Página  >  Edições  >  N.º 147  >  O milagre dos pães

O milagre dos pães

Como diz Romildo, um compositor falecido em 1990, ?casal perfeito não dá samba? fazendo alusão ao sofrimento como a pitada necessária para a criação artística, embora, ainda segundo o compositor, ?não é aquele sofrimento pesado, mas um sofrimento mais leve, mais maleável: um sofrimento satisfatório?.

Este texto é parte daquilo que venho tentando fazer à alguns anos: mexer com a memória do samba do Rio de Janeiro, através de um Projeto chamado «Puxando Conversa». Uma trama que envolve narrativas ? cantadas ou não ? de compositores, linguagem audiovisual, encontros públicos entre sambistas e outros amantes do samba e minha pesquisa acadêmica.
Girando em torno do samba, estão as formas que esses compositores vão criando para viver, re-inventando suas vidas, muitas vezes, a partir de situações adversas. Como diz Romildo, um compositor falecido em 1990, ?casal perfeito não dá samba? fazendo alusão ao sofrimento como a pitada necessária para a criação artística, embora, ainda segundo o compositor, ?não é aquele sofrimento pesado, mas um sofrimento mais leve, mais maleável: um sofrimento satisfatório?.
Então, como parte desta tarefa de colher historias, gravei em vídeo o que me contou um sujeito que morava em Bangu, zona oeste do Rio de Janeiro: estava desempregado e sem dinheiro, conseqüentemente, sua mulher e as duas filhas sofriam com a situação. Sem ter nada em casa  para comer, pensava em ir ao seu antigo bairro ? o Jacarezinho ? porque ali sempre havia uma viração: de servente de pedreiro, um portão pra pintar, enfim, poderia ganhar algum ?trocado?. Tinha apenas o dinheiro da passagem. Quando ia saindo, sua mulher pergunta se ele não deixaria dinheiro para comprar pão para as crianças. Ele coça a cabeça, olha para as duas filhas e, compadecido, resolve ir até a padaria com o único dinheiro que tinha. No caminho pensava como ia fazer para chegar ao seu destino: ?pular o muro do trem, dar calote no ônibus?, alguma coisa ele faria. Chegou na padaria e se deu conta de que havia uma confusão na fila do caixa. Aproximou-se e viu que uma senhora mostrava ao gerente do estabelecimento um pão aberto, com alguns fios de cabelo dentro. Ao ver a cena, nosso personagem sorriu e pensou: ?ganhei meu dia!? Voltou pra casa feliz e fez o samba ?Cabelo no pão careca?, que foi gravado pelo grande cantor Zeca Pagodinho, tornando-se um dos sucessos do interprete, adiando as preocupações com o pão de cada dia de sua família, por um bom tempo.
Mesmo sem a música, segue a letra do samba, ?Cabelo no pão careca?  
?Bolo na padaria/ Maria pulava igual perereca/Pão doces e broas viram peteca/pegaram o padeiro e quebraram a munheca (por que?)/Porque encontraram cabelo no pão careca/Porque encontraram cabelo no pão careca/Sonho virou pesadelo/brigadeiro perdeu a patente/confeitaram o confeiteirocom a massa de pão para cachorro-quente/Deixaram o gerente, um tal de ClementeSem uns cinco dentes e só de cueca/Porque encontraram cabelo no pão careca?.
Essa é uma das histórias(1) de Carlos Roberto Ferreira Cesar, mais conhecido como Barbeirinho do Jacarezinho, que, juntamente com Luiz Grande e Marcos Diniz, formam o Trio Calafrio, apelido que os identifica no mundo do samba. Com muito bom humor, juntos, eles têm criado situações muito instigantes para pensarmos sobre o cotidiano dos moradores mais pobres do Rio de Janeiro. Em outros sambas, já acharam uma antena parabólica ?no mato? e colocaram em cima do barraco, no alto do morro, transformando o dia-a-dia daquela ?comunidade?, chagando a mudar, inclusive a relação com a policia, que passa a desconfiar da súbita transformação do ?padrão de vida? e do intenso movimento no barraco; Cantam a historia de ?Mary Lu?, uma mulher que fez faxina para a classe media da zona sul do Rio de Janeiro e com os ?cacarecos? que foi ganhando (pois iriam para o lixo) monta um brexó na Baixada Fluminense (região  da periferia da cidade do Rio de Janeiro). Torna-se empresaria de sucesso, ?reciclando? os objetos que ganha ? ?em cadeira velha ela passou verniz, em gravura da antiga tirou cicatriz?... Paralelamente recicla sua vida amorosa, pois trocou um ?cafifa  que lhe gavionava? por um novo amor.
Barbeirinho, seus parceiros e tantos outros são os cronistas do cotidiano de uma população que, geralmente, sem nomes, sem histórias, só tem visibilidade nas tragédias ou nos números que tentam justificar as mazelas da sociedade brasileira.

2) Do vídeo ?Histórias, fios desencapados?, com Luiz Grande, Barbeirinho do Jacarezinho e Marcos Diniz. Rio de Janeiro:TV Maxambomba,1998.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 147
Ano 14, Julho 2005

Autoria:

Valter Filé
Univ. do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil
Valter Filé
Univ. do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo