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O cabeleireiro afinal era tarologo

Careca polida por opção. Trajes escuros. A escuridão do corpo a contrastar com a luz do crâneo. Conheci o A. numa viagem de autocarro a caminho do emprego. Sentei-me num banco frente a ele. Era Verão e o calor estava indiferente ao ar condicionado. Sem saber o que fazer para arrefecer tirei da carteira uma mola para prender cabelo. Um gesto fácil a menos que o cabelo a ser preso seja volumoso e comprido. O que era o caso.

Com um sorriso quase gargalhada A. viu-me falhar a primeira, a segunda, a terceira e a quarta tentativa para tirar o cabelo do pescoço.  À quinta deixei cair os braços cansados e desatamo-nos a rir.

«Sabe qual é o problema? O seu cabelo é muito forte, disse-me A. Por que não o deixa solto?»

Segui o conselho. E fiquei com a ideia de que talvez fosse cabeleireiro.

Nas viagens seguintes deixei de o ver. Passou-se o Verão e estavamos no incío de Novembro quando nos encontramos de novo no autocarro. Desta vez levava o cabelo solto. A. mostrou-se surpreendido por nunca mais nos termos visto. Expliquei-lhe que não tinha horário e que talvez nos tivessemos desencontrado. O facto era que tão pouco ele tinha horas para ?entrar?. E,  assim, ficou esclarecida a situação.

Por achar estranho que fosse cabeleireiro e ao mesmo tempo não tivesse horário de ?entrar? ao serviço perguntei-lhe o que fazia? A. respondeu-me que era tarologo. Antes, muito antes tinha sido programador de software e trabalhado em bijuteria artesal. Mas sempre, tanto na pasta onde alojava o Pentiun como na mochila onde levava as pedras e fios com que fazia as suas peças, havia trazido consigo o seu baralho de Tarot.

A surpresa com que recebi a notícia sobre o seu último ofício fez com que a conversa não voltasse a incluir cabelo. Perguntei-lhe se um tarologo acreditava em Deus. E A. explicou-me que era praticante de uma religião ligada à magia e feitiçaria. Num passe de mágica imaginei o A. vestido como Harry Potter... E tive alguma dificuldade em disfarçar a descrença que senti estampar-se no meu rosto.

«Eu acredito no livre-arbítrio!, atirei, na expectativa de que ? como seria de prever mesmo para alguém afastado do mundo da adivinhação ? me dissesse que independentemente daquilo em que acreditasse o ?meu caminho estava traçado?. »

A. sorriu habituado à rebeldia dos que insistem em querer levar a vida à sua maneira sem interferências sacras. E com paciência de crente, argumentou que por vezes as pessoas têm uma determinada tarefa para cumprir na vida. Que pode ir desde a realização de algo extraordinário. À acção de simplesmente influenciar alguém.

«A pessoa que não cumpre a sua tarefa anda no mundo um pouco às voltas», acrescentou A. em jeito de vaticínio.

Com esta frase A. saca do bolso do casaco um cartão pessoal. Um rectângulo com os cantos cortados e a carta da Lua estampada. A imagem mostrava uma mulher vestida de branco com dois lobos cor da neve aos pés e um homem ajoelhado à sua frente. Um presságio?

«Telefone-me. Podemos tomar um café.»

Quase podia jurar que A. saíra do autocarro a pensar que o ?destino? me tinha posto no seu caminho por alguma razão que ele, por esta altura, já terá descoberto ao ler o seu Tarot. Quanto a mim, conhecer o A. reforçou ainda mais a minha certeza de que  realmente tenho uma tarefa ?extraordinária? a  realizar na vida: a de conhecer os A., os B., os C., os D., os E., os F., os G. os H., os? deste mundo.


  
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Edição:

N.º 130
Ano 13, Janeiro 2004

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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