vezes de parentesco. Não eram ilegítimas, nem sequer criticáveis, muito pelo contrário. Pela dimensão social que abrangiam, pelos escassos e localizados interesses envolvidos,  eram, aliás, irrisórias.
Contudo, faziam parte integrante da nossa cultura! Fazem ainda hoje parte da nossa cultura! E a sua aplicação, fora de tempo, reveste-se, agora, de consequências bem mais graves!
Perpetuam, por exemplo, uma prática social de clientelismo que perpassa, hoje, transversalmente toda a sociedade: ilegítima, ilegal muitas vezes e, principalmente, subversora dos princípios de igualdade de oportunidades e da afirmação dos mais capazes, indispensáveis à nossa afirmação num mercado global e concorrencial.
Portanto, como povo, somos de alguma forma responsáveis pela perpetuação das tais práticas e valores, hoje inadequados a uma sociedade que se quer moderna e democrática.  Contudo, como Estado, somos bem mais responsáveis ainda.
Responsáveis, por exemplo, por continuar, muitas vezes, a tratar os portugueses como se de um apêndice europeísta se tratassem. Por fazermos tábua-rasa das nossas especificidades culturais. Por gerar-mos leis que, pela sua inaplicabilidade são, na prática, um incentivo à transgressão. Por sustentar políticos, com os quais existe um substancial divórcio de credibilidade. Por manter tribunais, que não decidem em tempo útil, esvaziando, portanto, a eficácia da sua acção. Por nos endividar-mos nas Câmaras Municipais, alegre e irresponsavelmente. Por possuirmos forças policiais que, sancionam ou não, conforme a disposição de momento e os interesses em presença. Por criar sucessivamente ?comissões de inquérito?, de que ninguém vislumbra, depois, qualquer conclusão e, muito menos, condenação.
Finalmente, por gastar-mos demasiado, sustentando uma classe política desmesurada para a dimensão do país. Por manter-mos instituições fantasmas, de funcionalidades e competências sobrepostas ou praticamente inexistentes, a custos globalmente incomportáveis.
Em suma, somos um povo que enfrenta os desafios do século XXI, apetrechado com valores e princípios éticos do século XIX e uma relação de desconfiança com as instituições estatais, própria do século XV !
E, afinal, se o Estado não é a tal ?pessoa de bem?, a razão primeva está em todos nós!
Somos nós, enquanto sociedade, que abandonando valores seculares que configuravam tradicionalmente ?uma pessoa de bem?, os não substituímos, ainda, por outros equivalentes e mais adequados aos tempos em que vivemos!
Se o tivéssemos feito, teríamos há muito penalizado os Valentins Loureiros e as Fátimas Felgueiras deste país e, deste modo, contribuído decididamente para a credibilização da vida pública!
No fundo, lá no fundo, sentimos que se estivéssemos nesses lugares não seríamos, afinal, muito diferentes!


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 152
Ano 15, Janeiro 2006

Autoria:

Aurélio Lopes
Professor convidado da Escola Superior de Educação de Santarém
Aurélio Lopes
Professor convidado da Escola Superior de Educação de Santarém

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