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"A escola inclusiva está em perigo"

Neste dossier dedicado ao ensino especial não podíamos deixar de entrevistar quem, pelo seu trabalho no terreno, pode dar uma visão geral sobre os problemas e as expectativas com que se confrontam os professores de apoio educativo nas escolas. Beatriz Martinho, educadora de infância especializada há 21 anos, dirigente sindical do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa e conselheira nacional da Federação Nacional de Professores, refere que a escola inclusiva está em perigo e que Portugal corre o risco de retroceder na área dos apoios educativos para crianças com Necessidades Educativas Especiais.

Na sua qualidade de educadora e de dirigente sindical qual é a análise que faz do actual modelo dos apoios educativos para crianças e jovens com Necessidades Educativas Especiais (NEE)?

A minha perspectiva não corresponderá, com toda a certeza, àquilo que o governo afirma nesta matéria, já que este garante que as crianças com NEE estão a ser todas apoiadas e que a maior parte delas até nem deveria estar abrangida nos esquemas de apoio prestados actualmente pelos professores de educação especial. O que é facto, porém, é que desde o início deste ano lectivo existem crianças sem apoio e muitas delas não são inclusivamente sinalizadas ? e aqui reporto-me em particular às crianças que frequentam o ensino pré-primário.
Para completar este retrato, refira-se a falta de estabilidade profissional a que estão sujeitos os professores de apoio. Há mais de trinta anos que estes vivem numa situação de destacamento anual e de uma completa indefinição no âmbito do Estatuto da Carreira Docente. Este ano lectivo houve, pela primeira vez, vagas para professores de apoio especial no distrito de Lisboa que não foram preenchidas, o que reflecte o mau estar que se tem vindo a instalar na educação especial, nomeadamente pela ausência de condições de trabalho nas escolas.

Partindo das entrevistas que realizei para este trabalho, fiquei com a impressão de que a legislação é adequada à realidade no terreno mas acaba por não se aplicar na íntegra. Confirma esta ideia?

Sim, concordo com essa ideia. E num recente debate sobre a Lei de Bases do Sistema Educativo, realizado em Santarém, ouvi inclusivamente o deputado Fernando Charrua, do Partido Social Democrata, dizer que no próximo ano haverá ainda maiores cortes na colocação de professores de educação especial. Quem trabalha nesta área nunca julgou que a situação pudesse chegar a este estado. Trata-se de uma situação muito grave, e julgo que nem os pais nem os professores do ensino regular se estão a aperceber muito bem da sua amplitude.
Em poucas palavras, o governo está a chegar à conclusão de que não são necessários professores de educação especial, mas apenas terapeutas ocupacionais, terapeutas da fala, intérpretes de linguagem gestual, entre outros. É evidente que estes técnicos são imprescindíveis para este tipo de trabalho ? nomeadamente para integrar equipas multidisciplinares que estão prometidas há muitos anos mas nunca passaram do papel -, mas não pode pretender-se realizá-lo sem os professores de apoio especial.

Acha que se pode falar numa regressão na área dos apoios educativos especiais?

Completamente. A escola inclusiva, pela qual vimos a lutar há tantos anos, está a ficar em perigo. Onde está o respeito pelos princípios enunciados nas declarações de Salamanca e pelos direitos inscritos na Constituição da república portuguesa relativamente aos cidadãos portadores de deficiência? Desde há dois anos que se anuncia este caminho, mas ele parece estar definitivamente consagrado com este governo.
Exemplo disso mesmo são os conselhos municipais de educação, onde não há lugar para o professor de educação especial. Se os apoios para as escolas do ensino regular advêm das decisões tomadas neste órgão de poder, não havendo quem possa defender os interesses dos apoios educativos especiais poderá significar a retirada das crianças e jovens com NEE do ensino regular.

Onde pensa que poderá levar esta política do Ministério da Educação?

Esta política irá, na minha opinião, levar à segregação das crianças e jovens com NEE, através da criação de turmas especiais, e, no caso das deficiências mais graves, do seu encaminhamento para instituições especializadas. O que parece igualmente grave é o facto dos professores dos restantes sectores de ensino não se estarem a aperceber que este problema também lhes toca a eles.

Está a pretender dizer que os professores ignoram, na sua maioria, os contornos políticos e sociais destas medidas?

Sim. Acho que os professores do ensino regular não se apercebem que a presença destas crianças é uma mais valia para os seus colegas e para eles próprios, nomeadamente pela oportunidade diária de conviverem com a diferença e por ajudarem a realizar um trabalho que faz destas crianças e jovens pessoas de pleno direito. Mas para isso é indispensável que tenham acesso aos apoios técnicos a que têm direito, designadamente a equipas multi-disciplinares, que continuam a não existir por falta de vontade política do ME.

A nova legislação relativa aos apoios educativos especiais já está definitivamente aprovada?

Sei, por vias indirectas, que até ao final deste mês de Dezembro irá proceder-se à actual revogação da legislação em vigor - orientada pelo Decreto-Lei 319/91 - proposta que o ME enviou para a Fenprof, sobre a qual enviamos um parecer em Fevereiro de 2003 e não obtivemos resposta. Assim, tudo indica que a nova legislação irá ser promulgada nos cinco dias de interrupção lectiva das férias de Natal.

Que aspectos demarcam esta legislação em relação à anterior que podem vir a mudar a face dos apoios educativos especiais?

Parece-me que o principal alcance desta nova legislação passa por retirar as crianças e jovens com NEE do ensino regular. Ao passo que na anterior se fomentava a continuidade dos professores de educação especial e se valorizava a sua actividade, nesta é-lhes retirado o seu papel. O que me preocupa mais é que isto significa uma regressão de quase trinta anos no que se refere à filosofia de ensino inclusivo. Estamos a caminhar para trás, e esta sensação de impotência começa a esmorecer a vontade dos professores por vermos que os frutos do nosso empenho se estão a perder. O governo tem de chegar à conclusão de que esta sociedade só pode ser realmente democrática com a integração plena destes jovens na escolas do ensino regular.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 130
Ano 13, Janeiro 2004

Autoria:

Beatriz Martinho
Educadora de infância especializada há 21 anos, dirigente sindical do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa e conselheira nacional da Federação Nacional de Professores
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Beatriz Martinho
Educadora de infância especializada há 21 anos, dirigente sindical do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa e conselheira nacional da Federação Nacional de Professores
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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