Quando, ainda nos preliminares da guerra que norte-americanos e ingleses iriam desencadear contra o Iraque, já se faziam ouvir os primeiros protestos, uma figura pública dos Estados Unidos, certo de que o seu país se preparava para assumir, como fizera nas duas guerras mundiais, o papel de paladino da liberdade e da democracia, estranhava que alguém pudesse não gostar dos americanos! Referia-se, é claro, aos protestos que logo a seguir estrondearam em todo o mundo contra o pacto anglo-americano, sem reconhecer que eles não se dirigiam ao povo dos Estados Unidos, mas apenas ao Governo que decidia em seu nome. Sabendo-se como a opinião pública é permeável aos jogos da propaganda, tão-pouco poderiam ser incluídos nas objurgatórias os milhões de americanos que, segundo as sondagens, apoiavam a administração de George W.Buch, e menos ainda, obviamente, aqueles outros que, juntando sua voz indignada ao coro universal, não tinham apagado as imagens da memória ou as marcas do corpo causadas pela experiência desastrosa e inglória do Vietname, ou, no mínimo, as representações literárias, jornalísticas e cinematográficas que dessa guerra haviam dado escritores, repórteres e cineastas. Muitos desses americanos, que enfileiraram nos cortejos de protesto realizados no próprio país, conservariam na retina os quadros dantescos do filme Apocalipse Now, de Francis Coppola, lembrados daquele general-aviador, de chapéu à "cow-boy", tomado pela histeria, mandando arrasar aldeias com bombas incendiárias, ao som das fanfarras wagnerianas, e do coronel ensandecido pelo louco exutério de todas as guerras, que é abrir feridas novas para garantir a supuração das antigas. Mas, pouco depois, seguramente, aquela mesma figura pública, se não era insensível ao horror, tendo já visto as imagens da guerra no Iraque que repórteres de todo o mundo fizeram passar nas televisões, não ousaria repetir - por simples ingenuidade ou pura estultícia - a mesma pergunta: "Por que não gostam dos americanos?" Se a pergunta fosse dirigida às vítimas do Iraque, ou aos sobreviventes de Nagasaki, Hiroshima e Vietname, a resposta seria óbvia: "Porque os americanos, quando desejam uma coisa, não olham a meios para atingir os fins. E se, para fazerem valer os seus interesses, tiverem de desafiar a consciência do mundo, nem hesitarão em pôr-se à margem de todos os convénios que apontem para a redução do poder bélico, da poluição da atmosfera, do erosionamento da terra, da preservação das fontes de energia, das reservas nacionais ao comércio livre, das leis internacionais que defendem a dignidade e soberania dos povos." Se dirigida a todos os homens de boa consciência, para os quais as mesmas palavras que o presidente dos Estados Unidos vem proferindo constantemente, no seu Discurso sobre o Bem e o Mal, como "liberdade", "democracia" ou "compaixão", possuem um sentido diferente, a resposta seria dada também a uma só voz: "Veja os corpos calcinados pelas bombas, as casas em escombros, as mães com os filhos esfacelados nos braços, os rostos dos bébés vidrados pelo pavor, os famintos a implorarem comida e água, o horror e o medo misturados com ódio nos olhos secos; oiça aquela mulher heroificada pelo desespero a bradar aos homens e aos céus: 'Que mal fizemos aos americanos?! Onde estás Tu, meu Deus?!' Era uma mulher cristã a convocar o mesmo Deus dos invasores da sua terra." Haverá sempre um "general" ou um "coronel", semelhantes aos do filme, a teorizar, como Nietzsche, que "onde está a vida, aí está também a vontade, não a vontade de viver, mas a vontade de poder"; ou, como Marinnetti, que "a guerra é bela porque fundamenta o domínio do homem sobre a maquinaria subjugada, graças às máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-chamas e tanques." Mas porque outros pensarão, como o Padre António Vieira, que "é a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome tanto menos se farta", parecer-lhes-á insuportável, pela simples razão de que toda a violência inspira a repulsa, que alguém, por ingenuidade ou infantilismo, possa estranhar que quem viu a sua família morta, a casa destruída e a pátria invadida não consiga aceitar o responsável, por mais compensações que ele ofereça, desculpas que apresente ou remorsos que confesse. É que as feridas do desprezo são mais profundas que as do amor e do ódio.
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