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Escola primária com história e com futuro

Colégio Público López Ferreiro, em Santiago de Compostela, Galiza

?É a escola mais feia de Santiago de Compostela?, diz Benedito Garcia, professor primário, num meio-tom entre a brincadeira e a seriedade enquanto olha a estrutura de dentro do seu carro. O edifício cor-de-rosa envelhecido, visto em plano picado da estrada, parece impor-se a toda a paisagem que o rodeia. Fica situado na periferia daquela cidade galega e está rodeado de estradas. Pesam sobre os alicerces do Centro Educativo Infantil e Primário López Ferreiro 150 anos de existência. O colégio público ?com mais história de Santiago de Compostela? lê-se num panfleto publicitário que o promove.

A estrutura de cinco andares foi construída para servir de escola de práticas anexa a um outro edifício criado um ano antes, que albergava a Escola do Magistério onde se formavam os futuros professores.
Actualmente a escola de professores já não mora lá. Para essa metade vazia do edifício está projectada a construção de uma unidade hoteleira. O que fez com que ?a concorrência [os colégios privados] lançasse uma campanha falsa dizendo que essa situação iria originar o encerramento da escola infantil e primária por esta estar localizada na outra metade do edifício?, explica Lois Trigo, director do colégio. ?A concorrência privada é muito forte e desleal?, contesta. Na zona envolvente ao colégio López Ferreiro, composta por cerca de 12 mil habitantes, existem três escolas primárias públicas para seis privadas. ?E se não queremos perder alunos temos de fazer publicidade à escola?, afirma o director, também professor generalista primário [ver caixa sobre diferenças entre professores generalistas e especializados].
Esta falta de alunos no ensino público é um fenómeno complexo. A história do ensino público primário em Santiago de Compostela ficou marcada de forma negativa pela actuação de um inspector da educação da época do franquismo. Lois Trigo explica: ?Victorino Palácios era um homem fortemente ligado à Igreja e quis favorecer o seu monopólio educativo, proibindo durante anos a construção de escolas públicas em Santiago de Compostela.?
Agora os tempos são outros. Mas a tendência para o favorecimento do ensino privado, segundo Lois Trigo, mantém-se. ?O Ministério da Educação, Cultura e Desporto não quer uma escola pública que tenha respostas para os problemas educativos da sua comunidade. Quer antes que os alunos vão para as escolas privadas. Justificam que essas escolas têm mais condições, mas é mentira! Aqui [no López Ferreira] os alunos têm uma boa oferta educativa, com a vantagem de ser gratuita.? Ainda assim, o colégio tem vindo a perder alunos do ensino primário, frequentado por 246 crianças com idades entre os seis e os dez anos. Por outro lado, tem recuperado alunos no pré-escolar, onde convivem 82 crianças dos três aos cinco anos. Ao todo são 328 alunos para 28 docentes, seis deles do pré-escolar.
Fora dos grandes centros urbanos o fenómeno da perda de alunos é mais significativo. Fruto da baixa da natalidade, e à semelhança do que vai acontecendo nas escolas do interior de Portugal, as escolas rurais da Galiza estão a ficar desertas. Actualmente existem cerca de 500 escolas unitárias rurais, que funcionam com uma ou duas turmas de alunos e um corpo docente exclusivo. Há cinco anos existiam 800. Face a este cenário, a Junta da Galiza e o Ministério da Educação determinaram a integração das escolas rurais com menos de nove alunos em agrupamentos de escolas cujo corpo docente passa a ser constituído por professores unitários (que dão aulas exclusivamente naquela escola) e professores itinerantes (que dão a sua disciplina em todas as escolas daquele agrupamento).
O financiamento das escolas resulta de um orçamento base ao qual é acrescentado uma quantia extra calculado em função do número de alunos. Como exemplo, o colégio López Ferreiro recebe anualmente 18 mil euros. Uma quantia que se torna, nas palavras do director do colégio, ?insuficiente?. Até porque desse orçamento são pagas as despesas com todas as actividades pedagógicas do ano lectivo e as despesas fixas de funcionamento da escola, onde se incluem o pagamento dos ordenados do pessoal docente e não docente, as contas da água e da luz. Por isso, a Associação de Pais arca com as despesas da cantina, do transporte escolar e ainda subsidia algumas actividades extra-curriculares.O ensino pré-escolar, não sendo obrigatório, é gratuito em toda a Espanha. Na Galiza a percentagem de alunos dos três aos cinco anos que frequenta este ensino alcança quase os 90%. No colégio López Ferreiro o número de alunos nesta etapa da educação básica tem vindo a aumentar. Para o ano lectivo de 2003/04 a escola prevê atingir os 34 alunos, a contar pelas 26 inscrições já efectuadas. Ainda assim, a escola fica aquém da sua capacidade, situada nos 50 alunos.
Na sala dos três anos há brinquedos espalhados pelo chão. Peças de puzzle, letras? Vestígios dos pequenos que, naquele momento, se encontram numa aula de Educação Física. No quadro preto lêem-se as primeiras letras: a, e, i, o? O ?u? talvez tenha ficado para depois da ginástica.
No sistema de ensino galego não há educadores de infância mas sim professores do ensino pré-escolar. Professores que ensinam a pré-leitura e a pré-escrita, pelo facto de o ensino do pré-escolar ainda não abranger a totalidade das crianças. Caso contrário, ensinariam desde logo a leitura e a escrita. Aqui as crianças são agrupadas por idades e permanecem com a mesma professora generalista durante os três anos que compõem aquele ciclo de ensino. Generalista porque tanto no pré-escolar como no primário o modelo do professor único já não vigora desde os anos 70.
Deste modo, o número de professores especializados nestes dois níveis de ensino varia em conformidade com a oferta educativa da escola. No colégio López Ferreiro, os alunos do primário podem ter até sete professores especializados em áreas como a matemática, as línguas inglesa e francesa, a música, a educação física, a religião ou a habilidade social.
No que toca ao horário, este ano o colégio optou por estipular uma jornada lectiva única durante a manhã, tanto para os alunos da primária como para os do pré-escolar,  funcionando das 9h30 às 14h30. Pela tarde, todos os alunos têm actividades extra-curriculares geridas e organizadas pelos próprios professores. Tratando-se de uma actividade de formação específica, a escola recorre a sócio-educadores de fora da comunidade.  
Nesta altura os pequenos estão fora da alçada da professora generalista e encontram-se com Cármen, a professora especializada em educação física. Num mini-ginásio concebido à sua medida driblam bolas de basquetebol. Uns a correr, outros nem por isso. Uma miúda insiste em chutar a bola com o pé. Talvez preferisse jogar futebol, quem sabe?
Benedito Garcia, 55 anos, é um dos professores primários especializados do colégio. A sua área é a da matemática. Para além de dar aulas este professor é ainda responsável pela utilização extra-curricular da sala de informática, um espaço com 20 computadores ligados à Internet que funciona também no horário curricular ? cada turma do pré-escolar e do primário tem uma hora semanal de ?navegação?.
Ao entrar na sala, Benedito repara num computador ?fora de serviço?. ?Que fizeste??, pergunta a um rapazinho com cara de amuado sentado em frente à máquina. Não estivesse de ?licença? do magistério em casa a traduzir para o galego um programa informático de exercícios de matemática enviado em castelhano, Benedito estaria a resolver o problema do computador. Em vez dele, um outro professor tenta diagnosticar o mal que aflige o CPU. Benedito dá uma olhadela e franze as sobrancelhas. ?Nada, não fiz nada!?, responde o rapaz envergonhado.
Apesar de ser um entusiasta da Internet, Benedito acha que o computador "não está direccionado para ser uma fonte de informação educativa?. E justifica: ?Há demasiada informação na rede e muita não é tratada convenientemente.? Por isso, o professor defende que antes da pesquisa de informação na Internet os alunos devem procurar essa mesma informação nos livros: nos que são levados pelos professores para a sala de aulas e nos que existem na biblioteca.
A biblioteca escolar não prima pela arrumação... Há livros remexidos nas estantes, livros abertos nas mesas de leitura. O intervalo esvaziou o espaço de crianças mas deixou vestígios da sua presença. Com mais de 8 mil títulos, os níveis de empréstimo fazem inveja: 50 livros por semana. ?Há um grande esforço para fomentar a leitura entre as crianças?, explica Lois Trigo, director do colégio. Esforço partilhado com o Ministério da Educação Cultura e Desporto espanhol que implementou um Plano de Fomento da Leitura. A medida é simples e consiste em premiar os alunos que mais lêem. Assim, no início do ano são distribuídos "passaportes" de leitura. Em cada uma das 23 páginas existe um espaço para a escrita de um comentário do livro lido. Cada ?viagem? dá direito a um carimbo da biblioteca. Há medida que os carimbos se acumulam os alunos recebem cromos para colar em cadernetas e outros prémios angariados pelo colégio ou oferecidos por outras entidades: canetas, livros, mochilas, lápis e até viagens.
Os alunos, no entanto, não são os únicos frequentadores da biblioteca. Os pais também fazem igualmente parte da comunidade de leitores. Só não ganham cromos. ?Tudo começou aos poucos?, explica Lois: ?os pais vinham buscar os filhos e perguntavam se podiam ver este ou aquele livro. Depois ficaram ?mais atrevidos? e começaram a querer levá-los para casa (risos). Então deixamos que se tornassem utentes do serviço de empréstimo.? A propósito do inusitado da situação, Lois conta um episódio passado com um destes utentes. ?Um dia um pai perguntou-me o que acontecia se não devolvesse um livro. E eu respondi que enquanto o filho frequentasse a escola não havia problema porque eu chumbava o filho até que ele mo devolvesse (risos).?
O toque que põe fim ao intervalo devolve as crianças à biblioteca. Saímos. No corredor, Benedito encontra a sua trupe: ?Quando voltas Bene??, pergunta uma menina agarrada às pernas do professor. ?Dois de Maio!?, sorri Benedito. A visita à escola prossegue. Próxima paragem: a aula de Habilidades Sociais.
?É muito importante saber fazer uma queixa quando alguém está a desrespeitar os nossos direitos!? A explicação ecoa pelo corredor. E como a porta da sala da aula de Habilidades Socais está aberta? Entramos. Sara Sanchez é a professora, está a fazer um estágio na escola, integrado no curso de Psicologia, e pediu ao Gabinete de Orientação Pedagógica para dar esta aula ao quarto ano da primária. O pedido foi aceite. A mobilização social que o caso Prestige originou na Galiza despertou a curiosidade dos miúdos para os protestos. E isso justifica que se ensine a fazer e a receber queixas. Assim que a professora introduz o tema gera-se o burburinho na sala.
?O que podemos fazer para nos queixar??, pergunta Sara. ?Pôr má cara!?, responde um dos miúdos. Ao ouvir a resposta a professora reformula a pergunta: ?Mas como nos queixarmos sem que os outros nos levem a mal?? Essa é que é a verdadeira questão. ?Dizendo o motivo pelo qual estamos desgostosos!? Ouvem-se algumas interjeições mas a professora continua: ?É importante não mostrar má cara e não responder às queixas que fazem à nossa actuação com mais queixas.?
Depois de exposta a teoria a professora chama dois alunos para fazer uma dramatização. Um dos alunos faz de queixoso o outro de prevaricador. Em causa está um livro emprestado que foi devolvido em mau estado. A moral da história é simples e não conflituosa: ?Da próxima vez que te emprestar um livro devolve-mo exactamente como to entreguei.?
Fora da sala de aula, quem tem queixas a fazer contra a política educativa do Ministério da Educação, Cultura e Desporto são os professores. À semelhança do que os sindicatos de professores dizem estar a acontecer em Portugal, Lois Trigo, director do colégio, afirma que em Espanha se sente uma ?tentativa de privatização e precarização do ensino público?. Benedito vai mais longe: ?Tentativa não! As mudanças legislativas apontam para essa realidade [ver Dossier páginas 11,12 e 13]!?
Outra das queixas que há muito os professores primários tecem ao ministério é o facto do curso do Magistério que dá acesso à profissão de professor primário ainda ser considerado um curso de grau médio. O equivalente a três anos de formação. ?Não querem dar a categoria de licenciados aos professores primários. Entendem que quanto menor é a idade do aluno menor será a necessidade de formação do professor!?, insurge-se Benedito. ?Mas é precisamente o contrário: os danos que se podem causar a um miúdo são muito maiores do que aqueles que se podem causar a um jovem, logo os professores do pré-escolar e do primário precisam de mais formação!? A queixa termina com uma promessa optimista de contestação pela mudança. Como a professora de Habilidades Sociais explicou aos seus alunos: ?Ao fazer uma queixa estamos a dar oportunidade à pessoa que errou de não voltar a fazê-lo!?

Especificidades do sistema de ensino primário Galego

Professores

O modelo do professor único, tanto no ensino pré-escolar como no primário, foi abolido nos anos 70. As turmas passam uma grande parte do tempo com um professor generalista que ensina um pouco de todas as matérias. Depois, conforme a oferta educativa da escola, podem ter professores especializados em determinadas áreas. Para coordenar todos os professores existe a figura do tutor, uma espécie de director de turma a quem cabe ainda a tarefa de falar com os pais sobre os assuntos que dizem respeito aos seus educandos.

Organização dos ciclos de ensino

O ensino pré-escolar é composto por um ciclo de três anos e pode ser frequentado por crianças dos três aos cinco anos, mas não é obrigatório; o ensino primário é obrigatório, está dividido em dois ciclos de dois anos cada um e inicia-se aos seis anos. 

Chumbos

No ensino primário, o aluno só pode ser chumbado uma vez em cada ciclo. Para isso os alunos com dificuldades de aprendizagem recebem aulas de apoio pedagógico nas matérias onde têm menor aproveitamento.

Um retrato na hora do recreio

O mundo de Sofia

Sofia tráz uma t-shirt preta com uma inscrição azul que diz Nunca Máis. Foi a mãe que lha comprou durante uma das muitas manifestações contra a actuação do Governo espanhol a quando o acidente do Prestige que aconteceram por toda a Galiza. Santiago de Compostela não foi excepção. Os professores levaram os alunos para a rua com a autorização dos pais, contrariando um ?aviso? oficial endereçado às escolas de que só se deveriam envolver em assuntos do foro educativo. Um silêncio ?recomendado? pelo ministério da educação espanhol em forma de comunicado.
Sorridente Sofia puxa o fundo da t-shirt para que os colegas melhor vejam os dizeres e com orgulho explica o seu significado: ?Estou contra o Prestige na Galiza e contra a Guerra no Iraque!? São dez anos de determinação e convicção. Os seus companheiros de classe apesar de não trazerem uma t-shirt igual à de Sofia são tão defensores das ?suas? causas como ela própria. ?Eu fui também à manifestação pela Paz!?, diz um deles. ?Eu fui a todas??, ouve-se outro ?E eu fui à do Prestige com os meus pais?? E porque os miúdos acham muitas mais coisas do que julgamos? Uns acham que a ajuda aos pescadores devia ter ?sido logo?. Outros acham ainda que ?todas as guerras são más porque matam muita gente?. Por fim todos acham a t-shirt de Sofia ?muito bonita?? E este manifesto em forma de t-shirt gerou tanta agitação que os meninos se esqueceram que a hora do recreio também pode servir para pular e correr...


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 123
Ano 12, Maio 2003

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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