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?É preferível investir em pessoas do que em auto-estradas?

Veio da Moldávia para Portugal à procura de uma vida melhor. Parece tê-la encontrado, mas não foi fácil. Apesar de ter formação universitária na área de gestão empresarial, Oleg Railean, 28 anos, desempenhou diversos trabalhos antes de iniciar a actividade que lhe trouxe alguma estabilidade profissional: a exploração, por conta própria, de um café no centro do Porto. Curiosamente ? ou talvez não ?, sendo proveniente de um país considerado pobre relativamente aos padrões europeus Oleg ficou chocado com a existência de analfabetismo no país de acolhimento. E diz que Portugal deve preocupar-se em recuperar o atraso educativo para não pôr em causa o seu futuro.

Retrato de um país visto pelos olhos de um estrangeiro:

Apesar de ser diplomado em gestão empresarial decidiu vir trabalhar para Portugal. Porque razão? Na Moldávia não há lugar para trabalhadores qualificados?

Na Moldávia há muitos trabalhadores qualificados, mas o país não está em condições de garantir emprego para todos. Muitas pessoas com formação de nível superior têm de exercer um segundo ofício para conseguir sobreviver.

Como caracteriza a situação do seu país em termos sócio-económicos? Está em condições de aderir à União Europeia?

Não, a Moldávia está muito longe de conseguir aderir à União Europeia a breve prazo. Além dos problemas económicos, existe também uma grande instabilidade política. O Partido Comunista regressou ao poder recentemente - desta vez pela livre escolha dos eleitores - e, apesar de não ser um partido idêntico ao que era na União Soviética e existirem as bases de uma sociedade capitalista, é um retrocesso político na medida em que os seus dirigentes não sabem tirar partido da economia de mercado para beneficiar os cidadãos. Só o tempo poderá dizer se foi ou não uma escolha acertada.

Veio para Portugal porque o considerava uma espécie de "oásis"?

Sim, porque nos primeiros tempos estava à espera de vir ganhar 160 contos por mês ? como me garantia um primo que já cá trabalhava (risos) ?, mas afinal vim ganhar metade disso e o dinheiro não chegava para as despesas. Foi difícil, mas quando as pessoas têm necessidade conseguem adaptar-se às novas situações. Primeiro trabalhei na construção civil, depois numa empresa de montagem de stands, fui intérprete de russo e finalmente consegui abrir este café.

Como se sente alguém que, tendo uma formação especializada, não exerce aquilo para que foi preparado? Não sente que está a desaproveitar as suas qualificações?

Tal como os portugueses que emigraram para a França e a Alemanha nos anos sessenta, eu vim para cá para tentar resolver a minha situação económica. Apesar de tudo, posso dizer que estou a fazer aquilo para que fui preparado. Apesar de não ter estudado para ser empresário de restauração emprego os meus conhecimentos na gestão do meu café.
Eu sempre gostei de futebol. Quando fui estudar gestão pensava em seguir a carreira de ?manager? de futebol. Mas na faculdade não tínhamos especialização na área de gestão do desporto. Quando frequentei a universidade estávamos em pleno período de transição política e os professores tiveram de começar a dar matérias que eles próprios desconheciam. Nessa altura estudávamos a partir de livros estrangeiros que só mais tarde eram adoptadas pelos professores. Estudar economia de mercado num país onde os professores ainda tinham os conceitos da economia planificada era difícil.

Como é o ensino na Moldávia? É mais exigente em relação aos padrões da Europa central, nomeadamente países como Portugal?

Não tenho termos de comparação com o ensino em Portugal, mas, por aquilo que vou falando com as portugueses, nos países do leste europeu o ensino primário tem níveis de exigência e de qualidade superiores. Até porque historicamente o Estado soviético investia muito no ensino, procurando proporcionar boas condições de estudo e bons professores. Qualquer pessoa que quisesse estudar tinha acesso a uma bolsa de estudo. Os meus avós eram pessoas muito pobres, mas apesar disso o meu pai conseguiu formar-se em engenharia. Se a família não tinha condições para financiar os estudos, o Estado encarregava-se disso. Hoje em dia já não é assim: o dinheiro começou a falar mais alto.

Quase vinte anos depois de Portugal ter entrado para o clube dos mais ricos da Europa, cerca de 10% da população permanece analfabeta. Como é na Moldávia?

Desde os tempos dos meus avós que não existe analfabetismo na Moldávia, e o mesmo se aplica aos restantes países do leste europeu. A minha avó compreendia mal o russo mas sabia ler jornais em romeno sem qualquer problema. Perto de cem por cento da população sabe, no mínimo, ler e escrever duas línguas completamente diferentes. E a diferença não é como a do português para o espanhol, é bem mais complicado, porque o russo baseia-se num alfabeto diferente do nosso, que é o latino.
Devo dizer que essa foi uma das situações mais chocantes com que me deparei em Portugal: vir para um país da Europa onde ainda existem pessoas que não sabem ler nem escrever. É uma situação estranha.
Depois, e partindo do contacto que fui tendo com os portugueses, verifiquei que muitos pais não acham importante que os filhos obtenham formação. Muitas vezes pensam que se eles trabalharam toda a vida na construção civil os filhos terão de seguir o mesmo exemplo. Eu conheci muitos casos assim.
Os portugueses pensam que todos os trabalhadores do leste europeu são médicos, engenheiros ou economistas, mas isso não é verdade. Porém, mesmo os que não seguem o ensino superior têm uma formação de qualidade, incomparável à que se verifica aqui. Nós temos escolas que ensinam a pôr tijolo, a soldar ou a trabalhar madeira, e os alunos têm de prestar exames para obterem uma carteira profissional. Aqui em Portugal reparei que essa aprendizagem é feita no próprio contexto de trabalho, com os operários mais velhos - quando eles deixam? E isso é uma grave falta de formação.

Acha que essa exigência faz com que os cidadãos da Europa de Leste estejam em condições de enfrentar mais facilmente as exigências postas pela entrada na União Europeia (EU)?

Sim. Aliás, acho que Portugal deverá preocupar-se com a entrada dos novos países na EU e fazer alguma coisa para recuperar o atraso em termos de formação. Os dez países que vão entrar na EU têm um nível superior ao do meu próprio país e a maioria das pessoas têm concerteza qualificações muito acima dos portugueses. Não sei muito em relação à situação de Malta e de Chipre, mas os países de Leste, em termos educativos, estão sem dúvida preparados para a entrada na UE.

Partindo da sua experiência de cinco anos no nosso país, como vê Portugal e os portugueses?

Portugal é um país que iniciou o seu ciclo de desenvolvimento à custa da União Europeia e dos fundos que dela provinham. E julgo que não sou eu apenas a pensar assim: a maior parte dos meus compatriotas ou amigos estrangeiros, e mesmo muitos dos portugueses com quem vou falando, pensam da mesma maneira.
Em Portugal é frequente ver-se jovens que não terminam a escolaridade obrigatória trabalharem nas obras ou em outros empregos não qualificados. portugal investiu muito em infra-estruturas, mas na minha opinião é preferível investir em pessoas do que em auto-estradas. Provavelmente, quem decidiu esses investimentos também não tinha formação para perceber onde deveria investir. É um círculo vicioso.
O Porto, por exemplo, está a construir uma moderna rede de metropolitano mas ainda tem muitos habitantes que não sabem ler nem escrever. Eu duvido que muitos dos cidadãos a quem ele se destina irão saber utilizá-lo, porque não têm capacidade, por exemplo, para ler as indicações do mapa.
De uma forma geral as pessoas ainda pensam de uma forma antiquada e ? desculpe-me a franqueza - muitas vezes não têm um comportamento cívico adequado. Os habitantes da Europa de leste são mais educados, melhor formados e trabalham mais.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 133
Ano 13, Abril 2004

Autoria:

Oleg Railean

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Oleg Railean

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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