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Alguns reparos a Mário Llosa e não só
O escritor perunano Mário Vargas Llosa veio a Lisboa (16.10.2002) defender um sentido subjectivo de cultura, minimizando e até  repudiando o sentido objectivo que é o da Antropologia. À descrição e estudo de usos e costumes, daquilo que caracteriza e identifica as comunidades humanas opõe uma ?dimensão espiritual? em que, frisa, ?conhecimentos e crenças se confundem?. A táctica neoliberal e globalizante é subrepticiamente de matriz economicista: onde estão os apregoados valores do espírito e da liberdade num mundo onde o saber e o crer não se pudessem distinguir?, num mundo ?em que o património comum? (comum a todos ou só aos bem instalados? ? pergunta-se) ?vai apagando ou reduzindo rapidamente o que parecia levantar fronteiras sólidas entre as culturas??
Não há e nunca houve fronteiras sólidas entre as culturas, já que elas são sistemas abertos e não fechados. Aquele ?parecia? tem de entender-se como uma forma habilidosa de se furtar à afirmação peremptória, conquanto de sujeito impessoal.
Os contactos de uma cultura com outra são inevitáveis e esses contactos não as degradam, antes as fazem evoluir, enriquecendo-as, adaptando-as a novas condições do meio e da vida. Quem não sabe que a passagem da Idade dos Metais é uma adaptação gigantesca?
E como interprtetar que ?a associação da livre circulação da informação à liberdade? resulte na ?democratização da cultura? e com ela, por efeito da modernização, na perda de identidade cultural, ?folclorista e indigenista?? Estes dois adjectivos, (em vez dos normais folclórico e indígena, aliás, sobretudo o primeiro, carregados em certo uso lamentável de sentido pejorativo, até em réplicas parlamentares), são irónicos, mas revelam uma insegurança crítica, pois MVL bem sabe que as culturas, evoluindo, não se mantêm iguais ao longo dos tempos. O globalizacionismo redutor acaba mesmo por reconhecer, ou ter de reconhecer, ?as diferenças que existem entre as diversas etnias, crenças, línguas que dão ao mundo a sua estimulante e rica diversidade?. Mas que diferenças são essas, se não são diferenças culturais no sentido antropológico? De facto (palavras também de MVL) ?as culturas não precisam de ser protegidas?, ?necessitam de viver em liberdade, expostas às culturas diferentes, graças às quais se enriquecem, evoluem e se adaptam à fluência contínua da vida?. Claro, mas isso não significa que tal adaptação suprima as diferenças e a identidade cultural ? ?com nacionalismo? acresecnta MVL, esquecendo que as identidades culturais regionais podem conviver dentro da mesma nação.
Fica-se com a impressão de que este escritor se sente entre a espada e a parede, ao distinguir cultura (sentido globalizante) e culturas (sentido antropológico, por ele mal entendido). É um estratagema para não desmentir os factos e tranquilizar a consciência. O mundo em que vivemos, porém, é feito de relevos que nos modelam o espírito e também não é uma tábua rasa (nem para lá caminha) em que a história se reescreva, enquanto o sentido espiritual se aliar ao exercício da liberdade. As culturas com o mundo dos pobres e a ?cultura? com o mundo dos ricos? Livra! As diferenças culturais, ao tomarem boa consciência de si, uma consciência convivente, encarregar-se-ão de esbater as diferenças sociais. É esta a grande utopia. O Grande Jogo.
Este texto ficaria por aqui, se não houvesse alguns pontos a frisar. Os MacDonald?s, o rock e os blue jeans, entre outras novidades recentes de que fala MVL, parecem-se produtos interessantes da sociedade americana e a mim não me afugentam, admirador que sou, por exemplo, da música de Elvis Presley. O que este planeta vai produzindo de apreciável deve consumir-se e essa é uma forma de globalização tão aceitável como inevitável. Mas há coisas que não podem globalizar-se, como as culturas e as identidades culturais, e merecem que as deixem em paz para que a humanidade viva em paz. Custa-me a aceitar que o Dia de S. Valentim (dia dos namorados ? 14 de Fevereiro) e o Dia das Bruxas (hallwe?en ? 31 de Outubro para l de Novembro) vão americanizando a cultura doutros países, como Portugal, força de propaganda em certa comunicação social, fazendo esquecer os nossos santos casamenteiros, Santo António e S. Gonçalo, e as sextas feiras em dia treze. Há tanta coisa que não pode ser globalizada ou mundializada! E não é a atribuição do título de Património Mundial a certos monumentos, centros históricos e paisagens que os mundializa culturalmente: o que á património comum da humanidade é-o e ainda bem porque deve ser reconhecido e melhor conhecido. Só a esse nível se pode falar de globalização. Também o port wine se vai mundializando ( e desejável é que o ritmo se acelere) por efeito do comércio, da propaganda e do gosto, mas, por mais que o Alto Douro Vinhateiro tenha sido classificado como património mundial na área da paisagem cultural, esta e as formosas colinas que produzem o apreciado vinho é que não podem mundializar-se em si mesmas. As culturas não são mundializáveis.
Há muita gente enamorada da globalização, mas é preciso acentuar o que nesta conduz as expansionismo imperialista, sabendo-se da história que todos os impérios acabam por se desmoronar. Três vias:
Via militar ? nacionalismo exacerbado ? sentimento de expansionista ? guerra imperialista.
Via religiosa ? intolerância religiosa ? ambição territorial ? guerra santa ? imperialismo.
Via económica ? nação ou pequeno grupo de nações economicamente poderosas ? ideologia de mercado ? globalização imperialista.
Em alguns casos estas vias interpenetram-se.
Conclua-se que a humanidade é comum a todos os povos sem distinção de culturas, raças, etnias e credos; por isso só é legítima a globalização cujos benefícios a contemplem.

  
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Edição:

N.º 117
Ano 11, Novembro 2002

Autoria:

António Cabral
Professor Aposentado, Vila Real
António Cabral
Professor Aposentado, Vila Real

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