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Uma Sociedade Desescolarizada no Século XXI!

Uma Quase Realidade. E é Isso que Queremos??

Desde o início da escola de massas, obrigatória e institucionalizada, tem havido um fascínio pelo desenvolvimento do impulso do seu oposto ? informal, anti-autoritário, centrado no indivíduo, uma forma de aprender a ser verdadeiramente humano num mundo que perdia o seu rumo e nos arrastava consigo para o fundo. Esses novos espaços pedagógicos, como a escola criada pelo famoso filósofo americano John Dewey em Chicago, ou aquela criada por A. S. Neill ? Summerhill (exemplos mais recentes incluem a experiência que teve lugar nos anos 1970 na sequência da crise financeira da cidade - as ?Escolas Sem Muros? em Filadélfia) eram todas tentativas para reconfigurar o que é ensinar, aprender, escolarizar, para questionar o desenvolvimento humano e a democracia e pareciam estar ligadas à forma como estas ambições pudessem eventualmente ser realizadas.
Estas últimas experiências algo romanticizadas foram momentos de esperança e de abertura de possibilidades, nas aulas de sociologia da educação, durante o meu curso universitário; o perfeito antídoto para as nossas declarações de desespero e de pessimismo acerca do longo braço do Estado na sua acção de modelação dos corações e das mentes dos seus mais jovens e indefesos cidadãos. Estas histórias de ?esperança?  ? enquanto possíveis alternativas ao sistema estatal, foram comparadas com as propostas de Ivan Illich ? o pedagogo radical e ?desescolarizador?- para organizar a aprendizagem como se se tratasse de uma rede, usando os recursos da comunidade. Illich não estava sozinho ? autores como Neil Postman e John Holt denunciaram também a escola; argumentavam que as escolas estatais reprovavam sistematicamente as crianças; eram a base sobre a qual se sustentava a desigualdade e se promovia uma forma particular de classe de conhecimento ?dominante?, negando, assim, outros conhecimentos.
Debatemos então estas ideias radicais ? fascinados pela sua crítica e ao mesmo tempo inseguros acerca do seu grau de realismo. Levantávamos questões acerca do facto de os governos estarem dispostos a deixar simplesmente a escola sair da sua alçada. No final de contas, as escolas eram instituições perfeitas para moldar os seus futuros cidadãos e trabalhadores.  As escolas eram, além disso, o selo de contraste perfeito para os desvios do sistema. Exigindo a todos os seus cidadãos a sua frequência e dando a todos a mesma oportunidade significava que as diferenças que surgissem nas nossas oportunidades de vida eram o resultado dos nossos esforços individuais e respectivo mérito, mais do que qualquer coisa que o Estado pudesse fazer em favor das classes dirigentes e médias. 
Nesta ordem de ideias, porque é que nos sentimos tão pouco confortáveis com o conteúdo do comunicado de 2001 da Comissão Europeia que precisamente se debruçava sobre as possibilidades de dar um passo significativo na introdução de suficiente capacidade e literacia digitais nos sistemas educativos dos estados-membro, suficiente para fortalecer a próxima geração de trabalhadores do conhecimento? Porque é que desconfiamos da sugestão do Relatório segundo a qual temos que reconsiderar muito fundamentalmente quem ensina (porventura jovens alunos poderiam de facto ensinar uns aos outros, ou aprender através da utilização de novo software para computadores) ou onde tem lugar esse processo (são adiantadas algumas sugestões ? como as comunidades locais ou a família)?
Interessada como estou neste tipo de questões, procurei identificar aquilo que poderia estar aí menos nítido, na periferia da visão que nos era oferecida ? ideias e experiências que não ocupavam o centro da cena. Por este motivo, e não porque sentisse que estava a surgir uma revolução levada a cabo pelo Estado (ou pela Europa enquanto estado-em-estado-de-espera), sintonizei as minhas antenas para o perímetro do ecrã do radar. Ao considerar o caso do comunicado da Comissão sobre eLearning, e dado que a própria Cimeira, assim como o relatório que se lhe seguiu, estavam organizados em torno das tecnologias digitais e pelas indústrias dos medias e da publicação, pareceu-me que a proposta para ?desescolarizar? e organizar em rede a aprendizagem estava informada mais por um interesse em abrir novos mercados e criar uma indústria educacional do que pela preocupação com aquilo que os jovens estão a aprender e com o efeito da sociedade da aprendizagem. A proposta de que o projecto fosse uma iniciativa conjunta entre empresas públicas e transnacionais (como a Apple e a IBM) dá já uma pista acerca da direcção e para que interesses o ponteiro indicava.
Mais recentemente em Londres assisti à apresentação de um novo projecto pelo Departamento de Educação e Competências - Department of Education and Skills (DfES)- e da British Education Computing and Telecommunicaitons Agency (Becta) chamado Open Source Teaching. Os professores neste projecto foram espalhados por uma série de escolas de um departamento local de educação. Formaram uma comunidade virtual ? não muito diferente da ideia de Illich de uma rede comunitária de recursos. No projecto, os professores colocavam em comum os recursos de ensino ? esses recursos foram digitalizados, rotulados como objectos de aprendizagem, codificados de modo a poderem ser objecto de busca e colocados numa base chamada Repositório de Objectos de Aprendizagem. O sistema permitia aos professores identificar que aspectos do curriculum queriam desenvolver, seleccioná-los ? a partir de um menu de possíveis recursos disponibilizados aos professores, constituindo uma combinação de recursos um evento de aprendizagem. Os professores podiam fazer compras no estilo da loja ?Amazon.com? de produtos de ensino-aprendizagem. Contudo, não eram encorajados a seleccionar nenhum dos produtos da loja; as suas escolhas eram, antes, silenciosamente guiadas por uma mão invisível que já tinha filtrado as escolhas inaceitáveis.
Sendo certo que se pode argumentar que é necessário verificar a ?verdade? e a ?qualidade?, e que não basta misturar intensamente os nossos conhecimentos, o problema é que os meta-dados que constantemente classificam e seleccionam o conhecimento ?correcto? ou oficial não estão disponíveis para escrutínio. Este silencioso meta-professor nunca é questionado acerca de si próprio. Os ?bytes? de conhecimento são apresentados como se fossem indiscutíveis e inocentes. O facto de o seu autor (um professor?) nunca ser identificado, nem distribuída informação acerca de quando foi produzido o material ou para quem (ontem, há seis anos) sugere que este conhecimento é intemporal. É claro que as empresas de software e hardware ficaram felicíssimas por este tipo de desenvolvimento; uma escola fora das escolas formais; uma nova forma de organizar o ensino e a aprendizagem que coloca o homem e a mulher que estão no meio fora ? os professores!
Seria esta espécie de revolução que Dewey, Neill, e Illich sonharam? O que eu acho é que eles reconheceriam desde logo até que ponto a ?educação? se tornaria não só numa instituição ao serviço dos negócios, mas em si mesma um grande negócio. Os novos actores nesta área são, é claro, as empresas de TIC; elas têm novos produtos a promover, dólares e euros para ganhar, e almas para ser capturadas. Estarão estes desenvolvimentos a ser seguidos nos ecrãs dos educadores e do público em geral? Se não estão, deviam, ou acabaremos por ser indivíduos desescolarizados mais do que uma sociedade desescolarizada. Nesse caso, é mesmo a anarquia, e não uma sociedade crítica e justa, que queremos!


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Susan Robertson
Univ. de Bristol, Grã-Bretanha
Susan Robertson
Univ. de Bristol, Grã-Bretanha

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