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Cinema Paraíso ou uma carta aberta francesa(ª)

No número de Novembro dos ?Cahiers du Cinema? aparecia uma carta aberta de Alain Bergala a um presidente de câmara algures em França. Pela sua actualidade para nós, não resisti a dar-vo-la a conhecer.
?Senhor Presidente,
Conheço muito bem a vossa pequena cidade porque pelo menos uma vez por ano, desde há muito tempo, vou aí apresentar um filme, animar um debate ou um estágio, e é sempre com prazer que reencontro o público do ?Palace?. Tivemos ocasião, aliás, de nos cruzarmos duas ou três vezes, especialmente numa sessão memorável sobre Maurice Pialat. Sei também, por intermédio de Aurélie S., que anima esta sala há mais de dez anos, que tem sido  um defensor da programação dessa sala e da sua política de animação, mesmo se isso custa algum dinheiro - não tanto como isso- à autarquia.
Mas a situação, como por todo o lado, está em vias de mudar a grande velocidade.
O senhor presidente decidiu ajudar à implantação de um multiplex que vai abrir as portas dentro de um ano, na zona comercial da periferia sul, e os seus conterrâneos, não tenho dúvidas, estão de acordo. Vão ter acesso a sete salas confortáveis, apetrechadas tecnicamente com o melhor do mercado, e poderão todas as quartas-feiras ter acesso aos mesmos filmes que Paris, Londres, Atenas. Esta implantação vai necessitar da sua parte de um investimento pesado, para viabilizar o terreno, tornar fácil o acesso e o parque de estacionamento, mas pareceu-lhe importante dotar a sua cidade dos mesmos equipamentos das outras cidades de França comparáveis à sua. O movimento é irreversível e responde evidentemente a uma procura ligada ao modo de vida que é o de muitos franceses, e que se americaniza a olhos vistos. Já não se vai ao ?cinema? para ?ver um filme?, sai-se de carro por um tempo livre dedicado ao consumo onde o cinema é uma das ofertas no meio de outras, num espaço onde se pode comer num restaurante rápido, comprar roupa, fazer compras de alimentação e de produtos de entretenimento para toda a semana.
O problema não é o do multiplex, que cumprirá a sua função, a de satisfazer o desejo dos seus concidadãos de ver um filme mediaticamente obrigatório na mesma semana que a televisão fala dele. O único e verdadeiro problema, político, é o do ?Palace? e do seu futuro. Há demasiados exemplos de cidades onde a abertura do multiplex matou,  directa ou indirectamente, a sala independente que tinha conseguido continuar até aí o seu trabalho com a ajuda da câmara. Uma cidade, sabe-o melhor do que eu, é um organismo vivo onde tudo relaciona, onde qualquer mutação engendra efeitos secundários, que podem rapidamente tornar-se irreversíveis se não se tem extremo cuidado.
A primeira ilusão é acreditar que o multiplex, que é antes de tudo uma sala de cinema multiplicada por sete, vai preencher as funções do ?Palace?. É que nunca as preencherá. A começar por uma função aparentemente derivada daquela a que todo o eleito devia ser sensível, a de animar a vida do centro da cidade. Há muitas cidades, pequenas e grandes, onde o fecho das salas do centro, depois da criação de zonas comerciais gigantes e de multiplexes na periferia, matou toda a vida no coração da cidade depois das 19 horas. Quando as marcas do cinema começam a desaparecer, os transeuntes começam a rarear, os cafés  e os restaurantes fecham mais cedo, quando não definitivamente, e uma impressão de recolher obrigatório cobre a cidade.
Regressei recentemente de uma grande cidade do leste de França onde já não ia há vários anos e que me deixara a recordação de uma cidade muito animada. Encontrei, depois das 20 horas, um centro deserto e sinistro. Os três cinemas de bairro tinham fechado, o resto seguiu-os. Gostei sempre das cidades de província, onde vou muitas vezes defender o cinema que amo, mas não as que se tornaram um deserto depois do cair da noite. Os cinemas foram sempre um belo oásis na noite das cidades.
Outra ilusão seria crer que o multiplex, com sete salas, vai fazer também o trabalho de programação que fazia o ?Palace?. Os gerentes destas grandes superfícies de cinema prometem muitas vezes, por vezes até de boa fé, que não terão problemas em dedicar uma das salas ao cinema de autor, mais ?cultural?. É ao mesmo tempo verdade e mentira. Evidentemente que não lhes traz problemas económicos programar de tempos em tempos um filme de Kiarostami ou Godard, mesmo sabendo que não vai haver bichas na bilheteira. Mas esta abertura de espírito irá para lá da alta gama prestigiosa do cinema de autor. O último filme de Straub, de Oliveira, de Garrel, de Claire Simon,e de vinte outros cineastas que fazem o cinema vivo de hoje, têm tantas oportunidades de passar numa sala multiplex como um camelo num buraco de uma agulha, mesmo que os autores sejam tudo menos ricos.
Pelo contrário, Aurélie S. terá cada vez menos possibilidades de conseguir junto dos distribuidores os raros filmes de autor que ?correm? bem e que lhe permitem ir equilibrando o orçamento. O gerente (porque, a maioria das vezes, não é verdadeiramente o programador, mas o executante local de uma estratégia centralizada da exploração nacional dos filmes) poderá ceder-lhe à vontade o acesso àquele filme que ele saberá melhor que ele, por em contacto com o público potencial da cidade. Porque um filme singular e frágil não tem o mesmo poder de atracção perdido no meio de seis mastodontes num hall em forma de gare de triagem e numa sala  íntima, cujo público conhece a linha de programação de longo curso e a pessoa que o encarna.
A última ilusão, talvez a mais grave, será pensar que 200 pessoas numa sala de um multiplex, é a mesma coisa que 200 pessoas na sala do ?Palace?. Os 200 clientes do multiplex que pagaram o seu bilhete para ver o último blockbuster francês ou americano - em francês nos dois casos- não têm mais ligações entre eles do que o facto de se encontrarem ao mesmo tempo, ao sábado às 3 da tarde, numa grande superfície. E ver um filme em conjunto não cria nenhuma ligação entre eles, a não ser que obedeceram ao mesmo estímulo mediático. No ?Palace?, e sei do que falo, há - e espero que por muito tempo- um verdadeiro público, isto é, uma comunidade de indivíduos que estão lá por sua escolha, que fazem confiança em quem lhes propôs aquela programação, por gosto e convicção. E essas pessoas acabam por se conhecer, mesmo sem se falar directamente, porque se reencontram regularmente a ver os mesmos filmes, por vezes a falar com os mesmos realizadores ou actores, e nos mesmos debates.
Uma sala assim que fecha, é um pouco da cidade como comunidade de comunidades que desaparece. (...)

ª A divulgação, na integra, desta notável carta aberta seleccionada por Paulo Teixeira de Sousa está disponível na ediçâo on-line de ?a Página?

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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