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Educação no meio rural

Problemas e desafios

Por que razão uma cidade, um distrito, uma região ou uma universidade não poderiam, por iniciativa de professores ou com o seu apoio activo, criar escolas, colégios, liceus experimentais, e pressionar o Estado a fazê-los funcionar favorecendo ao mesmo tempo um movimento de ideias inovadoras em torno deles? É preciso não aceitar que a escola seja apenas um serviço administrativo.
Alain Touraine, 1998

Nasci numa aldeia da Beira Baixa. Um pequeno povo do distrito de Castelo Branco. Recordo com alegria, carinho, respeito e agradecimento a criança que fui: filho, aluno e membro de uma comunidade rural. As memórias e raízes, os saberes e afectos acompanham-me ao longo da vida ? a professora que batia, embora cheia de calor humano; o pai que impunha modelos; a mãe que cultivava afectos; os vizinhos que socializavam; a rua e o campo como espaços de aprendizagem; a cultura popular; a religião católica e a telefonia. A Aldeia que Educa Alguém. A Escola, por vezes, funcionou como uma ameaça terrível: hás-de ver quando fores para a escola... É que a primeira escola começava em casa e era inseparável da vida da aldeia.
Se trago, à colação, estas imagens e estes cenários é porque entendo que o que aprendemos na infância marca as nossas vidas e ?todos carregamos o território e a cultura em que nascemos?.
Na verdade, esta vivência rural, pessoal e profissionalmente, tem-me permitido olhar para o passado sem nostalgia e romantismo, mas consciente das luzes e sombras que envolvem as políticas educativas face às regiões do interior/rurais.
É neste contexto que gostaria de partilhar convosco algumas leituras e reflexões sobre a educação no meio rural e os problemas/desafios que advêm do encerramento de algumas escolas do 1.º Ciclo do Ensino Básico nas regiões do interior.
Vários autores (Furter, 1980; Ortega, 1994; Azevedo, 1996; Caride, 1994, 1998; Rouco, 1997; Formosinho, 1998; Melo, 2000...) têm estudado o encanto e a agonia das escolas rurais e, apesar da conflitualidade de opiniões, referem que é necessário conhecer e compreender a especificidade desta realidade e a natureza das mudanças, criando condições para a construção de novos possíveis. Efectivamente, as escolas do meio rural têm vivido um passado difícil. A mudança é um processo em curso. Importa, porém, saber em que direcção e porquê.
Constatamos, igualmente, que as recomendações dos diferentes organismos internacionais [Organização das Nações Unidas (ONU), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e as Culturas (UNESCO), Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Conselho da Europa, Ministérios da Educação...] em relação à educação no meio rural, apontam caminhos norteados pelas novas tecnologias de informação e comunicação em interacção com o património social, cultural e natural, isto é, apresentam a educação como um processo de desenvolvimento integrado e sustentável.
Na Declaração de Istambul da Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, realizada em Junho de 1996, reconhece-se que, para fortalecer o desenvolvimento sustentável e integrado no meio rural, é preciso promover programas de educação e formação que facilitem o emprego e a utilização das novas tecnologias, assim como estabelecer procedimentos para uma plena participação das populações rurais na fixação das prioridades e das actuações locais e regionais. O que, em última análise, representa assumir a necessidade de renovar os métodos e as estratégias da acção em favor de uma tarefa urgente e imprescindível: incrementar a auto-estima e a capacidade organizativa das comunidades rurais.
No entanto, Azevedo (1996: 91) faz a seguinte radiografia da realidade portuguesa: "A imagem que frequentemente caracteriza a evolução dos espaços de ruralidade "profunda" é a de um círculo vicioso: desvantagens de acessibilidade, explorações agrícolas não suficientemente rendíveis, debilidade da oferta de empregos ou de actividades de complemento dos rendimentos, emigração, desleixo do património construído, degradação da paisagem, incêndios florestais, diminuição dos serviços públicos e privados, abandono. Nesta espiral descendente as consequências tornam-se causas. São os caminhos do êxodo rural, a que a angústia de uns ou a linguagem técnica de outros chamam desertificação".
A maioria das pessoas aceita que o modelo de desenvolvimento da nossa sociedade reside na hegemonia da expansão do tecido urbano. Com efeito, a história mostra-nos que a evolução da sociedade, sobretudo a partir do século XIX, caminhou no sentido da constituição de um espaço urbano que garantisse um acréscimo de condições económicas, culturais e sociais de verdadeiro bem-estar, quando comparado com o espaço rural. Além disso, as previsões mais recentes relativas ao próximo milénio, continuam a apontar na mesma direcção, isto é, na concentração da população em grandes centros urbanos, os quais ao darem provas da sua impossibilidade de acolhimento e integração de todos os cidadãos, requerem novas estratégias de desenvolvimento.
Para melhor percebermos a realidade das escolas do 1.º Ciclo do Ensino Básico, em Portugal, apresentamos dois quadros que fazem a radiografia da actual situação. O Quadro n.º 1 apresenta a distribuição das escolas com um número de alunos igual ou inferior a 10, nos distritos do território nacional (dados de Junho de 2002).

Quadro n.º 1

DISTRITOS DO TERRITÓRIO NACIONAL
Escolas do 1º Ciclo do Ensino Básico

Levantamento de dados em Junho 2002

 

total de

escolas

escolas

escolas

% de

% de

% de

Distrito

escolas

de 1 a 5

de 6 a 10

até 10

1 a 5

6 a 10

até 10

 

 

alunos

alunos

alunos

alunos

alunos

alunos

01 Aveiro

615

29

49

78

4,7%

8,0%

12,7%

02 Beja

222

37

41

78

16,7%

18,5%

35,1%

03 Braga

773

18

46

64

2,3%

6,0%

8,3%

04 Bragança

406

181

110

291

44,6%

27,1%

71,7%

05 Castelo Branco

232

44

41

85

19,0%

17,7%

36,6%

06 Coimbra

535

58

65

123

10,8%

12,1%

23,0%

07 Évora

136

6

17

23

4,4%

12,5%

16,9%

08 Faro

236

8

33

41

3,4%

14,0%

17,4%

09 Guarda

400

138

119

257

34,5%

29,8%

64,3%

10 Leiria

549

33

93

126

6,0%

16,9%

23,0%

11 Lisboa

750

11

65

76

1,5%

8,7%

10,1%

12 Portalegre

110

11

20

31

10,0%

18,2%

28,2%

13 Porto

907

6

17

23

0,7%

1,9%

2,5%

14 Santarém

505

41

103

144

8,1%

20,4%

28,5%

15 Setúbal

306

9

25

34

2,9%

8,2%

11,1%

16 Viana Castelo

314

42

49

91

13,4%

15,6%

29,0%

17 Vila Real

572

177

138

315

30,9%

24,1%

55,1%

18 Viseu

786

127

180

307

16,2%

22,9%

39,1%

Totais

8354

976

1211

2187

11,7%

14,5%

26,2%

Fonte: Almeida, 2002.

De acordo com os dados, podemos afirmar que os distritos que constituem a região de Trás-os-Montes e Alto Douro ? Bragança, Guarda, Vila Real e Viseu ? são os que apresentam maior percentagem de escolas nestas condições. Destacamos o distrito de Bragança com 71,7%, sendo de 46,6 a percentagem de escolas com cinco ou menos alunos. É de notar que, a nível nacional, apenas 26,2% das escolas têm um número de alunos igual ou inferior a 10.
Salientamos, ainda, as diferenças entre a região de Trás-os-Montes e Alto Douro e outros distritos como, por exemplo, Porto (2,5%), Braga (8,3%) e Lisboa (10,1%).
Embora os quadro fale por si, parece-nos que o número de escolas, nas regiões do interior/rurais, com frequência igual ou inferior a 10 alunos é verdadeiramente insustentável!
É intolerável que a realidade referente às três últimas décadas, plasmadas no quadro anteriormente apresentado, não permitisse um olhar atento e crítico em relação aos fenómenos de desregulação económica, social, cultural e educativa que o mundo rural vive. Há escolas que são salas. E algumas são autênticos "cortelhos".
Uma lei igual não é necessariamente equitativa. A inexistência de políticas educativas específicas para o meio rural, alicerçadas em discriminações positivas, no âmbito dos equipamentos infraestruturais e no dos recursos materiais e pedagógicos, levou vários autores (Ortega, 1995; Barrio, 1996...) a baptizar as escolas do meio rural como o "parente pobre" dos sistemas educativos, criando-se distâncias abissais entre a educação do meio urbano e do meio rural.
Caride (1998: 33) refere que "em muitos casos a escola é o único e o último serviço público que se mantém numa determinada localidade". Pergunta-se: como criar alternativas para estas situações? Não possuindo ideias acabadas sobre esta problemática, entendemos que devem ser considerados os seguintes aspectos.
A municipalização da educação tem que ser assumida pela tutela de uma forma completamente diferente. Não basta "legislar" sobre novas competências para os municípios, no âmbito da Educação Básica. É imprescindível criar condições materiais e humanas que permitam a valorização da Escola Pública. O reordenamento da rede escolar, a recuperação dos edifícios, os reequipamentos e os saberes sustentáveis animados por equipas pluridisciplinares (professores, administrativos, auxiliares de acção educativa, animadores socioculturais, pais, etc.), apoiados pelos concelhos municipais da educação, só terão sentido se os projectos educativos forem congruentes com as matrizes socioculturais em que se territorializam.
Como sustentam Caride (1994; 1998) e Melo (2000) qualquer estratégia de intervenção educativa no meio rural deve partir das culturas locais, adoptando metodologias de investigação e animação que promovam uma vontade colectiva de mudança. E mais ainda: qualquer agente catalisador do processo de mudança não poderá criar uma "cultura de desenvolvimento" sem que a educação, a investigação e a animação sejam participadas pela comunidade, tendo como propósito fundamental promover, nos seus membros, uma atitude de compromisso no processo de desenvolvimento.
É nossa convicção que não basta elaborar cartas escolares e cartas sociais dos concelhos do interior, esperando que os programas escolares encarem a educação, no meio rural, como um recurso e não como um problema e que as teorias práticas permitam um plano reconstrucionista para o meio rural. Urge ir mais além. É necessário imaginar propostas substantivas abertas à participação democrática em que as pessoas sejam o centro e os actores dos projectos de mudança alternativos para o desenvolvimento integrado e sustentável do mundo rural.
É urgente reinventar escolas e comunidades onde a consciência crítica e dialógica se traduza numa real equidade e justiça social, contra todas as formas de exclusão. Não podemos ignorar que a construção de comunidades reflexivas e solidárias, onde a educação como processo de desenvolvimento não é regulada pelo mercado, ajuda a descobrir a direcção e a fazer o caminho para uma efectiva coesão social no quadro de um desenvolvimento integrado e sustentável.
Qualquer reforma que implique a actual extinção da rede escolar, em conformidade com a legislação em vigor (Decreto-Lei n.º 35/88, de 4 de Fevereiro; Decreto-Lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio; Lei n.º 169/99, de 18 Setembro) pressupõe, em nossa opinião, a equação dos seguintes aspectos, considerados como pré-requisitos:
indispensável consenso das populações;
nova filosofia na definição dos transportes escolares, tendo em conta as vertentes conforto-segurança, duração dos percursos e distâncias a percorrer;
redefinição da formação dos professores (inicial e contínua), face ao novo modelo de organização administrativa e sociopedagógica das escolas;
construção de centros escolares que correspondam a uma nova concepção de escola ? escola pública democrática.
Em suma, a implementação, no terreno, dos princípios enunciados implica a constituição de grupos de trabalho que dêem resposta às realidades complexas de cada local e região.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 132
Ano 13, Março 2004

Autoria:

Américo Nunes Peres
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) - Pólo de Chaves, Vila Real
Américo Nunes Peres
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) - Pólo de Chaves, Vila Real

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